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Construção do saber
EDITADA PELA CONTRAPONTO, VERSÃO BRASILEIRA DO "DICIONÁRIO", EM TRÊS VOLUMES, REPRESENTA 25% DA EDIÇÃO
ORIGINAL AMERICANA, MAS CONTEMPLA DO MATEMÁTICO GREGO EUCLIDES A FRANCIS CRICK, DESCOBRIDOR DA ESTRUTURA
DO DNA
MARCELO LEITE
COLUNISTA DA FOLHA
A
presentada sem
história, a ciência
não apaixona." Eis
aí uma verdade cujo
esquecimento pode
estar na raiz da indigência da
educação científica brasileira.
É sintomático que se encontre
no prefácio da primeira versão
em português do "Dicionário
de Biografias Científicas", empreitada monumental -e por
isso mesmo arriscada- da editora Contraponto.
O autor da frase é o economista César Benjamin, que travou contato com o lendário
"DSB" (na abreviação em inglês) quando era editor da revista de divulgação "Ciência
Hoje". Meteu na cabeça editá-lo em português. Consumiu
dois anos só na negociação dos
direitos com o American Council of Learned Societies (que
reúne meia centena de agremiações científicas e culturais
dos EUA).
Adquiridos os direitos, foram
quatro anos de trabalho. Envolveu 45 pessoas (só de tradutores foram 15). O resultado
são três volumes, com um total
de 2.696 páginas e 329 ensaios
biográficos cobrindo 26 séculos, de Pitágoras (6º a.C.) ao físico japonês Hideki Yukawa
(1907-81).
Por ora, o catatau só está à
venda, por R$ 360, na internet
(www.contrapontoeditora.com.br). O projeto todo custou
R$ 680 mil e contou com patrocínio da Eletrobrás, Odebrecht e Imprensa Oficial (R$
218 mil pela Lei de Incentivo à
Cultura, com renúncia fiscal).
Trata-se de uma versão reduzida, porém. O DSB original alcançou, em sucessivas edições
e suplementos desde 1970, um
total de 18 volumes. A brasileira se baseia na décima, de
2002, da qual aproveita 25%
dos verbetes, seleção aprovada
pelo conselho americano.
Pouco conhecido
Embora desconhecido por
boa parte dos cientistas e divulgadores de ciência no Brasil, o
DSB é considerado "uma coleção fundamental na área de
história da ciência", como diz
Carlos Filgueiras, da Universidade Federal do Rio de Janeiro
(UFRJ). "Todos os historiadores da ciência o utilizam", confirma Roberto Martins, da Universidade Estadual de Campinas (SP). "Um trabalho muito
sério e útil."
Não é por pouco. O DSB tem
alto padrão acadêmico, como
se pode notar pela estirpe de
vários nomes entre as centenas
de autores de verbetes e consultores, de Thomas Kuhn a
Robert Merton e de Georges
Canguilhem a Ernest Nagel,
coordenados durante décadas
por Charles Gillispie, da Universidade Princeton (que se diz
"deliciado" com a idéia de uma
edição brasileira).
Alguns dos ensaios equivalem a livros, de tão minuciosos
e alongados.
O exemplo extremo é da lavra do próprio Gillispie, a biografia do astrônomo, matemático e físico francês Pierre-Simon Laplace (1749-1827), que
na edição brasileira se esparrama da página 1.431 à 1.557. "Algo fora de proporção, diante do
resto das entradas", avalia o
historiador da ciência Robert
Olby, da Universidade de Pittsburgh (EUA).
Ao final de cada verbete, há
copiosa bibliografia sobre o
biografado (acrescida de referências em português, na edição da Contraponto). "É um excelente ponto de partida para
uma pesquisa histórica sobre
qualquer autor", recomenda
Roberto Martins.
As entradas não trazem muita informação pessoal sobre cada cientista (nada de detalhes
da vida amorosa de Albert
Einstein, por exemplo). Só
aquilo que tiver alguma relação
com seu percurso intelectual,
como as razões de Marie Curie
para deixar a Polônia natal pela
França. Ou como as convicções
de Louis Pasteur.
"Um dos aspectos fascinantes deste "Dicionário" é, justamente, mostrar a ciência como
construção humana, feita com
hesitações, preconceitos e disputas, ligadas a histórias de vida, com suas motivações, e
imersas nas idéias gerais de cada época, além de freqüentemente influenciada pelos acontecimentos políticos e os sistemas de poder predominantes",
escreve Benjamin.
O caso de Pasteur é um dos
mais elucidativos para combater a idéia de história da ciência
como marcha do progresso e da
razão contra o obscurantismo e
a religião. Nesse sentido, o DSB
é excelente antídoto contra a
doença infantil do iluminismo.
Geração espontânea
Pasteur se provou certo, na
polêmica sobre a geração espontânea, mas pelos motivos
que Richard Dawkins e Christopher Hitchens hoje não hesitariam em qualificar como "errados". Seu engenhoso aparato
demonstrou que a vida não surge autonomamente da matéria,
como queriam materialistas,
mas só por meio de algo anteriormente criado (micróbios na
poeira suspensa no ar), como
previa Pasteur, guiado por noções religiosas e conservadoras.
Como se pode ver pelo exemplo isolado, há muito de relevante a aprender com a história
da ciência, mesmo para os debates culturais contemporâneos. Seria uma perda se os volumes avantajados do DSB ficassem juntando poeira em
prateleiras de bibliotecas.
Para alcançar a nova geração,
e quiçá apaixonar uns poucos
jovens, o dicionário teria de estar disponível on-line.
É o que vai ocorrer com o
"Novo DSB" que a editora norte-americana Gale lança no
mês que vem por US$ 895: seus
oito volumes, com quase 800
novos verbetes (a maioria cientistas mortos recentemente,
como Francis Crick), estará
disponível também em formato eletrônico.
Benjamin e a Contraponto
não têm planos de fazer uma
edição eletrônica, "pelo menos
nos próximos anos".
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