São Paulo, domingo, 02 de setembro de 2007

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Vidas em suspensão

Duas biografias fornecem leituras instigantes sobre a mãe de Churchill e sobre a mulher de Hitler

PAULO FAGUNDES VIZENTINI
ESPECIAL PARA A FOLHA

As biografias se tornaram, com o advento da pós-modernidade, um gênero literário da moda, num estilo marcado, geralmente, por um viés individualista pouco contextualizado. Recentemente, todavia, foram lançadas duas obras biográficas de novo tipo: "Os Segredos de Lady Churchill" e "A História Perdida de Eva Braun". Elas relatam as vidas de duas personagens "secundárias", que se desenrolam à sombra de dois grandes personagens políticos, lorde Randolph Churchill (pai de Winston) e Adolf Hitler.
Trata-se de biografias em que as existências de ambas se encontram associadas à história e à sociedade da segunda metade do século 19 e da primeira metade do século 20.
São livros agradáveis e inteligentes, extremamente bem escritos, com ótimas traduções, que nos remetem ao apogeu do Império Britânico e à Alemanha em crise. Pode-se dizer, ainda, que constituem obras "revisionistas", fornecendo outra leitura sobre ambas as personagens.

Aliança política
Jennie Jerome, lady Churchill, era uma bela e voluntariosa norte-americana, filha de um especulador da Bolsa de Nova York, que passaria parte de sua vida na França e, especialmente, na Inglaterra.
Os altos e baixos das arriscadas jogadas financeiras paternas levaram a família Jerome a Paris, de onde escaparam durante a Comuna [1871].
Jennie acabaria se radicando na Inglaterra, onde se casou com um membro da alta aristocracia, pode-se dizer, financeiramente precária. Numa época em que as mulheres não votavam, ela viria a participar ativamente da alta política em seu país de adoção.
A obra de Charles Higham nos mostra, por meio de uma bem-humorada e desmistificadora análise histórica, não apenas a importância da mulher freqüentemente lembrada por seu dinamismo, obstinação e sua turbulenta vida amorosa mas igualmente a forma como operavam as sociedades americana e inglesa da época.
A corrupção era a regra dos grandes negócios, associando o Parlamento, o governo e os empresários. Na sucessão de amantes e dos outros dois maridos de Jennie, geralmente da idade de seus filhos, pode-se observar os costumes e o outro lado da sociedade vitoriana, um mundo que se acaba nos efeitos da Primeira Guerra Mundial e da Revolução Soviética, juntamente com a vida da heroína.
Mas, ao mesmo tempo, essa americana de grande iniciativa impulsionou a carreira política do marido e contribuiu fortemente para a formação da personalidade do filho Winston Churchill.
Extrapolando-se para o plano histórico-político, há aqui elementos de um amálgama que propiciam ao leitor a compreensão das bases da ulterior aliança anglo-americana, que perdura até hoje: um impulso renovador oriundo da ex-colônia em direção à ex-metrópole.

Envolvimento emocional
Já o livro da acadêmica Angela Lambert, filha de um britânico e de uma alemã, sem descuidar dos aspectos histórico-sociais de uma sociedade em crise avança mais no campo psicológico. Trata-se de uma biografia de Eva Braun mas também de Hitler, do romance de ambos e da própria história da sociedade alemã.
A idéia de uma personagem arrivista, medíocre e fútil é desmontada de maneira irrefutável, com base em sólida pesquisa, embora fique claro o envolvimento emocional da autora com a amante do führer.
Uma dimensão pouco conhecida da personalidade de Hitler emerge da descrição do seu relacionamento amoroso com a sobrinha Geli Raubal (19 anos mais jovem), que se suicidou em 1931. Com ela, o líder nazista viveu uma paixão conflituosa que o perturbava, por não poder controlar.
Já Eva, filha de uma família católica de classe média e oposta ao nazismo, era uma mulher de porte, embora não fosse muito bonita.
Vinte e três anos mais jovem que Adolf, alegre e espirituosa, Eva se sentiu fortemente atraída por ele e não descansou enquanto não conquistou um lugar ao seu lado.
Limites psicológicos e políticos levaram Hitler a mantê-la na sombra, a ponto de os serviços de inteligência aliados praticamente ignorarem sua existência. A pouca atenção que recebia do amado a fez, também, tentar suicídio, sem sucesso, o que o levou a interromper a campanha presidencial em 1932 por alguns dias e passar a manter um relacionamento mais próximo.
Só assim a família tolerou a relação, da qual ela jamais tirou qualquer proveito social ou material, buscando adaptar-se ao pequeno espaço que dispunha ao lado dele.

Alegria no caos
Eva soube dar-lhe momentos de tranqüilidade no Berghof, a mansão de Hitler nos Alpes, mantendo-se afastada da política (jamais foi filiada ao Partido Nazista) e apenas friamente tolerada pela "entourage" do führer.
Em 1945, com as tropas soviéticas avançando em direção a Berlim, ela se deslocou para a capital, passando a viver com ele no bunker, apesar de Hitler tentar mantê-la em segurança na Baviera.
O casamento, 36 horas antes do suicídio dos dois, parece tê-la deixado muito feliz, atingindo um objetivo sonhado. Assim, a autora conseguiu narrar um romance autêntico, em meio a uma sociedade mórbida, como um pequeno mundo calmo no meio de um furacão.
Trata-se de duas obras sensíveis e inteligentes, que ligam os indivíduos ao todo social, numa narrativa agradável e instigante. Duas mulheres diferentes, em dois mundos, demonstram que as aparências (e os preconceitos) podem enganar.


PAULO FAGUNDES VIZENTINI é historiador e professor de relações internacionais na Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

OS SEGREDOS DE LADY CHURCHILL
Autor:
Charles Higham
Tradução: Maria Lucia de Oliveira
Editora: Ed. Record (tel. 0/xx/21/ 2585-2000)
Quanto: R$ 46 (308 págs.)

A HISTÓRIA PERDIDA DE EVA BRAUN
Autora:
Angela Lambert
Tradução: Cássio de Arantes Leite
Editora: Globo (tel. 0/xx/11/ 2199-8888)
Quanto: R$ 62 (610 págs.)


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