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A balsa da Medusa
Abolição do tráfico de escravos britânico, 200 anos atrás, resultou da campanha de indivíduos engajados contra a política vigente
MANOLO FLORENTINO
COLUNISTA DA FOLHA
O assassino por
amor é o único delinqüente que confessa o crime", observa o policial em
uma das crônicas de João do
Rio [1881-1921]. "Alguns chegam mesmo a reviver detalhes
insignificantes", arremata.
Além de toda patologia, há aqui
algo da incontornável relação
entre meios e fins.
Derrotado no enfrentamento sem mediações com uma das
mais perigosas dimensões do
peso opaco da vida -o amor-,
o homicida amoroso confessa
por não poder mentir. E já não
mente porque sua guerra particular o destituiu de toda capacidade de metaforizar (a mentira nada mais é do que uma forma de metáfora).
Pode-se evocar Perseu como
contraponto. Também por
amor -a Dânae, sua mãe-, ele
acolheu o desafio de cortar a
cabeça da Medusa, a górgona
que transformava em pedra todos os que lhe miravam diretamente o rosto.
Ousado com o homicida narcísico, embora reverente, Perseu não rejeitou o auxílio dos
deuses. De uma em particular,
Atena, aceitou o escudo, que,
de tão bem polido, lhe permitiu
fixar o reflexo da Medusa e decepar a cabeça à execrável.
Amor intransitivo e denodo
não significaram, em seu caso,
perda de artimanha.
Os 12 homens -quase todos
quacres- reunidos pela primeira vez em uma tipografia
londrina em maio de 1787 sabiam que a guerra que deflagravam somente seria ganha se cada um encarnasse o exemplo de Perseu. Movia-os o amor a
Deus, toda a intrepidez do
mundo e uma visão estratégica
modernamente ética -isto é,
atenta aos meios disponíveis,
mas jamais a eles subordinada.
A escravidão era a sua medusa.
Proposta inusitada
A analogia construída pelo
escritor norte-americano
Adam Hochschild dá a extensão da proposta. Era como se,
hoje, afiançados pelo juízo de
que os automóveis representam uma das principais fontes
da degradação ambiental, alguns lunáticos simplesmente
postulassem a sua erradicação
da face da Terra.
De fato, em 1787, como nas
décadas seguintes, os engenhos
do Caribe britânico eram tão
lucrativos que nem o mais otimista dos homens acreditaria
poder deter o sofrimento dos
escravos que eram suas mãos e
seus pés.
Pior: se, atualmente, 55% dos
norte-americanos adultos interpretam literalmente a Bíblia, imagine-se quão corrente
era, no século 18, associar os
negros aos descendentes de Cã
-os amaldiçoados por Noé que
deveriam servir às proles de
Sem (os asiáticos) e de Jafé (os
europeus).
Outros juravam de pés juntos
que, por derivarem de Caim, os
africanos personificavam a
maldição do Senhor.
Não surpreende que os negros encontrassem no cativeiro
a saída natural para o vício que
os tecia.
O aparecimento do "Systema
Naturae" (1735), de Lineu, não
melhorou as coisas -inscreveu
o homem no reino animal, é
certo; mas reiterou a inferioridade do africano, indolente e
astuto, frente ao europeu, delicado, perspicaz e inventivo.
Apenas quem partilhasse radicalmente a crença na unidade
do gênero humano podia ser
vanguarda de um contexto assim. Sobretudo se, como os
quacres, rejeitasse o uso das armas com a mesma veemência
com que eles recusavam qualquer sacramento ou hierarquia
eclesiástica.
Ademais, tratando-se de
convencer por meio de livros,
panfletos e petições de comitês
antiescravistas, contava muito
compartir de uma sólida tradição parlamentar, desfrutar de
imprensa livre e circular pela
mais eficiente rede de comunicações do século 18.
Obviamente, só isso não explica o êxito do mais ambicioso
projeto de persuasão política
surgido no Ocidente antes do
advento do marketing moderno -"Duvido que encontremos
alguma coisa mais extraordinária", considerou Alexis de Tocqueville [1805-59].
Líderes como James Ramsay, Granville Sharp, Olaudah
Equiano, William Wilberforce
e Thomas Clarkson sabiam
quando avançar e, em especial,
quando retroceder.
Compaixão
A grande artimanha consistiu em insistir no sofrimento do
escravo enquanto metáfora do
arbítrio vivido pelo inglês comum -o único meio de eludir o
fator racial que os apartava. O
argumento não escapou completamente a Adam Hochschild
em seu "Bury the Chains" (Enterrem as Correntes).
Raptar cidadãos ingleses era
o veículo mais comum, até
meados do século 19, do recrutamento que alimentava a mais
poderosa marinha do mundo.
Dezenas de milhares de homens haviam sido capturados
por gangues armadas do serviço naval durante as guerras napoleônicas -80 mil tiveram o
mesmo destino durante a guerra revolucionária americana.
Para se livrarem, diversas
naus comerciais atracavam
conduzidas apenas por velhos e
mutilados.
Os marujos viviam sob açoites, escorbuto e malária. A morte podia ceifar 20% ou mais das
tripulações, e os sobreviventes
passavam anos longe das mulheres e dos filhos.
Embora o suborno ajudasse a
capturar desafetos e a libertar
amigos, não só os pobres eram
"recrutados". Era óbvia a semelhança entre as trajetórias de
britânicos raptados e as dos milhares de capturados na África
que abarrotavam os negreiros
no Atlântico. O tráfico foi abolido em 1807.
Política britânica
Depois de certo influxo, o
movimento abolicionista voltou à carga na década de 1820.
Ajudou-o a revolta de escravos
na Jamaica (1831-32), que convenceu muitos aristocratas do
fim inevitável do cativeiro.
Melhor ainda foi conseguir
colar a luta contra a escravidão
na campanha pela reforma eleitoral. Pudera: Manchester, menor apenas do que Londres,
não tinha representantes na
Câmara dos Comuns; somente
homens com renda anual mínima de 300 libras eram votados
-distritos havia onde se requeria o dobro.
Embora quatro quintos dos
britânicos adultos continuassem sem poder votar, o Parlamento reformado se mostrou
mais razoável e pôs termo ao
cativeiro em 1833. Não sem indenizar os ex-senhores com
40% do orçamento nacional.
Tampouco sem produzir um
legado ambíguo. Afinal, se é
certo que o mito do britânico
benevolente justificou, depois,
conquistas coloniais na África e
na Ásia, a aventura abolicionista ensina também que indivíduos que não cultivam a ignorância podem melhorar -e muito- a civilização.
MANOLO FLORENTINO leciona história na Universidade Federal do Rio de Janeiro. Escreve regularmente na seção "Autores", do Mais! .
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