São Paulo, domingo, 02 de junho de 2002

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"Genealogias da Amizade" analisa as origens do conceito e como ele foi sendo incorporado ao espaço privado a partir do século 19

Entre quatro paredes

Oswaldo Giacoia Júnior
especial para a Folha

Na mesma provocação em que procurou traçar as regras para a condução do parque humano, Peter Sloterdijk afirmou que, se a filosofia conserva intacta, há 2.500 anos, sua força de atração, ela deve isso à sua capacidade de fazer amigos pela mediação do texto escrito. Por isso, para Sloterdijk, a história da filosofia ocidental -em especial a cultura humanista que nela se insere- é em grande parte o resultado de um diálogo epistolar entre amigos desconhecidos, que se sucedem na cadeia das gerações.
Em seu mais recente trabalho, "Genealogias da Amizade", Francisco Ortega ilustra essa assertiva de Sloterdijk, prosseguindo seu diálogo e aprofundando uma cumplicidade teórica com Hannah Arendt, Michel Foucault, Jacques Derrida, de que resultaram alguns de seus livros anteriormente publicados, e ampliando o raio de abrangência para incluir, no mesmo círculo, Pierre Hadot, Philippe Ariès, Hans Jonas e outros amigos ilustres.
Sua obra mais recente se propõe a reconstituir as genealogias da amizade na cultura ocidental, fazendo-o pela via de uma análise que se desenvolve no duplo registro das práticas sociais e políticas da amizade assim como no âmbito da teorização de tais práticas pela reflexão filosófica.
Para tentar, desde logo, reunir numa formulação compacta a tese fundamental e o objetivo mais amplo do livro, penso que se poderia dizer que, do ponto de vista do autor, as relações de amizade, na tradição ocidental, sempre estiveram profundamente enraizadas no domínio complexo do espaço público e da política -e como tal foram também refletidas pelo discurso filosófico.
Paradoxalmente, entretanto, na história da filosofia, assim como das práticas sociais, percebe-se um nítido movimento ao longo do qual se verifica o reiterado banimento das relações de amizade do espaço público, paralelamente à privatização desse espaço, com o sequestro da amizade no âmbito das relações fraternas ou até mesmo, na modernidade, no círculo intimista dos laços matrimoniais. Dessa maneira, segundo a tese de Ortega, à recodificação familiar da amizade corresponde uma redução das dimensões e possibilidades de ação no espaço público, como movimentos que se recobrem persistentemente em nossa história.
E, para mostrar que o bacilo já se abrigava na semente da maçã, Ortega recorre ao testemunho dos "pais fundadores" da filosofia ocidental, dedicando o primeiro capítulo do livro ao exame da problematização da amizade por Platão e Aristóteles. Sua interessante leitura de "Lísias" e do "Banquete" é levada a efeito com o objetivo de mostrar que, em Platão, ainda podemos encontrar vestígios da antiga ligação helênica entre "Eros" (amor) e "Philia" (amizade), porém já não mais de modo que a amizade pudesse dar abrigo a um vínculo homoerótico, brotado do relacionamento pessoal, recíproco e livremente eleito entre os amigos, mas apenas de acordo com o modelo idealizado em que o Bem constitui o verdadeiro objeto do desejo assim como a liga espiritual entre os amigos reunidos no amor fraternal pela sabedoria.
Nesse sentido, Sócrates pode aparecer como o perfeito amante, à medida que simboliza a mais pura forma da relação entre o pedagogo e seus amigos, modelada de acordo com a contemplação da idéia do Bom, do Belo e do Verdadeiro. Se é certo que Eros subsiste, aliado à "philia", isso só ocorre sob a forma descarnada e transcendente do amor intelectual pelo Bem, de que as relações físicas são um simulacro e uma corrupção.
Já estaria presente, pois, em Platão, segundo Ortega, uma condenação expressa do "amor pelos rapazes", aquele que permite relações sexuais entre os parceiros, toleradas como "ars erótica" nas relações de amizade e de iniciação, tanto no plano do discurso quanto no das práticas sociais.
Aristóteles, por sua vez, restitui a amizade do etéreo mundo platônico das idéias para a arena concreta da cidade grega. Em sua tipologia das formas de "philia", Aristóteles constrói o modelo da verdadeira amizade, identificando-a com a relação preferencial, livremente instituída e recíproca entre cidadãos virtuosos, em que o culto à virtude produz a superfície especular em que os amigos se refletem mutuamente, constituindo sua própria identidade subjetiva a partir da contemplação da mesma virtude na imagem de seu alter ego.


O livro mostra como o processo de despolitização do espaço público determina a dinâmica da moderna vida social


Se, em Aristóteles, os laços de amizade retornam ao domínio do corpo e das relações políticas entre os amigos, desfaz-se completamente, por outro lado, o vínculo entre "Eros" e "philia", ainda subsistente em Platão, do mesmo modo como o código das relações entre amigos passa a ser confiscado pelo léxico do parentesco familiar, especialmente no registro da fraternidade e da filiação.
Na sequência, Francisco Ortega mostra claramente a persistência da influência de Aristóteles no mundo greco-romano, demonstrando como, em Cícero e na tradição da "amiticia" romana que a ele se segue, se mantém a noção aristotélica da verdadeira amizade, baseada em relações eletivas, livres e recíprocas entre cidadãos virtuosos, com um forte componente político no plano da projeção social pela via das relações de amizade, com vista ao desempenho de funções investidas de poder político.
Já no mundo cristão, conserva-se também uma forte influência da concepção aristotélica de amizade, porém traduzida no vocabulário ascético das regras e códigos monásticos. Se é verdade que fica restabelecida aqui a antiga ligação platônica entre amor e amizade, isso se faz com sacrifício do caráter pessoal e eletivo da relação entre amigos concretos. O amor presente em tais relações não apenas é descarnado e ascético mas completamente transfigurado em sua natureza: o verdadeiro amor não é mais "Eros", porém consiste em "caritas" e "agape", ou seja, na união fraterna e universal que faz comungar, num mesmo espírito, a totalidade do gênero humano. De novo, o registro familiar das relações de filiação e de fraternidade se infiltra na percepção e dicção social da amizade.
Com o Renascimento e a passagem para a modernidade, assistimos, segundo Ortega, a uma reativação do papel político da amizade, vivida e teorizada enquanto figura legítima da sociabilidade, tanto sob a forma das relações que se desenvolviam no ambiente das cortes do Antigo Regime -ainda que, nesse domínio, o vocabulário do amor cortês também ditasse as regras para a amizade- quanto daquelas que, nas repúblicas, se ofereciam como ligação entre cidadãos virtuosos.
Entretanto, já por volta do final do século 18 -e, de modo progressivamente acentuado e irreversível, a partir do século 19-, se verifica no Ocidente um movimento de privatização da amizade, desinvestindo-a, de maneira integral, de seu caráter político e de sua inscrição no âmbito público. Ao longo desse processo, a amizade é absorvida no continente privativíssimo das relações familiares e conjugais.
Nesse processo, o enquadramento psiquiátrico e psicológico da homossexualidade no âmbito da patologia e das formas de perversão sexual -assim como a extrema valorização das relações heterossexuais monogâmicas, como estas se configuram no casal vitoriano- instituem a família como o modelo normativo de socialização regular e produtiva. E, com isso, todas as formas alternativas de relações amorosas perdem importância política e passam a se integrar no que Foucault chamou de "dispositivo normatizador da sexualidade".
"Genealogias da Amizade" tem pleno êxito em mostrar como o processo de despolitização e esterilização do espaço público determina a dinâmica da moderna vida social, com uma crescente valorização da vida familiar e uma familiarização progressiva do conjunto da vida privada. Para o autor, nos tempos sombrios em que vivemos, "talvez seja o momento de apostar em outras formas de sociabilidade, tal como a amizade, que, não substituindo a família, possam coexistir com ela e fornecer um apoio material, emocional e cognitivo que permita uma superação solidária dos riscos". (pág. 161).
Se o domínio próprio da amizade radica no espaço aberto entre os indivíduos que compartilham a cena pública e se enfrentam na arena livre do debate político responsável, então o moderno culto narcisista da intimidade -aquilo que Ortega chama de espaço privado de condomínios fechados e de cultura de shopping centers- seria, de fato, um obstáculo considerável a uma estilística da amizade e, com isso, a um experimento social e cultural que pudesse se apresentar como plausível alternativa de solidariedade política numa era de indigência e banalização da vida.

Oswaldo Giacoia Júnior é professor livre-docente de filosofia no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp, autor de "Nietzsche" (Publifolha) e "Labirintos da Alma" (Ed. da Unicamp).


Genealogias da Amizade
173 págs., R$ 27,00 de Francisco Ortega. Iluminuras (r. Oscar Freire, 1.233, CEP 01426-001, SP, tel. 0/xx/11/ 3068-9433).




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