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A mania de manipular tudo e o anseio de dominar um mundo de objetos são inerentes tanto ao totalitarismo econômico do mercado quanto ao totalitarismo político do Estado
Elefantes brancos
Robert Kurz
No antigo reino de Sião, quando
um cortesão caía em desgraça,
o monarca lhe presenteava
com um elefante branco; os
enormes custos para manter esse raro
animal significavam a ruína certa para
quem o recebia de presente.
Hoje, são os ambiciosos projetos técnicos e econômicos de rentabilidade duvidosa (no jargão dos economistas e teóricos do desenvolvimento) que são apelidados simbolicamente de elefantes brancos. O historiador alemão Dirk van Laak
publicou em 1999 um estudo no qual
descreve a história desses megaprojetos
nos século 19 e 20.
A maioria deles fracassou ou se revelou
de antemão inviável. Van Laak inclui entre eles o colonialismo europeu e a idéia
de uma exploração econômica do espaço
terrestre e dos planetas vizinhos do Sistema Solar, a idéia de uma sociedade guiada pela tecnocracia da "engenharia social" e o plano do engenheiro alemão
Hermann Sörgel, conhecido nos anos 30
pelo nome de "Atlantropa", de separar o
Mediterrâneo do Atlântico com uma represa junto do estreito de Gibraltar.
Sejam de natureza política, econômica
ou técnica, o traço comum de tais projetos é sua mania de grandeza. É o velho
sonho de dominação: sociedades inteiras
são como material plástico à intervenção
de uma divindade externa; imensos
exércitos operários são mobilizados para
uma ação comum, de fundo econômico
e tecnológico. Extensas regiões, continentes inteiros são transformados em
benefício de planos ambiciosos, rios têm
seus cursos retificados, nascem mares
artificiais ou então secam reservas naturais de águas doce e salgada. E, quando a
força para tanto não basta, o menos que
se faz é erigir edifícios monumentais, sobre-humanos.
Efeitos avassaladores Poucas dessas obras resultam num relativo proveito
social, sobretudo sistemas de transporte
para vastas extensões, como por exemplo a ferrovia Transiberiana ou a Panamericana. A maioria dos projetos monumentais é absurda, muitos são interrompidos, todos são deficitários. Os efeitos
sobre a paisagem e a natureza costumam
ser avassaladores, pois o planejamento,
autocrático, ignora as considerações ecológicas. Sempre foram, até hoje, os potentados dos países mais miseráveis que
quiseram se eternizar para a posteridade
com uma espécie de mania faraônica. Estádios majestosos, cuja capacidade não
pode nem sequer ser preenchida, ou aeroportos ao estilo de metrópoles, para os
quais o país é pequeno demais, testemunham a megalomania dos ditadores.
Como todos sabem, também os nazistas e o fascismo italiano tinham predileção por formas faraônicas. E não é sem
justiça que se atribui ao capitalismo de
Estado da União Soviética haver deixado
para trás uma pilha de corpos de elefantes brancos -ruínas do planejamento
burocrático, das quais os antigos Estados
da república socialista, literalmente arruinados, estão repletos.
Há quem esteja inclinado a tomar esses
fenômenos como típicos produtos do
passado, da economia estatal e do totalitarismo político, os quais não teriam
mais lugar na época neoliberal da desregulamentação, das reformas de mercado
e da democratização global. Mas o caso é
justamente o contrário. A queda pelo gigantismo é um traço do capitalismo em
geral, inclusive do liberal-democrático.
A mania de manipular tudo, que rebaixa homem e natureza a simples materiais, e o anseio de dominar um mundo
de objetos são inerentes tanto ao totalitarismo econômico do mercado quanto ao
totalitarismo político do Estado. Os próprios magnatas e mandarins da concorrência de mercado criam tendências faraônicas. Particularmente nos Estados
Unidos, as obras colossais de reis do dinheiro têm uma longa tradição. Só para
citar um exemplo, o ricaço Donald
Trump fez erigir uma réplica, em tamanho real, do conjunto de templos indianos Taj Mahal.
Mas o amor do capitalismo por projetos monumentais não se restringe a tais
caprichos pessoais de miliardários. Não
é à toa que Keynes ilustra ironicamente
sua teoria de uma política econômica anticíclica do "deficit spending" dizendo
que ao Estado cumpre erguer pirâmides
para criar "empregos". Embora a política keynesiana das intervenções estatais
tenha sido oficialmente sepultada e substituída pelo consenso neoliberal, é curioso notar que nada mudou nesse sentido.
A despeito da guinada ideológica, o
número de ruínas surgidas no capitalismo de Estado não diminuiu, antes cresceu, sob a égide neoliberal. Há claras razões estruturais para o fato de que, sob a
livre concorrência, sejam criados e procriados mais e mais elefantes brancos.
Onde o interesse capitalista se faz
anunciar como uma sensação de fome e
sede, a ideologia cala, tal como a moral e
a religião. E é todo um feixe de interesses
que impele por si só o monumentalismo
deficitário. Como bem viu Keynes, é o interesse sociopolítico no "emprego" capitalista que conduz forçosamente a essas
tendências. E é, como se sabe, o desenvolvimento do próprio capital produtivo
que libera contigentes cada vez maiores
de desempregados em escala mundial e
gera crises sociais.
Oficialmente a ideologia neoliberal diz
superar tais crises não pelos investimentos estatais, mas pelo livre jogo das forças
de mercado, reduzindo os custos da
mão-de-obra, ou seja, cortando os salários, principalmente os do setor de serviços. Mas e se, em razão da mesma crise
de que o desemprego de massas é resultado, houver muito poucos que ganhem
bem o suficiente para poder "empregar"
os desempregados como domésticos,
jardineiros, faxineiros, empacotadores
etc. a salários de fome? É aí que tornam a
surgir as obras faraônicas estatais ou
subvencionadas pelo Estado, com propósitos ora mais, ora menos absurdos.
Os diversos projetos faraônicos, com
seus salários pagos pelo Estado, não só
preenchem os mesmos objetivos econômicos de redução de custos da mão-de-obra do setor de serviços do mercado
mas também oferecem a vantagem de
organizar burocraticamente e disciplinar
militarmente um material humano "inútil" segundo critérios capitalistas, ou seja,
potencialmente perigoso.
É parte do ultraliberalismo dos Estados
Unidos que delitos menores como furtos
de alimento para consumo e dirigir sem
carteira de habilitação sejam punidos
com anos ou décadas de prisão. Tal como na União Soviética stalinista, hoje
nos EUA se encontram cerca de 2 milhões de pessoas em penitenciárias, onde
muitas vezes são humilhadas com requintes de sadismo, saboreiam comidas
emboloradas e se arrastam com correias
nos pés, igual a trabalhadores forçados,
para a construção de estradas ou projetos semelhantes de consumo estatal. Que
é isso senão uma forma particular de
construção de pirâmides capitalistas? Segundo achados recentes da egiptologia,
os faraós teriam tratado muito melhor
seus escravos do que, hoje, os EUA tratam seus cidadãos delinquentes.
Papel decisivo Mas há também um
outro interesse, diretamente econômico,
nas pirâmides ou nos elefantes brancos.
Em geral, esses projetos de "hybris" capitalista são potencialmente catastróficos
-e portanto absurdos segundo a cartilha da economia burguesa.
Seu uso, se é que algum dia são levados
a cabo, quase nunca se prende a uma
produção rentável. Isso não vale, porém,
para as empresas envolvidas na construção. Para estas a coisa muda de figura: o
elefante branco vira a vaca leiteira do lucro. Tanto faz para tais empresas de onde
vem o dinheiro para o respectivo projeto
faraônico e qual será o resultado. O importante é encher os próprios cofres. Sobretudo em tempos bicudos, sempre é
motivo de gratidão uma encomenda estatal, reze a pessoa ou não pela cartilha
do neoliberalismo.
Não admira, pois, que mesmo numa
era de pretenso liberalismo de mercado
os elefantes brancos gozem de encabulado prestígio. Na política de desenvolvimento, eles continuam a cumprir um papel decisivo, sempre sustentados pelo
Banco Mundial. Protótipo de tais programas é a construção de enormes represas, que deixa como saldo a inundação
de vastas regiões. No Brasil, é a represa
de Itaipu, no rio Paraná, que é tida por
projeto faraônico; na Argentina, a represa Yacyreta, que é vista como "monumento da corrupção". Um dos projetos centrais subsidiados pelo Banco
Mundial é a represa Sardar Sarovar, na
Índia, "a maior de um imenso programa
de construção que inclui 30 represas de
grande porte, 135 de porte médio e 3.000
de pequeno porte bem como obras de
canalização no total de 80 mil quilômetros. O plano prevê o deslocamento de 14
milhões (!) de indianos" (Van Laak).
Bem ao estilo de Stálin, cuja industrialização à maneira do Terror ganhou fama
pelo deslocamento de enormes grupos
populacionais, os moradores das regiões
alagadas são expulsos de suas terras, suas
ações de resistência, sufocadas com força
policial e militar. Também na China a
"abertura de mercado" é acompanhada
de tais programas faraônicos.
O mais conhecido é a construção da
imponente represa das Três Gargantas,
no Iang-Tsé, de onde milhões de pessoas
terão de ser transferidas e cujos danos
ecológicos são imprevisíveis. Projetos
análogos estão em curso na África. Somente depois da pressão de protestos
mundiais o Banco Mundial tem procedido agora com mais precaução no financiamento de tais programas, sem que entretanto a linha de sua política tenha mudado fundamentalmente.
Nos centros industriais do Ocidente, os
elefantes brancos consistem muitas vezes em produtos de alta tecnologia superdimensionados. Um exemplo é o
Transrapid, trem de alta velocidade desenvolvido na Alemanha, que se revelou
um insaciável devorador de recursos e
jamais foi posto em uso de forma rentável, sem contar que os respectivos trilhos
abriram profundos sulcos na paisagem e
já causaram vivos protestos dos moradores num trecho de testes no norte da Alemanha. Apesar disso, o Transrapid é
uma das fantasias tecnológicas prediletas dos empresários alemães. Depois que
o projeto fracassou na própria Alemanha por razões de custo, a previsão é que
ainda seja salvo por possíveis encomendas da China e dos Estados Unidos.
Máquina militar O maior e mais
gordo de todos os elefantes brancos é naturalmente o complexo militar-industrial do Ocidente, sobretudo dos Estados
Unidos, a última potência mundial. No
setor da indústria armamentista, os liberais também adoram a síndrome econômico-estatal, embora a máquina militar
seja o que há de mais improdutivo em
termos econômicos. Esse consumo armamentista improdutivo cria, é certo,
uma montanha de débitos, onera gerações futuras e, a longo prazo, representa
um fator de risco para o sistema financeiro, mas, a exemplo dos programas de represas ou do Transrapid, ele equivale a
uma injeção de moeda capaz de avivar o
capitalismo financeiro.
A nova economia, que na realidade foi
uma economia da bolha, precisou, como
pontapé inicial, do keynesianismo militar da era Reagan. E não é por acaso que
o governo do presidente Bush retomou o
plano armamentista faraônico na figura
do sistema de defesa antimísseis.
Esse projeto não possui somente razões estratégico-militares mas também
uma função econômica: cabe a ele escorar a queda da nova economia. As chances de sucesso, porém, são mais do que
duvidosas, porque a situação não é tão
mais confortável como nos tempos de
Reagan. Mesmo a curto prazo a administração Bush já interveio à maneira militar-keynesiana. A alta nas Bolsas no primeiro semestre de 2001 foi induzida por
números auspiciosos na indústria automobilística norte-americana, mas que
não se assentavam num aumento na
compra de veículos de passeio, e sim em
encomendas de veículos militares.
Na era de uma economia especulativa,
de que somos testemunha há mais de
uma década em escala mundial, os elefantes brancos não são gerados somente
pelos gastos estatais mas também diretamente pelo impulso econômico do capital financeiro. O "capital fictício" das bolhas financeiras não pode ser armazenado eternamente nos mercados financeiros: ele precisa sempre buscar novas possibilidades de ativos reais.
Mas, como não são possíveis investimentos reais rentáveis, o capital excedente abre caminhos inusitados. Ao lado
de projetos arquitetônicos suntuosos,
cada bolha especulativa na história econômica moderna trouxe consigo todo tipo de projeto fantasioso. Só isso explica
por que, nos anos 90, o Sudeste asiático
foi entulhado de monstruosos arranha-céus, a maioria hoje às moscas, ou que os
cartéis das telecomunicações, no calor da
hora, pagaram somas inacreditáveis pela
tecnologia incipiente e de sucesso duvidoso da internet móvel.
A economia-bolha neoliberal deixará
suas ruínas grotescas tal como as ditaduras do totalitarismo político. Lá como cá,
os cadáveres dos elefantes brancos atestam a profunda irracionalidade de um
modo de vida e produção que se abandonou ao fim em si mesmo da "valorização
do valor".
Robert Kurz é sociólogo e ensaísta alemão, autor
de "O Colapso da Modernização" (ed. Paz e Terra)
e "Os Últimos Combates" (ed. Vozes). Ele escreve
mensalmente na seção "Autores", do Mais!.
Tradução de José Marcos Macedo.
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