|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
+ sociedade
A dissolução do racismo
A Lei Afonso Arinos, que transformou em contravenção
a discriminação por preconceito de raça e cor, completa 50 anos
Marco Antonio Villa
especial para a Folha
A Lei Afonso Arinos (1390/51)
completou 50 anos. Foi a primeira lei brasileira que transformou
em contravenção penal a prática
de atos resultantes de preconceitos de raça e de cor. Curiosamente foi apresentada ao Congresso Nacional por um deputado da União Democrática Nacional
(UDN), um partido reconhecidamente
conservador. Em 1946 deputados do
Partido Comunista do Brasil tinham rejeitado durante a Assembléia Constituinte a discussão sobre racismo, pois,
segundo acreditavam -mesmo tendo
um deputado negro, Claudino José da
Silva-, era um tema que desviava da
questão central: a luta de classes.
A legislação brasileira até então tinha
ignorado o racismo e o preconceito. A
Constituição de 1946 fez somente uma
breve referência à proibição da propaganda de preconceitos de raça e de classe
(art. 141, parágrafo 5º), pois a proposta
de uma menção explícita, apresentada
também por um deputado udenista, Hamilton Nogueira, havia sido derrotada.
De acordo com Arinos, dois fatos levaram à apresentação do projeto em julho
de 1950: o primeiro foi a discriminação
recebida pelo seu motorista particular,
negro, que era casado com uma catarinense de descendência alemã e que não
pôde entrar em uma confeitaria em Copacabana, acompanhando a mulher e os
filhos, devido à proibição imposta pelo
proprietário.
O segundo foi um grande escândalo: a
bailarina negra americana Katherine
Dunham deslocou-se do Rio de Janeiro
para São Paulo para uma temporada
com sua companhia no Teatro Municipal, mas foi impedida de se hospedar no
hotel onde tinha sido feita a reserva. Posteriormente hospedou-se em outro hotel
e permaneceu em São Paulo durante
duas semanas, apresentando-se com
grande sucesso, apesar dos dissabores da
primeira apresentação numa noite fria,
com uma orquestra inaudível e um grande atraso, devido à demora na chegada
dos cenários que vieram do Rio de Janeiro pela Central do Brasil.
Afonso Arinos apresentou o projeto,
que acabou não recebendo nenhuma
emenda na Câmara ou no Senado de outros congressistas, definindo que constituía contravenção penal por preconceito
de raça e de cor recusar hospedagem em
hotel, pensão, estalagem ou estabelecimento do mesmo fim; recusar vender ou
atender clientes em restaurantes, bares,
confeitarias; recusar inscrição de aluno
em estabelecimento de ensino de qualquer curso ou grau; obstar o acesso a
qualquer cargo do funcionalismo público ou o serviço em qualquer ramo das
Forças Armadas; recusar entrada em estabelecimento público, de diversões ou
esportes, bem como em salões de cabeleireiros ou barbearias e negar emprego
ou trabalho em autarquia, sociedade de
economia mista, empresa concessionária de serviço público ou empresa privada. Além da punição pecuniária, as penalidades incluíam, conforme o caso, a
perda de cargo e prisão de três meses a
um ano.
Adesão entusiasta
O projeto ganhou o apoio de vários deputados, mas,
como reconhece o autor, a adesão entusiasta de Gilberto Freyre colaborou para
a sua aprovação. Em um rápido discurso, Freyre recordou a humilhação sofrida pela bailarina americana em São Paulo, "fato que não deve ficar sem uma palavra de protesto nacional", e recordou
que "o silêncio cômodo seria uma traição aos nossos deveres de representantes
de uma nação que faz do ideal, se não
sempre da prática, da democracia social,
inclusive a étnica, um dos seus motivos
de vida, uma das suas condições de desenvolvimento".
Segundo Afonso Arinos, a inclusão do
preconceito de cor foi para ressaltar a especificidade brasileira, "onde o problema negro é mais importante do que o judeu". Na justificativa do projeto, lembrou que "ninguém sustenta, atualmente, a sério, que a pretendida inferioridade
dos negros seja devida a outras razões
que não ao seu status social e que a influência política, por vezes considerada
nefasta, dos judeus tenha outra causa senão o isolamento político e a perseguição
racial que há milênios atormentam essa
velha nação". Posição sensivelmente distinta da década anterior, quando Arinos
flertou com o anti-semitismo, como no
livro "Preparação ao Nacionalismo".
A denominação da lei No início de
1951 Getúlio Vargas tomou posse na Presidência da República, agora retornando
ao poder "nos braços do povo". A rápida
tramitação do projeto nas duas casas do
Congresso Nacional permitiu que em 3
de julho a lei fosse promulgada. Aí começou uma nova batalha: a denominação
da lei.
Os getulistas passaram a designá-la Lei
Getúlio Vargas, enquanto os udenistas
protestavam na imprensa, dizendo que o
presidente tinha somente promulgado a
lei e que o seu autor e maior defensor tinha sido Afonso Arinos. Porém os esforços dos getulistas foram em vão, pois a lei
nº 1390/51 acabou ficando conhecida como Lei Afonso Arinos.
Mas, se a aprovação da lei foi um processo rápido -apesar das cartas ameaçadoras recebidas por Afonso Arinos,
que iam desde ameaças pessoais até acusações de que seu avô era um padre negro-, diversas instituições continuaram a manter-se impermeáveis ao dispositivo legal. Recorda Clovis Moura que a
congregação dos missionários da Sagrada Família do Crato, Ceará, em 1958, em
um folheto de propaganda determinava
que uma das condições de ingresso no
seminário era que o candidato deveria
ter cor clara.
Apesar dos protestos de lideranças negras e da imprensa, o superior da ordem
justificou que não era preconceito a exclusão de negros e mulatos, mas que "a
tais vocações é necessário dispensar uma
vigilância de todo especial e, mesmo assim, quase sempre aberram e não conseguem dominar as suas inclinações, de
modo que ou são dispensados ou eles
mesmos desistem com o tempo das suas
aspirações. Parece que a permanente
convivência com os rapazes de outra cor,
que, em geral, estão em maioria, os desnorteia e os faz esquecer o ideal que inicialmente abraçaram".
Desde a promulgação da Lei Afonso
Arinos foram aprovadas diversas leis estaduais e municipais tratando do preconceito de raça e de cor, incluindo também os preconceitos de sexo, idade e estado civil. A Constituição de 1988, no artigo 5º, inciso XLII, transformou a prática do racismo em crime inafiançável e
imprescritível, sujeito à pena de reclusão.
Uma das críticas a esse inciso é que a expressão racismo reduz o preconceito a
uma questão que envolve a raça, ignorando outros preconceitos, conforme o
disposto na lei nº 7437/85.
Nas suas memórias, Afonso Arinos escreveu que a lei nº 1390/51 foi "a iniciativa de maior repercussão social e seguramente a mais duradoura historicamente,
de toda a minha vida parlamentar. Na
modéstia de minhas realizações políticas, se fiz alguma coisa importante, foi
realmente esta".
Marco Antonio Villa é professor de história da
Universidade Federal de São Carlos e autor de, entre outros, "Vida e Morte no Sertão - História das
Secas no Nordeste nos Séculos 19 e 20" (ed. Ática).
Texto Anterior: Micro/Macro - Marcelo Gleiser: Inteligência artificial segundo Spielberg Próximo Texto: + autores - Robert Kurz: Elefantes brancos Índice
|