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LIVROS
Lilia Moritz Schwarcz responde as críticas feitas ao seu livro "As
Barbas do Imperador"
Elenco de minúcias
LILIA MORITZ SCHWARCZ
especial para a Folha
Parodiando o historiador Marco
Antonio Villa, uma resenha sobre
d. Pedro 2º é sempre bem-vinda.
Lamento, no entanto, que diante
de "um período tão pouco conhecido" (como diz Villa) se tenha
optado por pinçar detalhes no texto, passagens ligeiras, e não comentar, criticamente, o argumento e o trabalho como um todo.
Estou me referindo à resenha de
meu livro as "Barbas do Imperador", publicada no Mais!
(27/12/98), em que Marco A. Villa
afirma "que a ocorrência de alguns equívocos talvez possa ser
compreensível em livro tão extenso de mais de 50 anos da história
do Brasil", mas, mesmo assim,
basicamente limita-se em seu texto à enumeração, nem sempre
correta, de pequenos problemas.
Já que a resenha elenca minúcias, aqui e ali, e as considera
"comprometedoras", vamos a
elas.
Em primeiro lugar, o livro não
aborda "mais de 50 anos da história do Brasil". Começa com a vinda da corte em 1808 e termina com
o retorno dos corpos dos imperadores em 1930. Ou nossa matemática não combina, ou o autor da
resenha, tão atento a pequenos detalhes, omite dados importantes.
Nesse caso, talvez fosse melhor falar em "mais de cem anos". Não
se trata, por certo, de ficarmos
presos a números, mas sim de, a
partir deles, destacar que não pretendi fazer mais uma biografia de
d. Pedro 2º (a exemplo dos competentes trabalhos de Lyra, Besouchet e Calmon, entre outros), já
que, na tentativa de entender a
construção da "memória mítica"
do monarca, persegui também as
manifestações que se deram após
o exílio e a volta dos corpos do casal imperial.
Essa é apenas uma das diferenças
de meu livro
com relação à
excelente biografia de Heitor Lyra, citada
na resenha como modelo.
Mas arrisco dizer mais. Julgo
o trabalho de
Lyra monumental e me apóio, e
muito, em seus dados. Heitor
Lyra, porém, não analisou a lógica
da corte; não passou perto do calendário de festas do Paço; não se
deteve na lógica dos palácios da
monarquia brasileira, ou da relação palaciana que se estabeleceu
com os historiadores do IHGB
(Instituto Histórico e Geográfico
Brasileiro), com os artistas da
Academia, com os poetas e escritores românticos. Não fez isso pois
esse não era o seu objetivo. No
meu caso, porém, o argumento é
outro: trata-se de perceber, antes
de tudo, o enraizamento da monarquia brasileira a partir de rituais de origem diversa e de analisá-la, sim, tendo em vista um referencial antropológico. Procurei
entender, sobretudo, como se dá a
construção simbólica da monarquia no Brasil e sua originalidade
tropical, recorte este que meu resenhista deixou de lado.
Por sinal, por um momento não
deixou. Cobrou a análise do barrete frígio, mas abriu mão de contar
aos leitores que o livro realiza a
análise de farto material simbólico: o cetro, a coroa, o manto, a
mão da Justiça, os leques, os vasos, medalhas, relógios, abridores
de carta, brasões... Isso sem falar
do uso da fotografia e da pintura,
da apresentação do império nas
exposições universais (e do que foi
efetivamente apresentado). Enfim... fiquemos aqui com uma pequena lista que ilustra como o resenhista selecionou uma falta e escolheu omitir tudo o que o livro
traz.
Por falar em omissão, o livro é
acusado de "omitir clássicos sobre o período". Mais à frente, no
entanto, o resenhista recua um
pouco, dizendo que alguns textos
foram "deixados meio de lado".
No caso, é bom que se diga, não
existe meia omissão. Não omito
Sérgio Buarque de Holanda, que é
mesmo e sempre uma grande inspiração e aparece citado fartamente a partir de vários de seus livros,
não só "Do Império à República", como "Visão do Paraíso" e
"Raízes do Brasil". E, mais, em
meu livro, Holanda é uma inspiração tão forte ou maior que Norbert Elias. Cito Emília Viotti da
Costa e, se não me refiro (dessa
vez) à obra de José de Souza Martins, a quem sou pessoal e intelectualmente vinculada, é porque a
questão da imigração aparece
marginalmente no livro e não quis
fazer um uso meramente ilustrativo do autor. Por sinal, é o historiador José Murilo de Carvalho, sim,
quem mais trabalhou com o imaginário da monarquia e da República. O autor de um livro tem
obrigação de citar com maior frequência obras que anteriormente
optaram por recortes semelhantes
aos seus.
Vamos em frente. Quanto aos
números da Guerra do Paraguai,
Marco Antonio Villa deixou de indicar o contexto da segunda relação de números. Nesse momento
do livro, justamente me referia à
falta de números concretos sobre
as perdas e dizia como oscilavam
as relações. "Não só desconfio"
-diferentemente do que diz o autor da resenha- como deixo explícito que esses dados não são
meus e são objeto de discórdia.
1) Não tomo Antonio Celso por
Afonso Celso, e esse personagem
não é, de forma alguma, ignorado
no livro. Se Marco Antonio Villa
tivesse se dado ao trabalho de recorrer -tão-somente- ao índice
onomástico, veria que, para além
da incorreção tipográfica da página 480, Afonso Celso é citado três
vezes -a saber nas págs. 102, 120,
123- e seu livro "Oito Anos de
Parlamento - Poder Pessoal de d.
Pedro 2º" (que consta na bibliografia) é base para parte da análise
do capítulo 6 ("A Vida na Corte"), sobretudo do trecho denominado "Política entre Pares". É
só conferir.
2) Mais uma vez o resenhista foi
desatento, ao dizer que afirmei
que Bolívar teria proposto uma
Constituição em 1862 para a Bolívia. Trata-se da nota 18 da introdução, quando estou dando dois
exemplos diferentes, e que deve
ser lida (como toda boa nota) conjuntamente com o texto a que se
refere: isto é, a pág. 17 do livro. A
junção da Bolívia com Bolívar fica
por conta do resenhista.
3) A iconografia é extensa mesmo e faz parte do argumento do
livro. Estranho que o autor tenha
destacado seu caráter só ilustrativo quando, na maior parte das vezes, as imagens entram no meio do
texto e em tamanhos -julgo eu-
muito razoáveis. Na verdade, originalmente foram levantadas
2.000 imagens. Na tese de livre-docência entraram 1.200 e no livro
700, e não 400, como afirma Villa... Mais uma vez os números.
Mas, de novo, não são eles que importam. O que vale destacar é que
em 700 imagens, é claro, algumas
aparecem com menor e outras
com maior destaque. Omitiu o resenhista a existência de dois cadernos em cores, com imagens que
tomam a página inteira. E, se a
questão são as caricaturas, a seleção por temas, por autores e mesmo o cuidado de digitar textos
(quando esses não são legíveis) ou
a reprodução de partes da brochura de Bordalo Pinheiro, "O Imperador do Rasilb", estão lá -claros e nítidos- para o leitor fazer
sua própria avaliação.
4) Como sabemos, interpretações de obras de arte são objeto de
discórdia e, muitas vezes, palco
para a subjetividade. Se vinculo a
imagem de d. Pedro 2º a de seu
santo padroeiro -no caso do
quadro de François-René Moreaux- e digo que "todo cenário
parece ligar o monarca à imagem
de Cristo...", trata-se evidentemente de uma interpretação. O resenhista tem outra, e a verdade,
aqui, pode não estar nem com ele
nem comigo.
5) D. Pedro 2º foi, sim, o primeiro príncipe "a nascer em território nacional". Quando d. João
nasceu, em 1821, o Brasil era ainda
parte do "Reino Unido de Portugal e Algarves". Tendo nascido
antes da proclamação da Independência, ele não pôde ser saudado
como príncipe herdeiro. É por isso
que d. Pedro 2º é o primeiro varão
a nascer no período imperial e o
único a ser saudado, desde o nascimento, como imperador nacional. D. João Carlos Borromeu,
Príncipe da Beira, morreu de forma prematura e só confirmou a
lenda dos franciscanos -citada
no livro-, segundo a qual os primogênitos dos Bragança jamais
chegavam ao trono. É estranho
que o resenhista diga que a autora
"faz questão de detalhar um
sem-número de acontecimentos,
o que é absolutamente desnecessário para a sua tese...", mas cobre
outros, na minha visão, pouco relevantes à análise central.
5) A carta sobre José de Alencar
não é de 1880, com certeza. Nesse
ponto o resenhista tem razão, trata-se de um erro meu ou de digitação, a verificar. Infelizmente, Marco Antonio Villa não destacou a
força e o ineditismo dessa missiva,
em que o monarca expõe seu projeto de grupo e sua posição autoritária com relação àqueles que ousavam discordar de suas diretrizes
culturais. Da forma como a crítica
é colocada, o resenhista faz o leitor
pensar que desconheço a data da
morte do escritor José de Alencar,
apontada, no livro, na pág. 535.
6) Vários comentaristas falam da
simpatia de d. Pedro 2º pela maçonaria, episódio inclusive ligado à
conhecida
"questão religiosa". Nos
documentos
constantes na
Biblioteca Nacional existem
referências a
sua atividade
nesse grupo. Se
é certo que o
pai foi maçom
(e alardeou,
como era bem
de seu feitio),
já d. Pedro 2º
fez pouca manifestação nesse sentido. No
entanto, em
documentos
por mim encontrados na
Biblioteca Nacional, e sobretudo na coleção Tobias
Monteiro, d.
Pedro 2º se
apresenta como "maçom". Não
poderia estar
apenas "confundindo",
como diz Marco Antonio
Villa, o pai
com o filho.
7) Com relação ao impacto
das teorias de
Gobineau em
seu contexto
na Europa, se é
possível citar
Vacher de Lapouge, é possível citar também Renan,
Tayne e tantos
outros que não
foram "fiéis"
a Gobineau. E
desde quando
uma citação garante notoriedade?
Melhor ainda seria recorrer a
Hannah Arendt, em seu livro
"Origens do Totalitarismo", que
engrossa o coro daqueles que
acreditavam que Gobineau não
passava de um nobre decadente,
um intelectual de segunda categoria, por demais pessimista para ter
influência no pensamento da época. Ora, quais são as políticas aplicadas a partir da obra de Gobineau, nesse contexto? Onde circulou Gobineau? Tanto era pessoa de
pouca envergadura que, tendo sido ministro em Atenas, Gobineau
acreditou que mereceria ao menos
um cargo em Constantinopla. Em
vez disso, porém, "ganhou o Império do Brasil", posto que negou
até o último momento que pôde.
Por sinal, em outro livro de minha
autoria, "O Espetáculo das Raças", trato com vagar do tema. Na
verdade, até estranhei o pouco impacto das idéias de Gobineau com
relação a d. Pedro 2º. O imperador
manteve amizade, viajou, mas limitou-se a registrar o recebimento
do polêmico trabalho de Gobineau, "Ensaio sobre a Desigualdade entre os Homens", datado
de 1853. Mais interessante, ainda,
seria pensar sobre essa relação singular e o romance "à clef" escrito
por Gobineau, no qual d. Pedro
aparece como um monarca entediado do poder. Opções do resenhista...
Enfim, desculpo-me ao leitor
que se arriscou a seguir todo esse
elenco de questões. Com efeito, essa resposta "imita" o estilo da resenha que é, muitas vezes, um
apanhado de detalhes, a maior
parte deles discutíveis. As críticas
pertinentes são bem-vindas -e
serão incorporadas-, mas lamento o pouco debate de idéias e
interpretações. Pena que Marco
Antonio Villa se limite a cobrar
pequenas passagens e abra mão de
realizar um debate intelectual como o que o livro efetivamente propõe. O desafio de entender o século 19 no Brasil não pode ser coberto com apenas um trabalho, e essa
nunca foi a minha intenção.
Por fim e em tempo: a repetição
do quadro retratando a entrega da
mensagem do banimento da família imperial não é acidental. Pode
ter escapado a Marco Antonio Villa, mas a imagem aparece três vezes (e não duas) e só na primeira
vez trata-se da litogravura oficial.
As demais são recriações tardias
de um artista popular, que, atrás
do imperador, destacou um anjo.
Males da imaginação ou da distração? Paro por aqui.
Lilia Moritz Schwarcz é professora de antropologia social na Universidade de São Paulo e autora, entre outros, dos livros "Retrato em Branco e
Negro", "Espetáculo das Raças" e "As Barbas do
Imperador".
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