São Paulo, domingo, 02 de setembro de 2001

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+ sociedade

A dissolução do racismo

A Lei Afonso Arinos, que transformou em contravenção a discriminação por preconceito de raça e cor, completa 50 anos

Marco Antonio Villa
especial para a Folha

A Lei Afonso Arinos (1390/51) completou 50 anos. Foi a primeira lei brasileira que transformou em contravenção penal a prática de atos resultantes de preconceitos de raça e de cor. Curiosamente foi apresentada ao Congresso Nacional por um deputado da União Democrática Nacional (UDN), um partido reconhecidamente conservador. Em 1946 deputados do Partido Comunista do Brasil tinham rejeitado durante a Assembléia Constituinte a discussão sobre racismo, pois, segundo acreditavam -mesmo tendo um deputado negro, Claudino José da Silva-, era um tema que desviava da questão central: a luta de classes. A legislação brasileira até então tinha ignorado o racismo e o preconceito. A Constituição de 1946 fez somente uma breve referência à proibição da propaganda de preconceitos de raça e de classe (art. 141, parágrafo 5º), pois a proposta de uma menção explícita, apresentada também por um deputado udenista, Hamilton Nogueira, havia sido derrotada. De acordo com Arinos, dois fatos levaram à apresentação do projeto em julho de 1950: o primeiro foi a discriminação recebida pelo seu motorista particular, negro, que era casado com uma catarinense de descendência alemã e que não pôde entrar em uma confeitaria em Copacabana, acompanhando a mulher e os filhos, devido à proibição imposta pelo proprietário. O segundo foi um grande escândalo: a bailarina negra americana Katherine Dunham deslocou-se do Rio de Janeiro para São Paulo para uma temporada com sua companhia no Teatro Municipal, mas foi impedida de se hospedar no hotel onde tinha sido feita a reserva. Posteriormente hospedou-se em outro hotel e permaneceu em São Paulo durante duas semanas, apresentando-se com grande sucesso, apesar dos dissabores da primeira apresentação numa noite fria, com uma orquestra inaudível e um grande atraso, devido à demora na chegada dos cenários que vieram do Rio de Janeiro pela Central do Brasil. Afonso Arinos apresentou o projeto, que acabou não recebendo nenhuma emenda na Câmara ou no Senado de outros congressistas, definindo que constituía contravenção penal por preconceito de raça e de cor recusar hospedagem em hotel, pensão, estalagem ou estabelecimento do mesmo fim; recusar vender ou atender clientes em restaurantes, bares, confeitarias; recusar inscrição de aluno em estabelecimento de ensino de qualquer curso ou grau; obstar o acesso a qualquer cargo do funcionalismo público ou o serviço em qualquer ramo das Forças Armadas; recusar entrada em estabelecimento público, de diversões ou esportes, bem como em salões de cabeleireiros ou barbearias e negar emprego ou trabalho em autarquia, sociedade de economia mista, empresa concessionária de serviço público ou empresa privada. Além da punição pecuniária, as penalidades incluíam, conforme o caso, a perda de cargo e prisão de três meses a um ano.

Adesão entusiasta
O projeto ganhou o apoio de vários deputados, mas, como reconhece o autor, a adesão entusiasta de Gilberto Freyre colaborou para a sua aprovação. Em um rápido discurso, Freyre recordou a humilhação sofrida pela bailarina americana em São Paulo, "fato que não deve ficar sem uma palavra de protesto nacional", e recordou que "o silêncio cômodo seria uma traição aos nossos deveres de representantes de uma nação que faz do ideal, se não sempre da prática, da democracia social, inclusive a étnica, um dos seus motivos de vida, uma das suas condições de desenvolvimento". Segundo Afonso Arinos, a inclusão do preconceito de cor foi para ressaltar a especificidade brasileira, "onde o problema negro é mais importante do que o judeu". Na justificativa do projeto, lembrou que "ninguém sustenta, atualmente, a sério, que a pretendida inferioridade dos negros seja devida a outras razões que não ao seu status social e que a influência política, por vezes considerada nefasta, dos judeus tenha outra causa senão o isolamento político e a perseguição racial que há milênios atormentam essa velha nação". Posição sensivelmente distinta da década anterior, quando Arinos flertou com o anti-semitismo, como no livro "Preparação ao Nacionalismo".

A denominação da lei
No início de 1951 Getúlio Vargas tomou posse na Presidência da República, agora retornando ao poder "nos braços do povo". A rápida tramitação do projeto nas duas casas do Congresso Nacional permitiu que em 3 de julho a lei fosse promulgada. Aí começou uma nova batalha: a denominação da lei.
Os getulistas passaram a designá-la Lei Getúlio Vargas, enquanto os udenistas protestavam na imprensa, dizendo que o presidente tinha somente promulgado a lei e que o seu autor e maior defensor tinha sido Afonso Arinos. Porém os esforços dos getulistas foram em vão, pois a lei nº 1390/51 acabou ficando conhecida como Lei Afonso Arinos.
Mas, se a aprovação da lei foi um processo rápido -apesar das cartas ameaçadoras recebidas por Afonso Arinos, que iam desde ameaças pessoais até acusações de que seu avô era um padre negro-, diversas instituições continuaram a manter-se impermeáveis ao dispositivo legal. Recorda Clovis Moura que a congregação dos missionários da Sagrada Família do Crato, Ceará, em 1958, em um folheto de propaganda determinava que uma das condições de ingresso no seminário era que o candidato deveria ter cor clara.
Apesar dos protestos de lideranças negras e da imprensa, o superior da ordem justificou que não era preconceito a exclusão de negros e mulatos, mas que "a tais vocações é necessário dispensar uma vigilância de todo especial e, mesmo assim, quase sempre aberram e não conseguem dominar as suas inclinações, de modo que ou são dispensados ou eles mesmos desistem com o tempo das suas aspirações. Parece que a permanente convivência com os rapazes de outra cor, que, em geral, estão em maioria, os desnorteia e os faz esquecer o ideal que inicialmente abraçaram".
Desde a promulgação da Lei Afonso Arinos foram aprovadas diversas leis estaduais e municipais tratando do preconceito de raça e de cor, incluindo também os preconceitos de sexo, idade e estado civil. A Constituição de 1988, no artigo 5º, inciso XLII, transformou a prática do racismo em crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão. Uma das críticas a esse inciso é que a expressão racismo reduz o preconceito a uma questão que envolve a raça, ignorando outros preconceitos, conforme o disposto na lei nº 7437/85.
Nas suas memórias, Afonso Arinos escreveu que a lei nº 1390/51 foi "a iniciativa de maior repercussão social e seguramente a mais duradoura historicamente, de toda a minha vida parlamentar. Na modéstia de minhas realizações políticas, se fiz alguma coisa importante, foi realmente esta".


Marco Antonio Villa é professor de história da Universidade Federal de São Carlos e autor de, entre outros, "Vida e Morte no Sertão - História das Secas no Nordeste nos Séculos 19 e 20" (ed. Ática).


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