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São Paulo, domingo, 02 de novembro de 2003

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"DEPOIS DA TEORIA" ATACA O RELATIVISMO E O DESENRAIZAMENTO, MAS TENDE A IGNORAR EVIDÊNCIAS ÚTEIS

O UNIVERSAL CONCRETO

D.J. Taylor
para o "The Independent"

Bastou olhar para o parágrafo inicial de "Depois da Teoria", com sua elegia de nomes (Derrida, Lacan, Barthes, Foucault e "todos os outros") por uma "idade de ouro" passada, para me arremessar 20 anos atrás no tempo, a uma reunião no início dos anos 80 da Sociedade Literária da Universidade de Oxford. A ocasião foi a visita de um acadêmico chamado Colin MacCabe, autor de um estudo diabolicamente inteligente sobre James Joyce ao redor de cuja cabeça despretensiosa pairavam nuvens de escândalo.
O King's College de Cambridge tinha acabado de recusar a renovação de algum cargo que ele detinha, e a decisão foi entendida como uma suspeita quanto à argúcia do dr. MacCabe sobre os últimos pronunciamentos críticos de Paris e Yale.
As batalhas de quarto comumente travadas nos campi entre os padrões da "teoria" diminuíram um pouco em escala desde então, mas duas décadas atrás eram capazes de rachar ao meio o corpo docente universitário inglês. Derrida estava em toda parte, e Eagleton, naquela altura o mais incendiário professor de inglês em Oxford, estava claramente decidido a entrar com força na ação. Até onde posso me lembrar, ele apresentou MacCabe com as palavras "este homem passou por momentos difíceis. Ele precisa de seu apoio".
Infelizmente, o dr. MacCabe passou uma hora desconstruindo inocuamente alguns trechos muito obscuros de Shakespeare: seus ouvintes saíram com a vaga sensação de terem inadvertidamente perdido uma oportunidade cultural.
Na época podíamos entender por que Eagleton, embora fosse (e ainda é) marxista, estava tão ávido para se ligar a esse tipo de suposta dissidência, e o podemos entender ainda mais claramente à luz um tanto difusa de "Depois da Teoria". Em termos gerais, desde 1980 o "projeto" marxista vinha enfrentando problemas. Nem os regimes que ainda alegavam professá-lo nem os marxistas locais que o usavam para justificar seus fracassos políticos estavam lhe prestando favores. Economicamente, parecia uma aposta ainda pior que o monetarismo, que entrava titubeante na moda; culturalmente, falava de roupas desalinhadas e de uma linguagem crítica ainda mais confusa. Esses sinais de radicalismo vinham quase totalmente da academia, e ela assumia seu enfoque mais combativo no recém-criado reino da "teoria cultural", o que Eagleton corretamente caracteriza como "uma continuação da política por outros meios".


Não surpreende que a arma a que Eagleton recorre seja a boa e velha "intuição", algo que o teórico médio preferiria negar


Caso de amor fracassado
Um grupo de filósofos-artistas (na maioria) franceses que não acreditavam em "significado", mas numa multiplicidade de interpretações, que se deleitavam em exposições de hierarquia e gênero, que visavam a reduzir um texto a uma espécie de pó fino de pressupostos político-sexuais -tudo isso era instigante para um homem que havia chegado à dura conclusão de que o capitalismo estava esgotado e à conclusão -talvez mais dura- de que dificilmente algum capitalista, e praticamente qualquer pessoa vivendo sob o capitalismo, havia percebido isso. "Depois da Teoria", portanto, é o registro de um caso de amor fracassado de um ideólogo (um ideólogo espirituoso e apaixonado, deve-se dizer) que imaginou que a "teoria" pudesse reacender a chama do marxismo contemporâneo, mas que percebe que este último ficou muito para trás na maré pós-moderna. Eagleton começa o que pode ser descrito como uma polêmica imparcial, comentando algumas ironias sobre o animal conhecido como "pós-modernismo". Uma delas é que o pós-modernismo, com sua desconfiança das normas públicas, valores, hierarquias e padrões, parece suspeitamente uma das versões mais rigorosas do liberalismo econômico: "Só que os neoliberais admitem que recusam tudo isso em nome do mercado". Outra é que a "universalidade" que a maioria dos teóricos contemporâneos tenta adotar -o mundo visto como um enorme hipermercado monocultural- é contestada pelos fatos concretos. Estranhamente, os habitantes da maior parte da antiga União Soviética querem ter seus próprios selos postais assim como a possibilidade de beber Coca-Cola: em um mundo que supostamente fica menor a cada momento, o número de cadeiras na mesa da ONU aumenta misteriosamente. As cerca de 200 páginas em que a "teoria" finalmente fica sabendo como deixou de cumprir as fervorosas expectativas de Eagleton são irradiadas pela tradicional impetuosidade de Eagleton, uma quantidade razoável de pleonasmos (em que a mesma discussão fixa é emoldurada por meia dúzia de ilustrações semelhantes) e -outra antiga marca de Eagleton- a tendência a ignorar evidências úteis, caso elas atrapalhem ou obscureçam alguma das oposições resmungantes em que a polêmica cultural adora insistir.

Moralismo católico
Apesar de todo o desprezo de Eagleton pelo cavalheiro beletrista na biblioteca, houve muitas pessoas, pré-Barthes, que participaram das "leituras íntimas": a primeira desconstrução da prosa de Dickens, no contexto de sua carreira precoce de jornalista, foi realizada ainda em 1865 por R.H. Hutton.
Depois disso -da dissecação em sua maior parte revigorante- surge o espetáculo de um moralista católico elegante e um tanto antiquado, resmungando contra o desenraizamento ("a criatura que surge do pensamento pós-moderno é descentrada, hedonista, auto-inventiva, incessantemente adaptável" etc.) e o relativismo pós-modernos ("qualquer pessoa que genuinamente acreditasse que nada era mais importante do que qualquer outra coisa... não seria exatamente o que reconhecemos como pessoa"), algo que atinge seus vôos mais altos, estranhamente, em alguns fragmentos de crítica bíblica -ver, por exemplo, seus comentários sobre o "Livro de Isaías".
Não surpreende que a arma a que ele afinal recorre seja a boa e velha "intuição", algo cuja existência o teórico médio provavelmente preferiria negar totalmente. Minha própria intuição me convence de que a comuna neomarxista que Eagleton parece propor como antídoto aos males do mundo seria praticamente tão temível quanto o modelo do hipermercado internacional.
Mas a enorme conquista de "Depois da Teoria" é mostrar exatamente quão formidável pode ser a presença do crítico cultural marxista, mesmo aqui no universo povoado e desanimador de Bush, Blair, a dissidência de Derrida e o célebre Jean Baudrillard, que fingiu duvidar de que a Guerra do Golfo tenha existido.

David J. Taylor é crítico e escritor. É autor da biografia "Orwell - The Life" (ed. Henry Holt), publicada neste ano nos EUA e na Inglaterra.
Tradução de Luiz Roberto Mendes Gonçalves.


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