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Clássico da sociologia do século 20, "A Sociedade de Corte", de Norbert Elias,
investiga como a etiqueta se tornou um eixo de sustentação das monarquias
Teatro da dominação
Lilia Moritz Schwarcz
especial para a Folha
Nos tempos de Luiz 14 o "levantar da rainha"
mais se parecia com uma questão estratégica,
para os negócios do Estado. Era responsabilidade da dama do palácio vestir-lhe a combinação e os demais costumes, mas, se surgisse uma princesa real, cabia a esta a honra de proceder o cerimonial.
Sucede que, certo dia, depois de a rainha ter sido despida pelas suas damas, a camareira entregou a camisa para a dama de honra, para que esta a passasse à rainha.
Seguindo o cerimonial, a dama de honra devolveu a camisa à camareira e ela se preparava para dá-la à rainha
quando, inesperadamente, adentrou o quarto a condessa de Orleans.
Diante de tal fato, rapidamente, a dama de honra devolveu a camisa à camareira que a entregou à condessa,
uma vez que cabia a ela a honra. Nesse ínterim, surgiu
uma dama de nobreza ainda superior na hierarquia da
corte: a condessa de Provença. Imediatamente a camisa
foi devolvida à camareira que a endereçou à condessa,
já que ela merecia, agora, o privilégio. Enquanto as damas faziam esse jogo de "passa-passa", a rainha, completamente nua, esperava pela conclusão do ritual.
A cena poderia ser lida em muitas chaves e talvez a
menos apropriada seja aquela que desfaz do que não
entende e desconhece sentido em lógicas do passado.
Nesse caso, porém, ela faz as vezes de um bom pretexto
e ilumina a reflexão sobre aspectos particularmente definidores da realeza: seu caráter teatral e a dimensão
simbólica que constitui o poder político. Se todo sistema político carrega consigo esse tipo de dimensão, é talvez na monarquia que se concentra, de maneira mais
formalizada e evidente, o uso de símbolos e rituais como alicerce do poder. Nesse sistema político a etiqueta
ganha tal importância que realidade e representação se
confundem em um jogo intrincado, em que o ritual não
está só nos costumes mas consta das próprias leis.
O toque real Essa pequena narrativa, que nada tem
de ingênua, introduz, ainda, o universo da etiqueta, parte fundamental na estrutura desse tipo de Estado, em
que o que importa mesmo é a arte do "ver e ser visto". E
tal descoberta não é recente. Dizia Montesquieu (1689-1755) que "o esplendor que envolve o rei é parte capital
de sua própria pujança". Seguindo de perto tais pistas,
Marc Bloch, no livro "Os Reis Taumaturgos", publicado
em 1924, analisava o fenômeno do toque real e seu caráter maravilhoso, demonstrando como se devia atentar
antes para a expectativa coletiva do milagre do que para
a evidência do milagre em si.
Na verdade, não foram poucos os autores que destacaram a relevância do ritual na efetivação do poder, no
caso monárquico: Starobinski com a análise dos símbolos da realeza; Kantorovicz com a demonstração do corpo duplo do rei, o humano e o divino; e ainda Clifford
Geertz, que insistiu na idéia de que em Bali não existiam
distinções entre realidade e representação.
Aí estavam dispostos os vínculos entre lógica racional
e lógica simbólica, expostos, porém, a partir de ângulos
diversos. Com efeito, as vestes, os objetos, a ostentação e
os rituais próprios da monarquia são parte essencial
desse regime, constituem sua representação pública e,
no limite, garantem sua eficácia. Como mostra o provérbio popular, "rei que é rei não perde a realeza" e, se a
perde..., é cada vez menos rei.
Mas foi Norbert Elias quem, de forma magistral, compreendeu a importância da etiqueta no interior do Antigo Regime, encontrando uma lógica que nada tinha a
ver com a existência de vogas aristocráticas luxuosas e
sem sentido. "A Sociedade de Corte", que chega ao Brasil com atraso -uma vez que foi escrito originalmente
como tese universitária na Alemanha, em 1933, mas publicado pela primeira vez na Inglaterra apenas em
1969-, é daqueles livros que resistem às armadilhas do
tempo e mostram como boas idéias não têm data de
vencimento. Junto a "O Processo Civilizador", cada um
à sua maneira, "A Sociedade de Corte" revela os alicerces da obra de Elias e sua aposta em uma interpretação a
um só tempo histórica e sociológica. "O Processo Civilizador" (concluído na Alemanha em 1937) mostra como não existem atitudes naturais entre os homens e
de que maneira a civilização leva ao controle dos impulsos, e não o contrário. No caso de "A Sociedade de Corte" o desafio é de alguma maneira paralelo. Trata-se de entender a organização dessa sociedade específica que,
tendo o monarca como centro, se inscrevia a partir de
tensões sempre equilibradas e dispostas tal qual uma
rede segura.
Desconstruindo essa estrutura bem montada, Norbert Elias ilumina a arquitetura dessa organização que
gira em torno do rei e de um tipo de expediente que
pressupõe uma exposição e afirmação constantes. Em
cada gesto estaria presente uma economia simbólica,
um fetiche do prestígio, assim como por detrás do ritual
residiria uma concepção profunda de etiqueta: garantia
de uma certa estabilidade de posições, marca visível de
relações que se constituem de forma invisível. Tomando a forma de um "argumento cênico", a etiqueta transforma-se num fim em si mesmo, parte integral e essencial do Estado.
Distinção e privilégio Com efeito, a partir do Renascimento a importância dessas sociedades de corte cresce em todos os países da Europa, representando,
entre os séculos 17 e 18, um modelo de prática política.
Talvez o exemplo mais acabado desse tipo de estrutura
tenha existido na França no século 17, durante o reinado de Luiz 14, e é sobre ela que Elias investe. Em Versalhes, deu-se a ligação mais evidente entre a pujança do
reino e a grandeza da corte, quando, após sua "domesticação", a nobreza passaria a orbitar em torno do rei e
dessa sociedade do teatro internalizado.
Categorias perceptíveis diferenciavam os homens
desse mundo do resto da multidão. Não só nas habitações, mas o vestuário, as expressões, adereços e festas
organizavam de forma visível elementos que faziam
parte de uma profunda concepção da sociedade e de
suas diferenças. É assim que nessa corte das marcas exteriores cada detalhe se converte em símbolo de status,
cada forma é uma demonstração de hierarquia, cada
detalhe constitui regra de prestígio. Por isso mesmo,
nesse contexto desenvolve-se uma determinada sensibilidade estética, em que o cerimonial é apenas uma peça de uma engrenagem social sólida e coerente, na qual
a demonstração exterior correta confere privilégios e
permite distinção.
A etiqueta e o cerimonial garantiam a maquinaria do
Estado, e o rigor do ritual não era mais do que uma demonstração aparente da repartição do poder ou mesmo
da intrincada hierarquia que indispunha titulares e fidalgos da corte. Nesse mundo, os limites
entre a esfera pública e a privada tornavam-se frágeis, uma vez que era no exercício da vida da corte que se dispensavam locais e posições. Nenhuma arena
foi mais teatralizada ou artificialmente
montada do que a cena pública da corte,
que explicita como o mundo da cultura
faz parecer óbvio o que de fato é matéria
de construção social.
Não é estranho que Elias tenha selecionado ainda um outro tema, que ajuda a
demonstrar como o mesmo processo civilizador ocidental que regulou hábitos e
costumes também controlou o espaço da
morte. Essa é a questão central de "A Solidão dos Moribundos", ensaio mais breve que também é só agora publicado no Brasil. Discordando da clássica obra de Philippe Ariès, "História da Morte no Ocidente", o sociólogo se recusa a olhar o passado com olhos românticos e o
presente, apenas, com desconfiança. Também neste segundo livro Elias nega a idealização recorrente da vida
de corte, na medida em que para esse autor é a noção de
"processo", de um processo pensado a longo prazo, que
se impõe, operando não por descontinuidades radicais,
mas por releituras, sob formas inéditas, de elementos
do presente. Dessa forma, a morte não é tomada como
uma questão fechada e que se encerra com o fim de uma
vida. O desafio é entendê-la como um problema dos vivos, correlato às maneiras como se reelaboram impasses do momento.
A morte como um novo espetáculo As sociedades têm mania de deixar marcas nos locais mais inesperados: no mundo dos vivos e, também, no dos mortos.
Em culturas cujo modelo é mais individualizado, diz
Elias, a morte perde sua feição coletiva e passa a ser uma
questão particular e solitária. Longe do universo coletivo da corte, no contexto mais individualizado burguês,
a morte se converte em um novo espetáculo, "em problema social", uma vez que faltam lugares e espaços para a sua absorção.
Por isso mesmo, as mortes são sempre únicas, mas as
explicações, várias, assim como as contradições que
continuam presentes e não permitem chegar a um veredicto final. Se a estrutura é basicamente a mesma, diferentes versões não param de surgir, confirmando como, diante da morte, não basta uma só receita: devoções profundas, locais ritualizados, sistemas de crença
sobrenaturais ou mesmo seculares. Cada sociedade encontra sua linguagem própria, já que as culturas sempre
fizeram da natureza um motivo para trapaça.
Quem sabe Elias ajude a entender como os homens
são profundamente iguais, mas também absolutamente diferentes e amarrados às suas próprias épocas.
Textos clássicos, como os de Elias, permitem muitas
leituras assim como não se deixam aprisionar: obrigam
a refletir sobre a artificialidade da corte e entender a violência da revolução que se instalou na França; possibilitam renomear as tantas mortes que vivemos a partir da
experiência de cada um; assim como ajudam a desconfiar das lógicas simbólicas de nossas próprias práticas
políticas. No lugar do consumo de prestígio, andamos
mais adeptos de um etos do consumo, mas continuamos como que deslumbrados pelo brilho fácil do teatro
da política.
Nas palavras de La Bruyère, grande observador da corte francesa: "A vida da
corte é um jogo sério, melancólico, que
exige aplicação; é preciso dispor de peças
e baterias, ter um fito, persegui-lo, evitar
o adversário, arriscar quando for o caso e
jogar a capricho; e, depois de tantos cálculos, fica-se em xeque, por vezes xeque-mate".
Vista sob esse ângulo, a forma luxuosa
da corte nunca esteve tão perto de nós.
A Sociedade de Corte
316 págs., R$ 39,00
de Norbert Elias. Tradução de
Pedro Süssekind. Jorge Zahar
Editor (r. México, 31, sobreloja,
CEP 20031-144, RJ, tel. 0/xx/
21/240-0226).
A Solidão dos Moribundos
112 págs. R$ 15,00
de Norbert Elias. Trad. Plínio
Dentzien. Jorge Zahar Editor.
Lilia Moritz Schwarcz é professora do departamento de antropologia da USP e autora de, entre
outros, "As Barbas do Imperador" (Cia. das Letras).
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