São Paulo, domingo, 02 de dezembro de 2007

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Construção do saber

EDITADA PELA CONTRAPONTO, VERSÃO BRASILEIRA DO "DICIONÁRIO", EM TRÊS VOLUMES, REPRESENTA 25% DA EDIÇÃO ORIGINAL AMERICANA, MAS CONTEMPLA DO MATEMÁTICO GREGO EUCLIDES A FRANCIS CRICK, DESCOBRIDOR DA ESTRUTURA DO DNA

MARCELO LEITE
COLUNISTA DA FOLHA

A presentada sem história, a ciência não apaixona." Eis aí uma verdade cujo esquecimento pode estar na raiz da indigência da educação científica brasileira.
É sintomático que se encontre no prefácio da primeira versão em português do "Dicionário de Biografias Científicas", empreitada monumental -e por isso mesmo arriscada- da editora Contraponto.
O autor da frase é o economista César Benjamin, que travou contato com o lendário "DSB" (na abreviação em inglês) quando era editor da revista de divulgação "Ciência Hoje". Meteu na cabeça editá-lo em português. Consumiu dois anos só na negociação dos direitos com o American Council of Learned Societies (que reúne meia centena de agremiações científicas e culturais dos EUA).
Adquiridos os direitos, foram quatro anos de trabalho. Envolveu 45 pessoas (só de tradutores foram 15). O resultado são três volumes, com um total de 2.696 páginas e 329 ensaios biográficos cobrindo 26 séculos, de Pitágoras (6º a.C.) ao físico japonês Hideki Yukawa (1907-81).
Por ora, o catatau só está à venda, por R$ 360, na internet (www.contrapontoeditora.com.br). O projeto todo custou R$ 680 mil e contou com patrocínio da Eletrobrás, Odebrecht e Imprensa Oficial (R$ 218 mil pela Lei de Incentivo à Cultura, com renúncia fiscal).
Trata-se de uma versão reduzida, porém. O DSB original alcançou, em sucessivas edições e suplementos desde 1970, um total de 18 volumes. A brasileira se baseia na décima, de 2002, da qual aproveita 25% dos verbetes, seleção aprovada pelo conselho americano.

Pouco conhecido
Embora desconhecido por boa parte dos cientistas e divulgadores de ciência no Brasil, o DSB é considerado "uma coleção fundamental na área de história da ciência", como diz Carlos Filgueiras, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). "Todos os historiadores da ciência o utilizam", confirma Roberto Martins, da Universidade Estadual de Campinas (SP). "Um trabalho muito sério e útil."
Não é por pouco. O DSB tem alto padrão acadêmico, como se pode notar pela estirpe de vários nomes entre as centenas de autores de verbetes e consultores, de Thomas Kuhn a Robert Merton e de Georges Canguilhem a Ernest Nagel, coordenados durante décadas por Charles Gillispie, da Universidade Princeton (que se diz "deliciado" com a idéia de uma edição brasileira).
Alguns dos ensaios equivalem a livros, de tão minuciosos e alongados.
O exemplo extremo é da lavra do próprio Gillispie, a biografia do astrônomo, matemático e físico francês Pierre-Simon Laplace (1749-1827), que na edição brasileira se esparrama da página 1.431 à 1.557. "Algo fora de proporção, diante do resto das entradas", avalia o historiador da ciência Robert Olby, da Universidade de Pittsburgh (EUA).
Ao final de cada verbete, há copiosa bibliografia sobre o biografado (acrescida de referências em português, na edição da Contraponto). "É um excelente ponto de partida para uma pesquisa histórica sobre qualquer autor", recomenda Roberto Martins.
As entradas não trazem muita informação pessoal sobre cada cientista (nada de detalhes da vida amorosa de Albert Einstein, por exemplo). Só aquilo que tiver alguma relação com seu percurso intelectual, como as razões de Marie Curie para deixar a Polônia natal pela França. Ou como as convicções de Louis Pasteur.
"Um dos aspectos fascinantes deste "Dicionário" é, justamente, mostrar a ciência como construção humana, feita com hesitações, preconceitos e disputas, ligadas a histórias de vida, com suas motivações, e imersas nas idéias gerais de cada época, além de freqüentemente influenciada pelos acontecimentos políticos e os sistemas de poder predominantes", escreve Benjamin.
O caso de Pasteur é um dos mais elucidativos para combater a idéia de história da ciência como marcha do progresso e da razão contra o obscurantismo e a religião. Nesse sentido, o DSB é excelente antídoto contra a doença infantil do iluminismo.

Geração espontânea
Pasteur se provou certo, na polêmica sobre a geração espontânea, mas pelos motivos que Richard Dawkins e Christopher Hitchens hoje não hesitariam em qualificar como "errados". Seu engenhoso aparato demonstrou que a vida não surge autonomamente da matéria, como queriam materialistas, mas só por meio de algo anteriormente criado (micróbios na poeira suspensa no ar), como previa Pasteur, guiado por noções religiosas e conservadoras.
Como se pode ver pelo exemplo isolado, há muito de relevante a aprender com a história da ciência, mesmo para os debates culturais contemporâneos. Seria uma perda se os volumes avantajados do DSB ficassem juntando poeira em prateleiras de bibliotecas.
Para alcançar a nova geração, e quiçá apaixonar uns poucos jovens, o dicionário teria de estar disponível on-line.
É o que vai ocorrer com o "Novo DSB" que a editora norte-americana Gale lança no mês que vem por US$ 895: seus oito volumes, com quase 800 novos verbetes (a maioria cientistas mortos recentemente, como Francis Crick), estará disponível também em formato eletrônico.
Benjamin e a Contraponto não têm planos de fazer uma edição eletrônica, "pelo menos nos próximos anos".


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