São Paulo, domingo, 02 de junho de 2002

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+ política

Integração dos novos guetos e garantia de cidadania são os grandes desafios do século 21

Separados, mas iguais

Ralf Dahrendorf
especial para a Folha

Certamente não um muro, não é mesmo? Um amigo israelense, ativista do movimento pacifista "Paz Agora", respondeu à minha pergunta com outra: "Você percebe que nenhum homem-bomba entrou em Israel vindo da faixa de Gaza?". Por quê? "Porque existe uma cerca." Se uma cerca elétrica fosse construída ao redor do território da Cisjordânia, ele continuou, dois problemas seriam solucionados ao mesmo tempo. Os palestinos teriam permissão para entrar em Israel apenas por um pequeno número de postos de controle, e os colonos logo considerariam sua posição insustentável e retornariam para Israel.
As coisas não são tão simples, é claro. Essa cerca provavelmente incluiria assentamentos próximos, mas dentro da linha de 1967. O retorno dos colonos seria um processo difícil, tanto em termos práticos quanto por causa da opinião pública israelense. Depois há as questões dos árabes-israelenses e de Jerusalém (deveria ser cortada em dois por um muro, como o foi o Muro de Berlim?).
Dito isso, é surpreendente que um homem de valores liberais como meu amigo do "Paz Agora" defenda a separação física dos grupos como o caminho -talvez o único- para a paz. A idéia de que os grupos devem ter direitos iguais, mas permanecer separados, foi a concessão máxima dos tradicionalistas no antigo Sul segregado dos Estados Unidos. Uma forma de apartheid sem opressão foi até onde eles tiveram condições de chegar.
As forças liberais, porém, exigiam uma solução diferente. Elas queriam uma sociedade em que as raças, os grupos étnicos e as denominações religiosas se misturassem livremente. Quando viviam separados em seus próprios "guetos", seus filhos eram levados de ônibus às escolas dos outros grupos para a prática do que hoje se chama multiculturalismo. Com o tempo, o sonho liberal viu as linhas de diferença serem apagadas não apenas pelos espaços de vida comuns mas também pelo casamento inter-racial.
Sem dúvida, o sonho máximo de uma cidadania plenamente desenvolvida é de que um piso comum de direitos -incluindo um status econômico garantido- permita que pessoas diferentes vivam juntas em harmonia. Mas hoje sabemos que isso é apenas um sonho.
Às vezes ele meramente parece se realizar quando pessoas de classes sociais diferentes vivem juntas, mas isso ocorre porque as próprias divisões de classe se tornaram imprecisas. Não faz muita diferença se meu vizinho fabrica, vende, conserta ou usa computadores. No entanto, quando as diferenças não podem ser facilmente apagadas -as de religião, origem étnica e cultural, cor-, a cidadania comum não atinge a unidade na diversidade com que tantos sonham.


Com o tempo, o sonho liberal viu as linhas de diferença serem apagadas não apenas pelos espaços de vida comuns mas também pelo casamento inter-racial


Na verdade, sempre que grupos diferentes tiveram de compartilhar um espaço ou eles lutaram entre si ou traçaram uma linha para se manter separados. Às vezes essas linhas são muito visíveis. São na verdade as fronteiras, como foram tão drasticamente traçadas entre as partes da antiga Iugoslávia. Geralmente o drama impõe um alto custo humano. "Limpeza étnica" significou na maioria dos casos perseguição e matança. Onde as forças internacionais de paz entraram, logo abandonaram qualquer esperança de fazer muçulmanos e cristãos, croatas e sérvios viverem novamente como vizinhos, mesmo aqueles que no passado haviam sido vizinhos pacíficos.
Em outros lugares, mesmo nos países mais civilizados, o mesmo processo talvez não seja tão visível, mas é igualmente predominante. Os turcos de Berlim, os bengaleses de Bradford, os norte-africanos dos subúrbios de Paris não se misturaram às sociedades que os rodeiam. Na verdade, às vezes a segunda geração cultiva sua diferença da cultura dominante de maneira mais agressiva que os imigrantes originais.
Por que a igualdade de direitos dos cidadãos não atinge seu objetivo? Em muitos casos, talvez as pessoas não tenham se esforçado o suficiente. Afinal, no que diz respeito aos judeus, Israel fez um trabalho notável de integração da diversidade. Os Estados Unidos talvez não sejam hoje o mesmo cadinho que foram um século atrás, mas mesmo assim são um bom exemplo.
Talvez seja a falta de força integradora em outras sociedades o que faz as pessoas sentirem que o único lugar a que realmente pertencem seja dentro de seu próprio povo. A globalização pode ter algo a ver com isso assim como a desintegração que acompanha a modernidade.
Para aqueles que não abandonaram a esperança de uma eventual vitória dos valores esclarecidos, mas que não obstante vêem as coisas como elas são no mundo real, uma versão de "separados, mas iguais" pode fornecer pelo menos uma resposta provisória. No que diz respeito à igualdade, garantir direitos plenos de cidadania para todos representa uma grande tarefa. Muito resta a ser feito para alcançá-lo.
No que diz respeito à separação, ela não deveria ser promovida explicitamente, a menos que uma cerca pareça ser a única esperança de paz. Ela deve, no entanto, ser permitida, enquanto ao mesmo tempo deve haver espaços comuns disponíveis e seguros para todos. Londres é um exemplo quando se pensa no relativo sucesso diante de uma extraordinária diversidade. Nessa grande metrópole, muitas pessoas vivem principalmente entre seus pares, mas compartilham os prazeres e os problemas dos espaços públicos. Suas vidas são entrelaçadas -e, no entanto, diferentes.

Ralf Dahrendorf é sociólogo. Foi reitor da London School of Economics e diretor do St. Anthony's College, em Oxford. Copyright: Project Syndicate e Institute for Human Sciences.
Tradução de Luiz Roberto Mendes Gonçalves.


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