São Paulo, domingo, 2 de agosto de 1998

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Retratos do anonimato



"Resumo de Ana", novo livro de Modesto Carone, substitui metáfora por objetividade


JOSÉ PAULO PAES
especial para a Folha

Os leitores já familiarizados com o pendor para o fantástico e para o simbólico da escrita ficcional de Modesto Carone, tal como dela dão testemunho os seus três livros de contos, irão certamente estranhar o registro por assim dizer "verista" das duas novelas que ele acaba de reunir em "Resumo de Ana". É para evitar os equívocos geralmente suscitados pela latitude do termo "realismo" -em cujo âmbito cabem manifestações tão pouco realista quanto as do realismo dito mágico- que prefiro usar aqui o adjetivo "verista".
Esse adjetivo remete às peculiaridades que a reação ao romantismo assumiu no contexto da literatura italiana. O verismo da prosa de ficção da Itália pós-romântica cultivou o primado da narração objetiva, a qual, sem nenhuma intrusão do autobiográfico, se voltava por inteiro para a fixação do documento humano. Como o fez paradigmaticamente Giovanni Verga em suas novelas e romances. Segundo ele, o artista não devia transparecer na obra de arte, cabendo a esta suscitar a impressão de "fazer-se por si mesma". Fiel a esse programa de impessoalidade narrativa, Verga se ocupou em pintar "a vida do pobre diabo como dura conquista cotidiana" e em escrever "a epopéia das existências afligidas e honestas", como dele disse bem Attilio Momigliano.
Embora os personagens sorocabanos de "Resumo de Ana" nada tenham em comum com os camponeses sicilianos de Verga, a escrita por via da qual vamos tendo notícia da miúda epopéia de suas vidas de pobres diabos às voltas com a "dura conquista cotidiana" está bem próxima do registro verista. Isso na medida em que, para fixar documentariamente o humano, ela se coloca decididamente sob o signo do impessoal e do objetivo.
Tudo leva a crer que tal mudança de registro narrativo não é arbitrária, mas foi imposta pela própria natureza da matéria a narrar. Nas coletâneas de contos que antecederam "Resumo de Ana", Modesto Carone lançava mão dos alogismos do absurdo, do metafórico e do simbólico para representar congenialmente vislumbres dos meandros da interioridade humana de seus protagonistas, meandros a cuja estranheza a descrição pura e simples não alcançaria fazer justiça. Daí resultava uma espécie de teatralização da personagem e de suas situações de vida, como se estivessem sendo vistas, umas e outras, sob uma lente de aumento a lhes deformar as feições até quase o grotesco.
A impessoalidade da narração de "Resumo de Ana" deve ser tomada porém com um ligeiro grão de sal. Na verdade, ela se articula em duas vozes narrativas. A principal, mas indireta, é a de Lazinha, filha de Ana, que, com rememorar a história de vida da mãe, empreende a "busca silenciosa de um sentido para a experiência". Essa rememoração chega até nós, leitores do livro, por meio da voz secundária do filho da Lazinha, o qual não chega a declinar seu próprio nome, mas cuja presença narrativa se denuncia numa que outra rara flexão verbal em primeira pessoa.
O anonimato do narrador secundário, de par com o registro da terceira pessoa por que ele transcreve a fala de Lazinha, indiciam a impessoalidade da narrativa. Com isso, os fatos da inglória existência de Ana, na primeira novela do volume, e da não menos inglória existência de seu filho Ciro, na segunda novela, passam a falar por si sós com uma objetividade verista que dispensa as ênfases do comentário autoral e do álibi autobiográfico.
Nessa fala de puros fatos, há entretanto uma ênfase paradoxal de intensificação da pequenez. A compilação e ordenação deles é quanto basta para pôr em destaque a frustração de vidas comuns cujos esforços por elevar-se acima da mesmice, da estreiteza, da penúria e da desesperança acabam se frustrando.
Responsável pela frustração é em parte o caráter da própria personagem, em parte as circunstâncias em que se vê envolvida. Visto desse ângulo, "Resumo de Ana" aparece como um avatar da novelística do pobre diabo ou do herói fracassado que floresceu entre nós nos anos 30 e 40 e teve o seu momento epifânico em "Os Ratos", de Dionélio Machado.
Ana Godoy de Almeida pertence de certo modo a essa linhagem tão pouco ilustre. Órfã ainda criança de pais lavradores, escapou da exploração do casal protestante de Sorocaba que a adotara e conseguiu adquirir algum refinamento social no lar da família Ellis, em São Paulo, onde serviu como doméstica e depois governanta. A degringolada dos Ellis levou-a de volta a Sorocaba. Ali, o casamento de conveniência com Baldochi, "rude como tantos comerciantes do interior", propiciou-lhe uma situação aparentemente estável.
Embora de nariz torcido, o marido consentia em levá-la, vestida com esmero, a cinemas e teatros -hábitos que Ana aprendera na convivência com os Ellis. A crescente prosperidade financeira de Baldochi não logra abrandar as diferenças de gostos e temperamentos entre os cônjuges. Fonte constante de acrimônia, elas não o impedem contudo de gerarem vários filhos.
Para compensar-se das frustrações conjugais e dar vazão às suas ilusões românticas, Ana intenta dois namoricos que não dão em nada, a não ser as surras que lhe inflige o marido ultrajado. Depois disso, ela se entrega à bebida, vício que a ruína econômica de Baldochi durante a crise de 30 só vem agravar. Degradada no corpo e na alma pelo alcoolismo, Ana morre prematuramente aos 40 e poucos anos de idade.
A história de vida de seu único filho homem, Ciro, retoma a dela para o conduzir, ainda que por diferentes caminhos, à mesma derrota final. Em criança, era Ciro quem acompanhava Ana aos botequins em que ela ia se embriagar. Passa também a acompanhar o pai, como carregador de seu estoque de remédios caseiros, quando, após a falência, Baldochi sai a mascatear pelos lugarejos miseráveis da serra de Paranapiacaba. Cuida dele quando um derrame o incapacita de vez. Para mantê-lo, e manter-se, Ciro exerce as sucessivas profissões de balconista, ferroviário, garçom, tipógrafo, carregador, jardineiro e vendedor de cachaça.
Casa-se duas vezes, torna-se pai de seis filhas, monta tipografia própria, que acaba perdendo na recessão de 1964. Daí por diante sua vida é um declínio constante, até o enfarte que o leva para a cova. Enterram-no inclusive em cova errada, sem lápide que o possa identificar.
Na narração da anti-saga de Ciro, bem mais que na de Ana, o narrador se compraz repetidas vezes em referir logradouros e fastos históricos de Sorocaba. Chega a demorar-se na descrição de alguns, não como hoje são, mas como eram no passado. É o caso da estação da estrada de ferro Sorocabana, evocada em pormenor como uma espécie de santuário do "genius loci". Ou da "praça do canhão" com a estátua do brigadeiro Tobias, cenário do "último ato do grande drama histórico da cidade: a Revolução Liberal de 1042".
O que leva o leitor a perguntar-se se, para além da objetividade documentária de "Resumo de Ana", não haveria algum tipo de nexo simbólico, por mais longínquo ou fantasmático que pudesse ser, entre a decadência da velha ferrovia a que a cidade emprestava o próprio nome e o ocaso político de suas lideranças perrepistas com a fábula de frustrações que Ana e Ciro ali protagonizaram, do nascimento à morte.
E outra pergunta que talvez ocorra ao mesmo leitor é se, ao narrar a vida da mãe, e ao narrar a vida do tio, tiveram Lazinha e/ou seu filho algum resultado na "busca silenciosa de um sentido para a experiência" ou se chegaram tacitamente à mesma conclusão sisifiana de Camus: "A enfadonha monotonia do dia-a-dia carece dum sentido e é o primeiro sinal do absurdo. (...) Esta espessura e esta estranheza do mundo -é o absurdo".
Haverem eles chegado ou não a algum resultado é irrelevante. O que importa é a escrita de Modesto Carone ter conseguido realizar a proeza de, com sua ardilosa neutralidade verista, presentificar ao leitor a espessura e a estranheza do mundo na aparente insignificância de duas vidas sem luz. Mais não se pode nem se deve exigir de um autor de ficção.


José Paulo Paes é ensaísta, poeta e tradutor, autor, entre outros, de "De Ontem para Hoje" (Boitempo) e "Os Perigos da Poesia e Outros Ensaios" (Topbooks).



Resumo de Ana - Modesto Carone.
Companhia das Letras (r. Bandeira Paulista, 702, conjunto 72, CEP 04532-002, SP, tel. 011/866-0801). 114 págs.
R$ 16,00.




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