São Paulo, domingo, 02 de setembro de 2001

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

+ livros

A nova rota do Brasil Colônia

Projeto busca resgatar documentos das 18 capitanias da América portuguesa depositados no Arquivo Histórico Ultramarino de Lisboa

Jean Marcel Carvalho França
Tânia Regina de Luca
especial para a Folha

Fala-se muito, no Brasil, do significativo processo de democratização pelo qual o país vem passando nas últimas décadas. Há de ter em conta, no entanto, que tal processo é lento e ainda não se disseminou pela sociedade brasileira como um todo. Isso é especialmente notável no que diz respeito a um aspecto das sociedades contemporâneas sobremodo importante: a circulação e o acesso à informação. Enquanto setores como a mídia impressa, associada às redes virtuais, esbanjam vitalidade, exibem diversidade e, não obstante as críticas que lhes possam ser dirigidas, conquistam um número crescente de consumidores, o mesmo não ocorre com os arquivos e bibliotecas do país, principalmente com os mais relevantes.
Tais instituições, malgrado o seu empenho para tornar acessíveis os seus ricos acervos a indivíduos que não pertençam a um estreito grupo de pesquisadores, encontram ainda enormes obstáculos, orçamentários sobretudo, para levar adiante uma efetiva democratização da informação.
Os avanços, contudo, é bom ressaltar, têm sido notáveis. Um deles, talvez o mais importante, atende pelo nome de Projeto Resgate de Documentação Histórica Barão do Rio Branco, iniciativa do Ministério da Cultura, coordenada pelo embaixador Wladimir Murtinho, cujo objetivo é localizar, organizar, microfilmar e trazer para os diferentes arquivos estaduais do país -e também para a Biblioteca Nacional e para o Museu Histórico Nacional- os documentos sobre as 18 capitanias da América portuguesa constantes no renomado Arquivo Histórico Ultramarino de Lisboa.
O projeto de resgatar a documentação sobre o país disponível nos arquivos portugueses, especialmente no Ultramarino, não é novo e remonta à criação do importante Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (1838) e ao trabalho pioneiro do poeta Gonçalves Dias, que, a serviço do próprio instituto, despendeu uma enorme energia copiando documentos nas instituições lusitanas.
A despeito, porém, dos esforços de Dias e de outros abnegados, como Varnhagen, Castro e Almeida, Mendes Gouvêa e Luísa da Fonseca, os resultados não foram lá muito satisfatórios, pois, como destaca a coordenadora técnica nacional do Projeto Resgate, Esther Caldas Bertoletti, até há bem pouco tempo, somente uma pequena parcela dos 3 milhões de páginas manuscritas do Arquivo Ultramarino havia sido inventariada e uma parte ainda menor havia sido copiada.
Tal situação, que obrigava os pesquisadores brasileiros a cruzarem o Atlântico em busca de subsídios para seus estudos, despendendo tempo e vultosos recursos das agências financiadoras, começou a se alterar por volta de 1986, quando, sob os auspícios da Comissão de Eventos Históricos do CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico) -preparavam-se, então, as comemorações do centenário da Abolição e da República e do bicentenário da Inconfidência-, teve início um projeto de levantamento e organização dos documentos relativos a Minas Gerais existentes no Arquivo Público Ultramarino, projeto idealizado e coordenado pelo historiador mineiro Caio C. Boschi.
Os esforços desse pesquisador materializaram-se num portentoso catálogo de documentos (1998) e num útil roteiro de arquivos portugueses de interesse para a História do Brasil (1979, 1995), publicações que, como adianta a coordenadora Esther Bertoletti, serviram de ponto de partida para o mais importante dos empreendimentos culturais que compuseram a "agenda das comemorações" dos 500 anos do Descobrimento: o referido Projeto Resgate de Documentação Histórica Barão do Rio Branco.
Os números do projeto, iniciado em 1996, impressionam. Assegura o ministro da Cultura, Francisco Weffort, que os trabalhos consumiram, até agora, cerca de US$ 3 milhões, provenientes de instituições públicas e privadas, e envolveram mais de 100 pesquisadores e aproximadamente 110 instituições, brasileiras e portuguesas.
Os resultados obtidos também são dignos de atenção. Os cerca de 300 mil documentos do Arquivo Ultramarino, divididos por capitanias, depois de organizados, classificados e resumidos em verbetes, foram microfilmados (e em alguns casos digitalizados) e, finalmente, se encontram à disposição dos interessados nos principais arquivos, bibliotecas, institutos de pesquisa e universidades brasileiras. O pesquisador, iniciante ou consagrado, tem agora à sua disposição o dia-a-dia da administração colonial portuguesa ou, como explica uma das envolvidas no projeto, a historiadora Heloísa Liberalli Bellotto, tem à sua disposição um corpo documental que permite "flagrar, no seu real tempo e lugar, as atitudes e comportamentos dos provedores, ouvidores, governadores, vice-reis e capitães-generais, oficiais das Câmaras municipais e, sobretudo, pessoas, sejam funcionários civis, militares ou eclesiásticos, seja o povo simplesmente".
A via de acesso a esse acervo privilegiado de fontes primárias sobre o Brasil colonial são os catálogos provinciais de documentos, que estão vindo a público desde 1998 (leia texto nesta página). O primeiro a ser publicado, como mencionamos, foi o referente a Minas Gerais, coordenado pelo historiador Caio Boschi. Uma consulta mais detida aos catálogos já em circulação revela algumas peculiaridades que vale a pena salientar. A produção dos verbetes, como explica a pesquisadora gaúcha Hélen Osório, obedeceu às normas estabelecidas pelo próprio Arquivo Histórico Ultramarino. Tais normas, seguidas por todas as equipes que compuseram o projeto, garantiram a necessária uniformidade dos catálogos. Em todos eles, o leitor encontrará, para cada documento, os seguintes dados: data crônica, data tópica, tipo documental, autor (cargo, títulos, nome), destinatário, assunto, observações (língua, estado do documento etc.), anexos, cotas (notações) antiga e atual. Além disso, com o objetivo de facilitar a consulta, os catálogos contam com índices toponímico, onomástico, de assuntos e, em alguns casos, documental.
Essa uniformidade presente na elaboração dos verbetes e na formulação dos índices, todavia, não se mantém nem na qualidade das edições nem tampouco nas introduções presentes nas obras. Há catálogos extremamente bem cuidados, ilustrados com rico material iconográfico (mapas, plantas, aquarelas, tabelas etc.), como os de São Paulo, Goiás, Rio Grande do Sul e Mato Grosso, com especial destaque para os dois primeiros.
Outros, porém, infelizmente não primam pelo cuidado editorial. No tocante às apresentações, introduções e anexos, a desigualdade é ainda mais notável. O catálogo de São Paulo, por exemplo, conta com esclarecedora introdução do historiador José Jobson de Andrade Arruda e com bons textos complementares -textos de caráter metodológico e histórico-, assinados por Gilson Sérgio Matos Reis e Heloísa Liberalli Bellotto. Igualmente esclarecedoras são as introduções dos catálogos do Rio Grande do Sul, de autoria da historiadora Hélen Osório, e de Minas Gerais, do pesquisador Caio Boschi.
Apesar de alguns desníveis entre suas partes, o conjunto das publicações cumpre com eficiência os seus objetivos, colocando à disposição dos brasileiros uma gama de fontes primárias sobre o Brasil colonial inimaginável alguns anos atrás.
E o projeto não se esgota aí. Para além dos catálogos provinciais ainda não editados, o projeto publicou guias de arquivos holandeses (lançados no dia 10 de agosto, em Recife), franceses, espanhóis e italianos, tem microfilmado os documentos relativos ao Brasil existentes na Torre do Tombo (Lisboa) e em outros importantes arquivos europeus e, sobretudo, elaborado uma ampla base de dados com os documentos obtidos, base essa que deverá estar disponível na internet. Não por acaso o diretor científico da Fapesp (Fundação de Amparo à Pesquisa de São Paulo), José Fernando Perez, compara muito oportunamente o projeto com outros dois de envergadura patrocinados pela fundação no Estado de São Paulo: o Biota e o Genoma. Segundo ele, os três têm uma característica semelhante, pois, "ao mesmo tempo em que geram alentado acervo de informações de relevância intrínseca e de utilidade interdisciplinar, propõem desafios de natureza comum: transformar dados em conhecimento".
No que tange ao Resgate, parte significativa dos dados já está disponível, cabe agora aos historiadores, linguistas, cientistas sociais e juristas se debruçarem sobre eles e explorarem as múltiplas possibilidades que abrem. Em pouco tempo, sem dúvida, emergirá uma visão renovada do Brasil colonial.


Jean Marcel Carvalho França é doutor em literatura comparada e autor de, entre outros, "Visões do Rio de Janeiro Colonial" e "Outras Visões do Rio de Janeiro Colonial", ambos pela ed. José Olympio.
Tânia Regina de Luca é professora de história da Unesp (Universidade Estadual Paulista) em Assis e autora, entre outros, de "A Revista do Brasil - Um Diagnóstico para a (N)ação" (ed. Unesp).


Texto Anterior: Lilia Moritz Schwarcz: Teatro da dominação
Próximo Texto: Saiba como adquirir os catálogos
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.