São Paulo, domingo, 2 de agosto de 1998

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O exílio na terra

LUIS BUENO
especial para a Folha

Por força da repetição constante, já se tornou uma espécie de verdade estabelecida a idéia de que os romances de Jorge de Lima não são obras de maior interesse, muito inferiores a sua poesia. Essa situação acaba resultando em que o leitor já pega os livros -caso pegue- com a leitura, por assim dizer, previamente feita.
No entanto, se esse leitor aproveitar a boa ocasião que se oferece agora, da reedição pela Civilização Brasileira de quase todos os romances de Jorge Lima (ficará faltando, infelizmente, "Salomão e as Mulheres", que só teve uma edição em 1927) e se propuser a lê-los sem preconceito, terá uma boa surpresa e encontrará um romancista que produziu uma obra consistente, com um traço pessoal tão forte quanto aquele que se encontra em sua poesia.
Esse traço pessoal é facilmente perceptível quando lembramos que Jorge de Lima se fez como romancista nos anos 30. Dialogando com a polarização política entre direita e esquerda que definiu a face do período, ele criou para si uma trilha que não foi de adesão absoluta nem para um lado nem para o outro: católico, mas não fascista; preocupado com a questão social e com o proletariado, mas não comunista. Para ele, o problema do homem não se reduzia às questões do "tempo" nem às da "eternidade": "Sou ubíquo: estou em Deus e na matéria", diz o poema de abertura do livro "A Túnica Inconsútil" (1938).
Tal duplicidade já havia sido explorada em "Calunga", romance publicado em 1935 e que se aproximava do modelo do romance social de corte regionalista sem deixar de ser a história de uma busca espiritual. A volta de Lula, o protagonista, à sua terra natal era um projeto de renovação social, concretizado numa ação efetiva de mudança dos hábitos de produção e mando que tenta fazer valer em sua propriedade. Mas era também a busca de suas origens, da reintegração à sua terra e, por consequência, à sua própria natureza.
Em "A Mulher Obscura", de 1939, a questão social é coadjuvante -ainda que responsável por algumas das passagens mais interessantes do livro. No lugar dela, atuando como força terrena sem a qual não há vida espiritual, está o amor expresso na relação homem-mulher.
Assim como o Lula de "Calunga", Fernando de "A Mulher Obscura" volta à pequena cidade nordestina em que nasceu, Madalena, mas seu objetivo primeiro não é transformar socialmente o lugar, e sim encontrar a "bem-amada". Nessa procura ele se envolverá com três mulheres. A primeira delas é Constança, companheira de infância que é para ele, além de encarnação viva da pureza, alguém capaz de remetê-lo à sua origem, já que sua face se confunde com a face da mãe -morta quando ele era criança-, que, por sua vez, é a imagem da primeira mulher, do próprio mistério da criação.
A segunda é Irina, espécie de mulher fatal cujo interesse para ele é apenas sexual. Por fim, Hilda, mulher bela, de inteligência aguda e espiritualmente inquieta como Fernando. Constança é a verdadeira bem-amada, mas Fernando, atraído por outras experiências amorosas, é incapaz de se decidir a ficar definitivamente com ela, criando com sua hesitação uma situação complicada que não se resolverá até a morte da moça. O interesse por Irina cessa rapidamente. Quanto a Hilda, ganha grande importância depois da morte de Constança, já que em sua face Fernando vê refletida a face da amada morta.
Mas não são essas as faces que de fato importam. Depois de, numa madrugada, tentar invadir o quarto de Hilda, Fernando causa um escândalo e se vê obrigado a deixar Madalena e voltar à cidade grande. Nesse exílio das origens, que é, em última análise, um exílio de si mesmo, ele vai enfim compreender que não é uma face humana a que procura, mas sim a face divina, a face do Cristo nessas faces humanas.
A multiplicidade de seus interesses amorosos, mais que um caso de inquietude sexual ou de don-juanismo, é fruto da multiplicidade dos homens e de Deus -multiplicidade, aliás, que é um dos temas mais recorrentes da poesia de Jorge de Lima naquele momento. Fernando percebe, então, que vive um impasse, uma procura sem fim. Não vê como chegar a Deus sem passar pelo amor humano e, ao mesmo tempo, percebe que por intermédio desse amor não obterá mais que um reflexo da presença divina.
"A Mulher Obscura" é um texto fundamental para quem quer compreender a obra em constante e corajosa mutação que Jorge de Lima construiu. Mais do que isso, "A Mulher Obscura" ajuda a compreender, para além dos esquematismos rígidos, a grande produção ficcional do Brasil na década de 30. Acima de tudo, apesar de incorrer vez por outra num dos grandes vícios do seu tempo, o de fazer com que o problema que se quer colocar e discutir deixe em segundo plano a construção romanesca, que resulta um tanto irregular, é um livro muito bonito, escrito numa prosa precisa: poética, mas fluente e desprovida de adereços.


Luis Bueno é professor de literatura brasileira na Universidade Federal do Paraná.


A Mulher Obscura - Jorge de Lima.
Ed. Civilização Brasileira (av. Rio Branco 99, CEP 20040-040, RJ, tel. 021/263-2082). 240 págs.
R$ 24,00.




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