UOL


São Paulo, domingo, 02 de novembro de 2003

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

NICOLAU SEVCENKO, ANTÔNIO FLÁVIO PIERUCCI, JOSÉ ARTHUR GIANNOTTI, PAULO MENDES DA ROCHA, ITALO MORICONI, VAGNER GONÇALVES E SILVIANO SANTIAGO ANALISAM A VOLTA DAS "GRANDES NARRATIVAS" HISTÓRICAS, QUE TERRY EAGLETON ABORDA NO LIVRO "AFTER THEORY"

DEPOIS DA TEORIA

John Moore - 14.jul.2003/Associated Press
Soldado norte-americano que patrulha uma rua de Bagdá tem imagem refletida em uma poça d'água


Caio Caramico Soares
free-lance para a Folha

Uma nova era nas artes, ciências e civilização? Ou apenas um blefe, um engodo já desmentido pela história? A polêmica em torno da existência ou não de uma "pós-modernidade" é tão antiga quanto esse conceito, que começou a se propagar em meados do século 20, e sobretudo dos anos 70 e 80 em diante, em protesto contra o que se via como a estagnação do modernismo na forma de um cânone filosófico, científico e estético fossilizado. Mas, se a disputa não é de hoje, o gongo de um novo round soou após o 11 de Setembro. A data que, para muitos, abriu o novo milênio, marcou também o fim, diz o renomado crítico marxista Terry Eagleton, de algo que não passava de um modismo: "Com a deflagração de uma nova narrativa global do capitalismo, a partir da deflagração da chamada guerra ao terror, é bem possível que o estilo de pensamento conhecido como pós-modernismo esteja chegando ao fim".
Isso, continua Eagleton no seu livro recém-lançado "After Theory" [Depois da Teoria, Allen Lane, 18,99 libras], porque a cruzada de Bush contra o "eixo do mal" ressuscitou, até pelos termos religiosos em que é concebida, o que os teóricos pós-modernos consideravam superado: em tempos de relativismo e de crise das utopias, voltam as verdades inquestionáveis e totais; em tempos de ultraliberalismo, o Leviatã estatal sai das águas; em tempos de perda do senso da historicidade, ressurge o jargão do "progresso".
O Mais! convidou intelectuais de diversas áreas a refletir sobre a validade ou não do conceito de pós-modernidade hoje. E o que se constata é que a tese de um "esgotamento" do pós-moderno está longe de ser consensual, porém ela aponta, e não necessariamente pelas razões que Eagleton defende, para fortes mudanças no que se considerava, havia pouco tempo, um fato tão "consumado", evidente e de contornos tão inquestionáveis quanto a globalização e o receituário econômico liberalizante do Consenso de Washington.
Certo "pós-pós-modernismo" é idéia bem recebida pelo historiador Nicolau Sevcenko (USP). Ele diz ser possível falar na emergência de um "novo autoritarismo", um novo arranjo de forças político-econômicas, que, na garupa dos falcões de Washington, leva à consolidação de "uma ordem conservadora de âmbito mundial" e à "aliança espúria entre a direita oportunista e a esquerda renegada".
Sevcenko conclui: "Essa concepção requentada e particularmente agressiva do velho darwinismo social da era vitoriana pretende se apresentar como uma espécie de "conformismo com rosto humano". Regredimos ao pré-moderno", e isso é um "tombo dos grandes" que decorre da própria lógica da atual globalização -e não por causa do 11 de Setembro e de suas consequências, como Eagleton sugere. Na verdade, nota Sevcenko, mais a título de provocação, até porque as diferenças do crítico inglês com o pós-modernismo vêm de longe.
Já para o sociólogo Antônio Flávio Pierucci (USP) nada justifica um diagnóstico de fim do pós-moderno. E ele usa como prova o próprio 11 de Setembro: "Este não foi só um evento social, foi também um evento de mídia, um grande espetáculo". Quem estava de fora, vendo tudo pela TV, tinha, diz ele, "uma percepção duplicada: aquilo [o fato] e a imagem daquilo. Isso é pós-moderno". A campanha antiterror de Bush, nessa medida, revela não a revanche, mas a agonia de um estilo de política centralizador, que, perdida a hegemonia, apela à coerção violenta, num movimento ineficaz, porém, diante de inimigos que sintetizam o pós-moderno: os grupos terroristas são "sem centro", dispersos, nômades, voláteis.
Pierucci afirma que, na sociologia, o pós-modernismo teve e terá impacto duradouro e benéfico ao mostrar que as teses clássicas de Weber, Marx e Durkheim são narrativas historicamente situadas, e não verdades eternas. Segundo o sociólogo, tal relativização, que afetou sobretudo o marxismo, é paradoxalmente obra de intelectuais dessa origem teórica -como Jean-François Lyotard (1924-1998), autor de "A Condição Pós-Moderna-, que em suas trajetórias foram percebendo a insuficiência do "veteromarxismo" [por analogia a "veterotestamentário", isto é, relativo ao Velho Testamento bíblico] para dar conta de fenômenos como as lutas de feministas, negros e gays.
Esteja ou não em crise, necessite ou não de um "Novo Testamento", o pensamento de Marx legou a descoberta de um traço central da sociedade capitalista que não só vai bem (ou mal, dependendo do ponto de vista), obrigado, como revela a falácia que sempre foi o pós-modernismo: esse achado não é senão o fato bruto da dominação do capital. Pelo menos, é isso que se conclui das observações do filósofo José Arthur Giannotti: "Nunca acreditei na desconstrução da modernidade proposta por Lyotard. Isso porque, além da dispersão dos discursos e das práticas, sempre vi operando a dominação do capital, a despeito de suas múltiplas faces".
Do mesmo modo, "a confirmação de um novo império, baseado, penso eu, no monopólio da invenção da ciência e da tecnologia, repõe noutros termos a unidade de uma dominação global. Isso não significa obviamente a instalação de uma "pax americana", pois mesmo a "pax romana" implicava guerras na periferia. Não é o que acontece hoje? Com a diferença de que, sendo o mundo contemporâneo travado por uma teia de objetos naturais conformados pela ciência, isto é, travado como segunda natureza, o inimigo exterior se infiltra nos poros do sistema, como aquele que é capaz de conduzir a natureza artificial à natureza bruta". Prosseguindo seus questionamentos, Giannotti diz: "O inimigo, infiltrando-se por todos os lados, não aparece como o Mal radical? Mas não é ele antes de tudo a contrapartida perversa de uma modernidade cuja perversidade está na sua exclusão?".
O conceito de pós-modernidade se firmou primeiramente no âmbito da arquitetura, como contestação a traços apontados como típicos do modernismo e criticados por nomes como Robert Venturi e Charles Jencks: abstração, funcionalidade, cosmopolitismo alheio às necessidades locais, menosprezo elitista às formas populares.
Um dos principais nomes da arquitetura brasileira, Paulo Mendes da Rocha é porém enfático na defesa do que, com Habermas, ele chama de o "inacabado" projeto modernista. Referindo-se aos rótulos de "pós" alguma coisa, ele diz: "Não gosto desses soterramentos. Não somos "pós'-coisa nenhuma. Nós somos sempre a totalidade da experiência da presença humana". Não é justo, diz, acusar a arquitetura moderna, em geral, como causa da atual degradação dos espaços urbanos de grandes cidades. "São artefatos isolados, edifícios fantasmagóricos que causam transtorno, e isso pela forma como são implantados em cidades como São Paulo, mais do que por suas características "modernas"."
Arauto da pós-modernidade em filosofia, Lyotard e a sua caracterização do iluminismo, marxismo e psicanálise como "metanarrativas" decadentes são de uma riqueza teórica a que Terry Eagleton não faz justiça em seu novo livro. Isso é o que afirma o escritor e crítico Silviano Santiago. É verdade, diz Santiago, que a guerra ao terror tem sido eixo de uma nova "grande narrativa no capitalismo tardio", aliás, acrescenta, bastante "reacionária", e que se desdobraria hoje em questões como as exigências e imposições dos EUA em relação à Alca [Área de Livre Comércio das Américas].
No entanto "é inválido o uso dessa grande narrativa para derrubar o conceito inaugurado por Jean-François Lyotard em "A Condição Pós-Moderna". Parece-me uma apropriação vilã ou pelo menos safada do tema da exaustão das grandes narrativas como "condição" para a pós-modernidade. As grandes narrativas da modernidade, segundo Lyotard, propunham transformações no real pela utopia revolucionária. Ele questionava menos o valor teórico intrínseco da grande narrativa (não fosse ele um filósofo de formação clássica) e mais o caráter utópico e universalizante que a informava. Trata-se de livro que fez e faz dobradinha, por exemplo, com "Orientalismo" [Cia das Letras], de Edward Said".
Mas Santiago deixa claro que o retorno das grandes narrativas -e, pois, uma mudança de fundo no que se entendeu até aqui por pós-moderno- é real e não se limita ao caso de Bush: "Caso se queira falar de uma situação global que muda e que, pela força dos fatos, reintroduz grandes narrativas libertárias na cena filosófica atual, seria mais justo (para com Lyotard) apontar três: as do republicanismo, da democracia e dos direitos humanos. Provar que são as três ideológicas (no sentido marxista-leninista do termo) seria uma tarefa intelectual mais atual e rentável para pensadores do peso de Eagleton. E para nós".
O crítico Italo Moriconi relembra justamente um curso dado por Santiago na Pontifícia Universidade Católica (RJ), em 1987, como sendo a ocasião em que se afeiçoou às possibilidades teóricas e políticas do "pós-moderno", ao menos em uma das acepções desse conceito: no caso, o "pós-modernismo impertinente, provocador". A esse tipo, ele contrapõe o "pós-modernismo neoconservador" que cresceu à custa dos "golpes e ilusionismos que levaram Bush -e agora Schwarzenegger - ao poder".
Moriconi considera plenamente atual a formulação de Lyotard do pós-moderno como "uma condição universal do saber num dado momento histórico, realçando o caráter pragmático, político, fragmentário, globalizado e coletivizado da produção de conhecimento, assim como sua moldura "agonística" (não propriamente dialética) e retórica. Nesse sentido específico, não consigo ver em que a análise de Lyotard estaria ultrapassada. Ao contrário, me parece que as instituições de conhecimento evoluíram globalmente cada vez mais no sentido do cenário que Lyotard esboçou". Ele cita a emergência de um "novo historicismo", inspirado em Foucault e Nietzsche, e aponta a onda culturalista contemporânea como uma repercussão do debate pós-moderno.
Uma das disciplinas acadêmicas mais afetadas pela "onda" pós-moderna foi a antropologia, num casamento que inclusive já frutificou em clássicos como o "Xamanismo, Colonialismo e o Homem Selvagem" (ed. Paz e Terra), de Michael Taussig. Para Vagner Gonçalves, professor de antropologia da USP, o pós-moderno, nessa disciplina, significou uma "revisão dos critérios do fazer etnográfico". Pierucci admite que os temas da sociologia no presente são hoje forçosamente "pós-modernos", mas ela mesma não o é, devido à vocação a grandes sínteses conceituais; Gonçalves, ao contrário, observa que a antropologia pós-moderna ou reflexiva é "experimental" na estruturação tanto da pesquisa quanto do texto, ao quebrar o script tradicional em que o etnólogo, autoridade absoluta do saber, ia ao seu "objeto", o decifrava e voltava para contar "como ele é" aos seus pares acadêmicos.
Gonçalves diz que o pós-moderno "foi uma onda que já passou" nas universidades americanas em que mais fez sucesso. Mas, afirma, ele deixará outro fruto permanente: o alerta para o caráter dialógico do conhecimento e para a necessidade de não esconder o conflito entre as "versões" do pesquisador e dos nativos, os quais têm cada vez mais "voz própria". Prova disso é o recente constrangimento do importante antropólogo Marshall Sahlins, acusado pelo colega cingalês Gananath Obeyesekere de cometer uma série de equívocos e distorções e de "perpetuar o mito europeu da irracionalidade indígena" ao tratar da morte e deificação do explorador James Cook no Havaí, em 1779. Gonçalves arremata: "Nunca pusemos essa questão [da relatividade do saber etnológico] de modo tão explícito" antes da controversa e -talvez- já extinta onda pós-moderna.



Onde encomendar
"After Theory" pode ser encomendado, em SP, na Fnac (tel. 0/ xx/11/3097-0022) e, no RJ, na Leonardo da Vinci (tel. 0/xx/21/ 3641-0991).


Texto Anterior: Capa 02.11
Próximo Texto: O universal concreto
Índice

UOL
Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.