São Paulo, domingo, 02 de setembro de 2007

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A balsa da Medusa

Abolição do tráfico de escravos britânico, 200 anos atrás, resultou da campanha de indivíduos engajados contra a política vigente

MANOLO FLORENTINO
COLUNISTA DA FOLHA

O assassino por amor é o único delinqüente que confessa o crime", observa o policial em uma das crônicas de João do Rio [1881-1921]. "Alguns chegam mesmo a reviver detalhes insignificantes", arremata.
Além de toda patologia, há aqui algo da incontornável relação entre meios e fins. Derrotado no enfrentamento sem mediações com uma das mais perigosas dimensões do peso opaco da vida -o amor-, o homicida amoroso confessa por não poder mentir. E já não mente porque sua guerra particular o destituiu de toda capacidade de metaforizar (a mentira nada mais é do que uma forma de metáfora).
Pode-se evocar Perseu como contraponto. Também por amor -a Dânae, sua mãe-, ele acolheu o desafio de cortar a cabeça da Medusa, a górgona que transformava em pedra todos os que lhe miravam diretamente o rosto.
Ousado com o homicida narcísico, embora reverente, Perseu não rejeitou o auxílio dos deuses. De uma em particular, Atena, aceitou o escudo, que, de tão bem polido, lhe permitiu fixar o reflexo da Medusa e decepar a cabeça à execrável.
Amor intransitivo e denodo não significaram, em seu caso, perda de artimanha.
Os 12 homens -quase todos quacres- reunidos pela primeira vez em uma tipografia londrina em maio de 1787 sabiam que a guerra que deflagravam somente seria ganha se cada um encarnasse o exemplo de Perseu. Movia-os o amor a Deus, toda a intrepidez do mundo e uma visão estratégica modernamente ética -isto é, atenta aos meios disponíveis, mas jamais a eles subordinada. A escravidão era a sua medusa.

Proposta inusitada
A analogia construída pelo escritor norte-americano Adam Hochschild dá a extensão da proposta. Era como se, hoje, afiançados pelo juízo de que os automóveis representam uma das principais fontes da degradação ambiental, alguns lunáticos simplesmente postulassem a sua erradicação da face da Terra.
De fato, em 1787, como nas décadas seguintes, os engenhos do Caribe britânico eram tão lucrativos que nem o mais otimista dos homens acreditaria poder deter o sofrimento dos escravos que eram suas mãos e seus pés.
Pior: se, atualmente, 55% dos norte-americanos adultos interpretam literalmente a Bíblia, imagine-se quão corrente era, no século 18, associar os negros aos descendentes de Cã -os amaldiçoados por Noé que deveriam servir às proles de Sem (os asiáticos) e de Jafé (os europeus).
Outros juravam de pés juntos que, por derivarem de Caim, os africanos personificavam a maldição do Senhor. Não surpreende que os negros encontrassem no cativeiro a saída natural para o vício que os tecia.
O aparecimento do "Systema Naturae" (1735), de Lineu, não melhorou as coisas -inscreveu o homem no reino animal, é certo; mas reiterou a inferioridade do africano, indolente e astuto, frente ao europeu, delicado, perspicaz e inventivo.
Apenas quem partilhasse radicalmente a crença na unidade do gênero humano podia ser vanguarda de um contexto assim. Sobretudo se, como os quacres, rejeitasse o uso das armas com a mesma veemência com que eles recusavam qualquer sacramento ou hierarquia eclesiástica.
Ademais, tratando-se de convencer por meio de livros, panfletos e petições de comitês antiescravistas, contava muito compartir de uma sólida tradição parlamentar, desfrutar de imprensa livre e circular pela mais eficiente rede de comunicações do século 18.
Obviamente, só isso não explica o êxito do mais ambicioso projeto de persuasão política surgido no Ocidente antes do advento do marketing moderno -"Duvido que encontremos alguma coisa mais extraordinária", considerou Alexis de Tocqueville [1805-59].
Líderes como James Ramsay, Granville Sharp, Olaudah Equiano, William Wilberforce e Thomas Clarkson sabiam quando avançar e, em especial, quando retroceder.
Compaixão
A grande artimanha consistiu em insistir no sofrimento do escravo enquanto metáfora do arbítrio vivido pelo inglês comum -o único meio de eludir o fator racial que os apartava. O argumento não escapou completamente a Adam Hochschild em seu "Bury the Chains" (Enterrem as Correntes).
Raptar cidadãos ingleses era o veículo mais comum, até meados do século 19, do recrutamento que alimentava a mais poderosa marinha do mundo.
Dezenas de milhares de homens haviam sido capturados por gangues armadas do serviço naval durante as guerras napoleônicas -80 mil tiveram o mesmo destino durante a guerra revolucionária americana. Para se livrarem, diversas naus comerciais atracavam conduzidas apenas por velhos e mutilados.
Os marujos viviam sob açoites, escorbuto e malária. A morte podia ceifar 20% ou mais das tripulações, e os sobreviventes passavam anos longe das mulheres e dos filhos.
Embora o suborno ajudasse a capturar desafetos e a libertar amigos, não só os pobres eram "recrutados". Era óbvia a semelhança entre as trajetórias de britânicos raptados e as dos milhares de capturados na África que abarrotavam os negreiros no Atlântico. O tráfico foi abolido em 1807.

Política britânica
Depois de certo influxo, o movimento abolicionista voltou à carga na década de 1820. Ajudou-o a revolta de escravos na Jamaica (1831-32), que convenceu muitos aristocratas do fim inevitável do cativeiro.
Melhor ainda foi conseguir colar a luta contra a escravidão na campanha pela reforma eleitoral. Pudera: Manchester, menor apenas do que Londres, não tinha representantes na Câmara dos Comuns; somente homens com renda anual mínima de 300 libras eram votados -distritos havia onde se requeria o dobro.
Embora quatro quintos dos britânicos adultos continuassem sem poder votar, o Parlamento reformado se mostrou mais razoável e pôs termo ao cativeiro em 1833. Não sem indenizar os ex-senhores com 40% do orçamento nacional.
Tampouco sem produzir um legado ambíguo. Afinal, se é certo que o mito do britânico benevolente justificou, depois, conquistas coloniais na África e na Ásia, a aventura abolicionista ensina também que indivíduos que não cultivam a ignorância podem melhorar -e muito- a civilização.


MANOLO FLORENTINO leciona história na Universidade Federal do Rio de Janeiro. Escreve regularmente na seção "Autores", do Mais! .


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