|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
+ livros
A nova rota do Brasil Colônia
Projeto busca resgatar documentos das 18 capitanias da América
portuguesa depositados no Arquivo Histórico Ultramarino de Lisboa
Jean Marcel Carvalho França
Tânia Regina de Luca
especial para a Folha
Fala-se muito, no Brasil, do significativo processo de democratização
pelo qual o país vem passando nas
últimas décadas. Há de ter em conta, no entanto, que tal processo é lento e
ainda não se disseminou pela sociedade
brasileira como um todo. Isso é especialmente notável no que diz respeito a um
aspecto das sociedades contemporâneas
sobremodo importante: a circulação e o
acesso à informação. Enquanto setores
como a mídia impressa, associada às redes virtuais, esbanjam vitalidade, exibem
diversidade e, não obstante as críticas
que lhes possam ser dirigidas, conquistam um número crescente de consumidores, o mesmo não ocorre com os arquivos e bibliotecas do país, principalmente com os mais relevantes.
Tais instituições, malgrado o seu empenho para tornar acessíveis os seus ricos acervos a indivíduos que não pertençam a um estreito grupo de pesquisadores, encontram ainda enormes obstáculos, orçamentários sobretudo, para levar
adiante uma efetiva democratização da
informação.
Os avanços, contudo, é bom ressaltar,
têm sido notáveis. Um deles, talvez o
mais importante, atende pelo nome de
Projeto Resgate de Documentação Histórica Barão do Rio Branco, iniciativa do
Ministério da Cultura, coordenada pelo
embaixador Wladimir Murtinho, cujo
objetivo é localizar, organizar, microfilmar e trazer para os diferentes arquivos
estaduais do país -e também para a Biblioteca Nacional e para o Museu Histórico Nacional- os documentos sobre as
18 capitanias da América portuguesa
constantes no renomado Arquivo Histórico Ultramarino de Lisboa.
O projeto de resgatar a documentação
sobre o país disponível nos arquivos portugueses, especialmente no Ultramarino, não é novo e remonta à criação do
importante Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (1838) e ao trabalho pioneiro do poeta Gonçalves Dias, que, a
serviço do próprio instituto, despendeu
uma enorme energia copiando documentos nas instituições lusitanas.
A despeito, porém, dos esforços de
Dias e de outros abnegados, como Varnhagen, Castro e Almeida, Mendes Gouvêa e Luísa da Fonseca, os resultados não
foram lá muito satisfatórios, pois, como
destaca a coordenadora técnica nacional
do Projeto Resgate, Esther Caldas Bertoletti, até há bem pouco tempo, somente
uma pequena parcela dos 3 milhões de
páginas manuscritas do Arquivo Ultramarino havia sido inventariada e uma
parte ainda menor havia sido copiada.
Tal situação, que obrigava os pesquisadores brasileiros a cruzarem o Atlântico
em busca de subsídios para seus estudos,
despendendo tempo e vultosos recursos
das agências financiadoras, começou a se
alterar por volta de 1986, quando, sob os
auspícios da Comissão de Eventos Históricos do CNPq (Conselho Nacional de
Desenvolvimento Científico e Tecnológico) -preparavam-se, então, as comemorações do centenário da Abolição e da
República e do bicentenário da Inconfidência-, teve início um projeto de levantamento e organização dos documentos relativos a Minas Gerais existentes no Arquivo Público Ultramarino,
projeto idealizado e coordenado pelo
historiador mineiro Caio C. Boschi.
Os esforços desse pesquisador materializaram-se num portentoso catálogo
de documentos (1998) e num útil roteiro
de arquivos portugueses de interesse para a História do Brasil (1979, 1995), publicações que, como adianta a coordenadora Esther Bertoletti, serviram de ponto de
partida para o mais importante dos empreendimentos culturais que compuseram a "agenda das comemorações" dos
500 anos do Descobrimento: o referido
Projeto Resgate de Documentação Histórica Barão do Rio Branco.
Os números do projeto, iniciado em
1996, impressionam. Assegura o ministro da Cultura, Francisco Weffort, que os
trabalhos consumiram, até agora, cerca
de US$ 3 milhões, provenientes de instituições públicas e privadas, e envolveram mais de 100 pesquisadores e aproximadamente 110 instituições, brasileiras e
portuguesas.
Os resultados obtidos também são
dignos de atenção. Os cerca de 300 mil
documentos do Arquivo Ultramarino,
divididos por capitanias, depois de organizados, classificados e resumidos
em verbetes, foram microfilmados (e
em alguns casos digitalizados) e, finalmente, se encontram à disposição dos
interessados nos principais arquivos,
bibliotecas, institutos de pesquisa e
universidades brasileiras. O pesquisador, iniciante ou consagrado, tem agora à sua disposição o dia-a-dia da administração colonial portuguesa ou, como
explica uma das envolvidas no projeto,
a historiadora Heloísa Liberalli Bellotto, tem à sua disposição um corpo documental que permite "flagrar, no seu
real tempo e lugar, as atitudes e comportamentos dos provedores, ouvidores, governadores, vice-reis e capitães-generais, oficiais das Câmaras municipais e, sobretudo, pessoas, sejam funcionários civis, militares ou eclesiásticos, seja o povo simplesmente".
A via de acesso a esse acervo privilegiado de fontes primárias sobre o Brasil
colonial são os catálogos provinciais de
documentos, que estão vindo a público
desde 1998 (leia texto nesta página). O
primeiro a ser publicado, como mencionamos, foi o referente a Minas Gerais, coordenado pelo historiador Caio
Boschi. Uma consulta mais detida aos
catálogos já em circulação revela algumas peculiaridades que vale a pena salientar. A produção dos verbetes, como
explica a pesquisadora gaúcha Hélen
Osório, obedeceu às normas estabelecidas pelo próprio Arquivo Histórico Ultramarino. Tais normas, seguidas por
todas as equipes que compuseram o
projeto, garantiram a necessária uniformidade dos catálogos. Em todos
eles, o leitor encontrará, para cada documento, os seguintes dados: data crônica, data tópica, tipo documental, autor (cargo, títulos, nome), destinatário,
assunto, observações (língua, estado do
documento etc.), anexos, cotas (notações) antiga e atual. Além disso, com o
objetivo de facilitar a consulta, os catálogos contam com índices toponímico,
onomástico, de assuntos e, em alguns
casos, documental.
Essa uniformidade presente na elaboração dos verbetes e na formulação dos
índices, todavia, não se mantém nem
na qualidade das edições nem tampouco nas introduções presentes nas obras.
Há catálogos extremamente bem cuidados, ilustrados com rico material iconográfico (mapas, plantas, aquarelas,
tabelas etc.), como os de São Paulo,
Goiás, Rio Grande do Sul e Mato Grosso, com especial destaque para os dois
primeiros.
Outros, porém, infelizmente não primam pelo cuidado editorial. No tocante às apresentações, introduções e anexos, a desigualdade é ainda mais notável. O catálogo de São Paulo, por exemplo, conta com esclarecedora introdução do historiador José Jobson de Andrade Arruda e com bons textos complementares -textos de caráter metodológico e histórico-, assinados por
Gilson Sérgio Matos Reis e Heloísa Liberalli Bellotto. Igualmente esclarecedoras são as introduções dos catálogos
do Rio Grande do Sul, de autoria da historiadora Hélen Osório, e de Minas Gerais, do pesquisador Caio Boschi.
Apesar de alguns desníveis entre suas
partes, o conjunto das publicações
cumpre com eficiência os seus objetivos, colocando à disposição dos brasileiros uma gama de fontes primárias
sobre o Brasil colonial inimaginável alguns anos atrás.
E o projeto não se esgota aí. Para além
dos catálogos provinciais ainda não
editados, o projeto publicou guias de
arquivos holandeses (lançados no dia
10 de agosto, em Recife), franceses, espanhóis e italianos, tem microfilmado
os documentos relativos ao Brasil existentes na Torre do Tombo (Lisboa) e
em outros importantes arquivos europeus e, sobretudo, elaborado uma ampla base de dados com os documentos
obtidos, base essa que deverá estar disponível na internet. Não por acaso o diretor científico da Fapesp (Fundação de
Amparo à Pesquisa de São Paulo), José
Fernando Perez, compara muito oportunamente o projeto com outros dois
de envergadura patrocinados pela fundação no Estado de São Paulo: o Biota e
o Genoma. Segundo ele, os três têm
uma característica semelhante, pois,
"ao mesmo tempo em que geram alentado acervo de informações de relevância intrínseca e de utilidade interdisciplinar, propõem desafios de natureza
comum: transformar dados em conhecimento".
No que tange ao Resgate, parte significativa dos dados já está disponível, cabe agora aos historiadores, linguistas,
cientistas sociais e juristas se debruçarem sobre eles e explorarem as múltiplas possibilidades que abrem. Em
pouco tempo, sem dúvida, emergirá
uma visão renovada do Brasil colonial.
Jean Marcel Carvalho França é doutor em literatura comparada e autor de, entre outros, "Visões do Rio de Janeiro Colonial" e "Outras Visões
do Rio de Janeiro Colonial", ambos pela ed. José
Olympio.
Tânia Regina de Luca é professora de história
da Unesp (Universidade Estadual Paulista) em
Assis e autora, entre outros, de "A Revista do
Brasil - Um Diagnóstico para a (N)ação" (ed.
Unesp).
Texto Anterior: Lilia Moritz Schwarcz: Teatro da dominação Próximo Texto: Saiba como adquirir os catálogos Índice
|