São Paulo, domingo, 02 de setembro de 2001

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Clássico da sociologia do século 20, "A Sociedade de Corte", de Norbert Elias, investiga como a etiqueta se tornou um eixo de sustentação das monarquias

Teatro da dominação

Lilia Moritz Schwarcz
especial para a Folha

Nos tempos de Luiz 14 o "levantar da rainha" mais se parecia com uma questão estratégica, para os negócios do Estado. Era responsabilidade da dama do palácio vestir-lhe a combinação e os demais costumes, mas, se surgisse uma princesa real, cabia a esta a honra de proceder o cerimonial. Sucede que, certo dia, depois de a rainha ter sido despida pelas suas damas, a camareira entregou a camisa para a dama de honra, para que esta a passasse à rainha. Seguindo o cerimonial, a dama de honra devolveu a camisa à camareira e ela se preparava para dá-la à rainha quando, inesperadamente, adentrou o quarto a condessa de Orleans.
Diante de tal fato, rapidamente, a dama de honra devolveu a camisa à camareira que a entregou à condessa, uma vez que cabia a ela a honra. Nesse ínterim, surgiu uma dama de nobreza ainda superior na hierarquia da corte: a condessa de Provença. Imediatamente a camisa foi devolvida à camareira que a endereçou à condessa, já que ela merecia, agora, o privilégio. Enquanto as damas faziam esse jogo de "passa-passa", a rainha, completamente nua, esperava pela conclusão do ritual.
A cena poderia ser lida em muitas chaves e talvez a menos apropriada seja aquela que desfaz do que não entende e desconhece sentido em lógicas do passado. Nesse caso, porém, ela faz as vezes de um bom pretexto e ilumina a reflexão sobre aspectos particularmente definidores da realeza: seu caráter teatral e a dimensão simbólica que constitui o poder político. Se todo sistema político carrega consigo esse tipo de dimensão, é talvez na monarquia que se concentra, de maneira mais formalizada e evidente, o uso de símbolos e rituais como alicerce do poder. Nesse sistema político a etiqueta ganha tal importância que realidade e representação se confundem em um jogo intrincado, em que o ritual não está só nos costumes mas consta das próprias leis.

O toque real Essa pequena narrativa, que nada tem de ingênua, introduz, ainda, o universo da etiqueta, parte fundamental na estrutura desse tipo de Estado, em que o que importa mesmo é a arte do "ver e ser visto". E tal descoberta não é recente. Dizia Montesquieu (1689-1755) que "o esplendor que envolve o rei é parte capital de sua própria pujança". Seguindo de perto tais pistas, Marc Bloch, no livro "Os Reis Taumaturgos", publicado em 1924, analisava o fenômeno do toque real e seu caráter maravilhoso, demonstrando como se devia atentar antes para a expectativa coletiva do milagre do que para a evidência do milagre em si.
Na verdade, não foram poucos os autores que destacaram a relevância do ritual na efetivação do poder, no caso monárquico: Starobinski com a análise dos símbolos da realeza; Kantorovicz com a demonstração do corpo duplo do rei, o humano e o divino; e ainda Clifford Geertz, que insistiu na idéia de que em Bali não existiam distinções entre realidade e representação.
Aí estavam dispostos os vínculos entre lógica racional e lógica simbólica, expostos, porém, a partir de ângulos diversos. Com efeito, as vestes, os objetos, a ostentação e os rituais próprios da monarquia são parte essencial desse regime, constituem sua representação pública e, no limite, garantem sua eficácia. Como mostra o provérbio popular, "rei que é rei não perde a realeza" e, se a perde..., é cada vez menos rei.
Mas foi Norbert Elias quem, de forma magistral, compreendeu a importância da etiqueta no interior do Antigo Regime, encontrando uma lógica que nada tinha a ver com a existência de vogas aristocráticas luxuosas e sem sentido. "A Sociedade de Corte", que chega ao Brasil com atraso -uma vez que foi escrito originalmente como tese universitária na Alemanha, em 1933, mas publicado pela primeira vez na Inglaterra apenas em 1969-, é daqueles livros que resistem às armadilhas do tempo e mostram como boas idéias não têm data de vencimento. Junto a "O Processo Civilizador", cada um à sua maneira, "A Sociedade de Corte" revela os alicerces da obra de Elias e sua aposta em uma interpretação a um só tempo histórica e sociológica. "O Processo Civilizador" (concluído na Alemanha em 1937) mostra como não existem atitudes naturais entre os homens e de que maneira a civilização leva ao controle dos impulsos, e não o contrário. No caso de "A Sociedade de Corte" o desafio é de alguma maneira paralelo. Trata-se de entender a organização dessa sociedade específica que, tendo o monarca como centro, se inscrevia a partir de tensões sempre equilibradas e dispostas tal qual uma rede segura.
Desconstruindo essa estrutura bem montada, Norbert Elias ilumina a arquitetura dessa organização que gira em torno do rei e de um tipo de expediente que pressupõe uma exposição e afirmação constantes. Em cada gesto estaria presente uma economia simbólica, um fetiche do prestígio, assim como por detrás do ritual residiria uma concepção profunda de etiqueta: garantia de uma certa estabilidade de posições, marca visível de relações que se constituem de forma invisível. Tomando a forma de um "argumento cênico", a etiqueta transforma-se num fim em si mesmo, parte integral e essencial do Estado.

Distinção e privilégio Com efeito, a partir do Renascimento a importância dessas sociedades de corte cresce em todos os países da Europa, representando, entre os séculos 17 e 18, um modelo de prática política. Talvez o exemplo mais acabado desse tipo de estrutura tenha existido na França no século 17, durante o reinado de Luiz 14, e é sobre ela que Elias investe. Em Versalhes, deu-se a ligação mais evidente entre a pujança do reino e a grandeza da corte, quando, após sua "domesticação", a nobreza passaria a orbitar em torno do rei e dessa sociedade do teatro internalizado.
Categorias perceptíveis diferenciavam os homens desse mundo do resto da multidão. Não só nas habitações, mas o vestuário, as expressões, adereços e festas organizavam de forma visível elementos que faziam parte de uma profunda concepção da sociedade e de suas diferenças. É assim que nessa corte das marcas exteriores cada detalhe se converte em símbolo de status, cada forma é uma demonstração de hierarquia, cada detalhe constitui regra de prestígio. Por isso mesmo, nesse contexto desenvolve-se uma determinada sensibilidade estética, em que o cerimonial é apenas uma peça de uma engrenagem social sólida e coerente, na qual a demonstração exterior correta confere privilégios e permite distinção.
A etiqueta e o cerimonial garantiam a maquinaria do Estado, e o rigor do ritual não era mais do que uma demonstração aparente da repartição do poder ou mesmo da intrincada hierarquia que indispunha titulares e fidalgos da corte. Nesse mundo, os limites entre a esfera pública e a privada tornavam-se frágeis, uma vez que era no exercício da vida da corte que se dispensavam locais e posições. Nenhuma arena foi mais teatralizada ou artificialmente montada do que a cena pública da corte, que explicita como o mundo da cultura faz parecer óbvio o que de fato é matéria de construção social.
Não é estranho que Elias tenha selecionado ainda um outro tema, que ajuda a demonstrar como o mesmo processo civilizador ocidental que regulou hábitos e costumes também controlou o espaço da morte. Essa é a questão central de "A Solidão dos Moribundos", ensaio mais breve que também é só agora publicado no Brasil. Discordando da clássica obra de Philippe Ariès, "História da Morte no Ocidente", o sociólogo se recusa a olhar o passado com olhos românticos e o presente, apenas, com desconfiança. Também neste segundo livro Elias nega a idealização recorrente da vida de corte, na medida em que para esse autor é a noção de "processo", de um processo pensado a longo prazo, que se impõe, operando não por descontinuidades radicais, mas por releituras, sob formas inéditas, de elementos do presente. Dessa forma, a morte não é tomada como uma questão fechada e que se encerra com o fim de uma vida. O desafio é entendê-la como um problema dos vivos, correlato às maneiras como se reelaboram impasses do momento.

A morte como um novo espetáculo As sociedades têm mania de deixar marcas nos locais mais inesperados: no mundo dos vivos e, também, no dos mortos. Em culturas cujo modelo é mais individualizado, diz Elias, a morte perde sua feição coletiva e passa a ser uma questão particular e solitária. Longe do universo coletivo da corte, no contexto mais individualizado burguês, a morte se converte em um novo espetáculo, "em problema social", uma vez que faltam lugares e espaços para a sua absorção.
Por isso mesmo, as mortes são sempre únicas, mas as explicações, várias, assim como as contradições que continuam presentes e não permitem chegar a um veredicto final. Se a estrutura é basicamente a mesma, diferentes versões não param de surgir, confirmando como, diante da morte, não basta uma só receita: devoções profundas, locais ritualizados, sistemas de crença sobrenaturais ou mesmo seculares. Cada sociedade encontra sua linguagem própria, já que as culturas sempre fizeram da natureza um motivo para trapaça.
Quem sabe Elias ajude a entender como os homens são profundamente iguais, mas também absolutamente diferentes e amarrados às suas próprias épocas.
Textos clássicos, como os de Elias, permitem muitas leituras assim como não se deixam aprisionar: obrigam a refletir sobre a artificialidade da corte e entender a violência da revolução que se instalou na França; possibilitam renomear as tantas mortes que vivemos a partir da experiência de cada um; assim como ajudam a desconfiar das lógicas simbólicas de nossas próprias práticas políticas. No lugar do consumo de prestígio, andamos mais adeptos de um etos do consumo, mas continuamos como que deslumbrados pelo brilho fácil do teatro da política.
Nas palavras de La Bruyère, grande observador da corte francesa: "A vida da corte é um jogo sério, melancólico, que exige aplicação; é preciso dispor de peças e baterias, ter um fito, persegui-lo, evitar o adversário, arriscar quando for o caso e jogar a capricho; e, depois de tantos cálculos, fica-se em xeque, por vezes xeque-mate".
Vista sob esse ângulo, a forma luxuosa da corte nunca esteve tão perto de nós.



A Sociedade de Corte
316 págs., R$ 39,00
de Norbert Elias. Tradução de Pedro Süssekind. Jorge Zahar Editor (r. México, 31, sobreloja, CEP 20031-144, RJ, tel. 0/xx/ 21/240-0226).

A Solidão dos Moribundos
112 págs. R$ 15,00
de Norbert Elias. Trad. Plínio Dentzien. Jorge Zahar Editor.



Lilia Moritz Schwarcz é professora do departamento de antropologia da USP e autora de, entre outros, "As Barbas do Imperador" (Cia. das Letras).



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