São Paulo, domingo, 3 de janeiro de 1999

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LIVROS
Lilia Moritz Schwarcz responde as críticas feitas ao seu livro "As Barbas do Imperador"
Elenco de minúcias

LILIA MORITZ SCHWARCZ
especial para a Folha

Parodiando o historiador Marco Antonio Villa, uma resenha sobre d. Pedro 2º é sempre bem-vinda. Lamento, no entanto, que diante de "um período tão pouco conhecido" (como diz Villa) se tenha optado por pinçar detalhes no texto, passagens ligeiras, e não comentar, criticamente, o argumento e o trabalho como um todo.
Estou me referindo à resenha de meu livro as "Barbas do Imperador", publicada no Mais! (27/12/98), em que Marco A. Villa afirma "que a ocorrência de alguns equívocos talvez possa ser compreensível em livro tão extenso de mais de 50 anos da história do Brasil", mas, mesmo assim, basicamente limita-se em seu texto à enumeração, nem sempre correta, de pequenos problemas.
Já que a resenha elenca minúcias, aqui e ali, e as considera "comprometedoras", vamos a elas.
Em primeiro lugar, o livro não aborda "mais de 50 anos da história do Brasil". Começa com a vinda da corte em 1808 e termina com o retorno dos corpos dos imperadores em 1930. Ou nossa matemática não combina, ou o autor da resenha, tão atento a pequenos detalhes, omite dados importantes. Nesse caso, talvez fosse melhor falar em "mais de cem anos". Não se trata, por certo, de ficarmos presos a números, mas sim de, a partir deles, destacar que não pretendi fazer mais uma biografia de d. Pedro 2º (a exemplo dos competentes trabalhos de Lyra, Besouchet e Calmon, entre outros), já que, na tentativa de entender a construção da "memória mítica" do monarca, persegui também as manifestações que se deram após o exílio e a volta dos corpos do casal imperial.
Essa é apenas uma das diferenças de meu livro com relação à excelente biografia de Heitor Lyra, citada na resenha como modelo. Mas arrisco dizer mais. Julgo o trabalho de Lyra monumental e me apóio, e muito, em seus dados. Heitor Lyra, porém, não analisou a lógica da corte; não passou perto do calendário de festas do Paço; não se deteve na lógica dos palácios da monarquia brasileira, ou da relação palaciana que se estabeleceu com os historiadores do IHGB (Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro), com os artistas da Academia, com os poetas e escritores românticos. Não fez isso pois esse não era o seu objetivo. No meu caso, porém, o argumento é outro: trata-se de perceber, antes de tudo, o enraizamento da monarquia brasileira a partir de rituais de origem diversa e de analisá-la, sim, tendo em vista um referencial antropológico. Procurei entender, sobretudo, como se dá a construção simbólica da monarquia no Brasil e sua originalidade tropical, recorte este que meu resenhista deixou de lado.
Por sinal, por um momento não deixou. Cobrou a análise do barrete frígio, mas abriu mão de contar aos leitores que o livro realiza a análise de farto material simbólico: o cetro, a coroa, o manto, a mão da Justiça, os leques, os vasos, medalhas, relógios, abridores de carta, brasões... Isso sem falar do uso da fotografia e da pintura, da apresentação do império nas exposições universais (e do que foi efetivamente apresentado). Enfim... fiquemos aqui com uma pequena lista que ilustra como o resenhista selecionou uma falta e escolheu omitir tudo o que o livro traz.
Por falar em omissão, o livro é acusado de "omitir clássicos sobre o período". Mais à frente, no entanto, o resenhista recua um pouco, dizendo que alguns textos foram "deixados meio de lado". No caso, é bom que se diga, não existe meia omissão. Não omito Sérgio Buarque de Holanda, que é mesmo e sempre uma grande inspiração e aparece citado fartamente a partir de vários de seus livros, não só "Do Império à República", como "Visão do Paraíso" e "Raízes do Brasil". E, mais, em meu livro, Holanda é uma inspiração tão forte ou maior que Norbert Elias. Cito Emília Viotti da Costa e, se não me refiro (dessa vez) à obra de José de Souza Martins, a quem sou pessoal e intelectualmente vinculada, é porque a questão da imigração aparece marginalmente no livro e não quis fazer um uso meramente ilustrativo do autor. Por sinal, é o historiador José Murilo de Carvalho, sim, quem mais trabalhou com o imaginário da monarquia e da República. O autor de um livro tem obrigação de citar com maior frequência obras que anteriormente optaram por recortes semelhantes aos seus.
Vamos em frente. Quanto aos números da Guerra do Paraguai, Marco Antonio Villa deixou de indicar o contexto da segunda relação de números. Nesse momento do livro, justamente me referia à falta de números concretos sobre as perdas e dizia como oscilavam as relações. "Não só desconfio" -diferentemente do que diz o autor da resenha- como deixo explícito que esses dados não são meus e são objeto de discórdia.
1) Não tomo Antonio Celso por Afonso Celso, e esse personagem não é, de forma alguma, ignorado no livro. Se Marco Antonio Villa tivesse se dado ao trabalho de recorrer -tão-somente- ao índice onomástico, veria que, para além da incorreção tipográfica da página 480, Afonso Celso é citado três vezes -a saber nas págs. 102, 120, 123- e seu livro "Oito Anos de Parlamento - Poder Pessoal de d. Pedro 2º" (que consta na bibliografia) é base para parte da análise do capítulo 6 ("A Vida na Corte"), sobretudo do trecho denominado "Política entre Pares". É só conferir.
2) Mais uma vez o resenhista foi desatento, ao dizer que afirmei que Bolívar teria proposto uma Constituição em 1862 para a Bolívia. Trata-se da nota 18 da introdução, quando estou dando dois exemplos diferentes, e que deve ser lida (como toda boa nota) conjuntamente com o texto a que se refere: isto é, a pág. 17 do livro. A junção da Bolívia com Bolívar fica por conta do resenhista.
3) A iconografia é extensa mesmo e faz parte do argumento do livro. Estranho que o autor tenha destacado seu caráter só ilustrativo quando, na maior parte das vezes, as imagens entram no meio do texto e em tamanhos -julgo eu- muito razoáveis. Na verdade, originalmente foram levantadas 2.000 imagens. Na tese de livre-docência entraram 1.200 e no livro 700, e não 400, como afirma Villa... Mais uma vez os números. Mas, de novo, não são eles que importam. O que vale destacar é que em 700 imagens, é claro, algumas aparecem com menor e outras com maior destaque. Omitiu o resenhista a existência de dois cadernos em cores, com imagens que tomam a página inteira. E, se a questão são as caricaturas, a seleção por temas, por autores e mesmo o cuidado de digitar textos (quando esses não são legíveis) ou a reprodução de partes da brochura de Bordalo Pinheiro, "O Imperador do Rasilb", estão lá -claros e nítidos- para o leitor fazer sua própria avaliação.
4) Como sabemos, interpretações de obras de arte são objeto de discórdia e, muitas vezes, palco para a subjetividade. Se vinculo a imagem de d. Pedro 2º a de seu santo padroeiro -no caso do quadro de François-René Moreaux- e digo que "todo cenário parece ligar o monarca à imagem de Cristo...", trata-se evidentemente de uma interpretação. O resenhista tem outra, e a verdade, aqui, pode não estar nem com ele nem comigo.
5) D. Pedro 2º foi, sim, o primeiro príncipe "a nascer em território nacional". Quando d. João nasceu, em 1821, o Brasil era ainda parte do "Reino Unido de Portugal e Algarves". Tendo nascido antes da proclamação da Independência, ele não pôde ser saudado como príncipe herdeiro. É por isso que d. Pedro 2º é o primeiro varão a nascer no período imperial e o único a ser saudado, desde o nascimento, como imperador nacional. D. João Carlos Borromeu, Príncipe da Beira, morreu de forma prematura e só confirmou a lenda dos franciscanos -citada no livro-, segundo a qual os primogênitos dos Bragança jamais chegavam ao trono. É estranho que o resenhista diga que a autora "faz questão de detalhar um sem-número de acontecimentos, o que é absolutamente desnecessário para a sua tese...", mas cobre outros, na minha visão, pouco relevantes à análise central.
5) A carta sobre José de Alencar não é de 1880, com certeza. Nesse ponto o resenhista tem razão, trata-se de um erro meu ou de digitação, a verificar. Infelizmente, Marco Antonio Villa não destacou a força e o ineditismo dessa missiva, em que o monarca expõe seu projeto de grupo e sua posição autoritária com relação àqueles que ousavam discordar de suas diretrizes culturais. Da forma como a crítica é colocada, o resenhista faz o leitor pensar que desconheço a data da morte do escritor José de Alencar, apontada, no livro, na pág. 535.
6) Vários comentaristas falam da simpatia de d. Pedro 2º pela maçonaria, episódio inclusive ligado à conhecida "questão religiosa". Nos documentos constantes na Biblioteca Nacional existem referências a sua atividade nesse grupo. Se é certo que o pai foi maçom (e alardeou, como era bem de seu feitio), já d. Pedro 2º fez pouca manifestação nesse sentido. No entanto, em documentos por mim encontrados na Biblioteca Nacional, e sobretudo na coleção Tobias Monteiro, d. Pedro 2º se apresenta como "maçom". Não poderia estar apenas "confundindo", como diz Marco Antonio Villa, o pai com o filho.
7) Com relação ao impacto das teorias de Gobineau em seu contexto na Europa, se é possível citar Vacher de Lapouge, é possível citar também Renan, Tayne e tantos outros que não foram "fiéis" a Gobineau. E desde quando uma citação garante notoriedade? Melhor ainda seria recorrer a Hannah Arendt, em seu livro "Origens do Totalitarismo", que engrossa o coro daqueles que acreditavam que Gobineau não passava de um nobre decadente, um intelectual de segunda categoria, por demais pessimista para ter influência no pensamento da época. Ora, quais são as políticas aplicadas a partir da obra de Gobineau, nesse contexto? Onde circulou Gobineau? Tanto era pessoa de pouca envergadura que, tendo sido ministro em Atenas, Gobineau acreditou que mereceria ao menos um cargo em Constantinopla. Em vez disso, porém, "ganhou o Império do Brasil", posto que negou até o último momento que pôde. Por sinal, em outro livro de minha autoria, "O Espetáculo das Raças", trato com vagar do tema. Na verdade, até estranhei o pouco impacto das idéias de Gobineau com relação a d. Pedro 2º. O imperador manteve amizade, viajou, mas limitou-se a registrar o recebimento do polêmico trabalho de Gobineau, "Ensaio sobre a Desigualdade entre os Homens", datado de 1853. Mais interessante, ainda, seria pensar sobre essa relação singular e o romance "à clef" escrito por Gobineau, no qual d. Pedro aparece como um monarca entediado do poder. Opções do resenhista...
Enfim, desculpo-me ao leitor que se arriscou a seguir todo esse elenco de questões. Com efeito, essa resposta "imita" o estilo da resenha que é, muitas vezes, um apanhado de detalhes, a maior parte deles discutíveis. As críticas pertinentes são bem-vindas -e serão incorporadas-, mas lamento o pouco debate de idéias e interpretações. Pena que Marco Antonio Villa se limite a cobrar pequenas passagens e abra mão de realizar um debate intelectual como o que o livro efetivamente propõe. O desafio de entender o século 19 no Brasil não pode ser coberto com apenas um trabalho, e essa nunca foi a minha intenção.
Por fim e em tempo: a repetição do quadro retratando a entrega da mensagem do banimento da família imperial não é acidental. Pode ter escapado a Marco Antonio Villa, mas a imagem aparece três vezes (e não duas) e só na primeira vez trata-se da litogravura oficial. As demais são recriações tardias de um artista popular, que, atrás do imperador, destacou um anjo. Males da imaginação ou da distração? Paro por aqui.


Lilia Moritz Schwarcz é professora de antropologia social na Universidade de São Paulo e autora, entre outros, dos livros "Retrato em Branco e Negro", "Espetáculo das Raças" e "As Barbas do Imperador".



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