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MADE IN USA
"Downshifters" pregam anticonsumismo para escapar à escravização social
A sociedade insatisfeita
CONTARDO CALLIGARIS
especial para a Folha
Em 1991, Juliet Schorr -então
professora de economia em Harvard- publicou um livro notável:
"The Overworked American: The
Unexpected Decline of Leisure"
(O Americano que Trabalha Demais: O Inesperado Declínio do
Lazer, Basic Books). Ela contestava uma falsa certeza que a contracultura dos anos 60 transformara
em esperança utópica. Tratava-se
da idéia segundo a qual a racionalização e o aumento da produtividade diminuiriam proporcionalmente o tempo de trabalho globalmente necessário e portanto permitiriam que os trabalhadores dispusessem de crescentes e maravilhosos lazeres sem renunciar por
isso ao seu nível de vida. No futuro
próximo, acreditava-se, poderíamos voltar aos prazeres bucólicos
ou então inventar formas modernas de lazer tão nobres quanto o
"otium" dos latinos.
Justamente por isso, aliás, nas
últimas décadas, sociólogos, economistas, psicólogos e outros
pensadores começaram a se preocupar com o lazer que, de um dia
para o outro, aumentaria vertiginosamente. O que faríamos com
este tempo livre crescendo exponencialmente? Leríamos Tácito e
Dante ou ficaríamos na frente da
TV?
Abriram-se departamentos universitários de estudos do lazer para tentar remediar antecipadamente tendências deterioradoras
das massas operárias, que -como
os pensadores sempre receiam-
poderiam acabar se alienando, em
vez de se cultivar. Outros futurólogos chegaram a imaginar que a nova disponibilidade de tempo nos
devolveria a formas de sociabilidade melhores, mais partícipes e
mais satisfatórias. O lazer -prevalecendo enfim sobre consumo e
produção- nos tornaria mais
respeitosos de nosso planeta e seus
recursos. Também ele produziria
o fim do desemprego. O aumento
da produtividade permitiria repartir o tempo de trabalho de tal
forma que ninguém fosse condenado à frustrante exclusão do processo produtivo. O lazer introduziria, em suma, um novo pacto
ecológico e social.
De fato, a utopia não se realizou,
nem mesmo como tendência,
mas, curiosamente, custou para
que a coisa assim se configurasse.
O livro de Schorr em 91 foi praticamente o primeiro a mostrar que o
tempo médio de trabalho per capita baixara nos EUA apenas durante a primeira metade do século. Do
fim da Segunda Guerra até então,
embora a produtividade do trabalhador americano tivesse mais do
que dobrado em 40 anos, nada
deste aumento se refletira na diminuição do tempo de trabalho. Em
outras palavras, o trabalhador
americano de hoje produz em
uma hora duas vezes o que conseguia produzir seu homólogo de
1948. Mas nem por isso ele trabalha menos. Ao contrário, suas horas de trabalho aumentaram e seguem aumentando.
O que aconteceu então para que
descartássemos a possibilidade de
uma vida mais sossegada (quem
sabe, mais feliz) e preferíssemos
prolongar nosso tempo de trabalho até reencontrar -mesmo nas
classes médias e altas- horários
parecidos com os do século passado?
Schorr só agora responde propriamente a esta pergunta, publicando um segundo livro: "The
Overspent American" (O Americano que Gasta Demais, Basic
Books), que é um dos ensaios mais
estimulantes publicados neste
ano.
O livro é uma brilhante descrição da paixão do consumo e de sua
necessidade social. O pano de fundo implícito desta vez é naturalmente a obra de Thorstein Veblen.
Em sua "Teoria da Classe de Lazer" (publicada em 1899), Veblen
notava como na sociedade moderna a diferença social não é instituída por nascença ou hierarquia,
mas produzida pela "emulação
pecuniária", ou seja pela competição de riquezas que se comparam. Neste jogo, há duas maneiras
possíveis de afirmar uma eventual
superioridade: é necessário manifestar publicamente quer seja o lazer, quer seja o consumo. Em outras palavras, é preciso se mostrar
rico ao ponto de dispensar o trabalho ou então exibir-se dono de
objetos que todos desejam.
Acontece que o ócio é uma forma de riqueza que vale sobretudo
para uma sociedade pequena. Ou
seja, é possível ostentar minha riqueza me abstendo de trabalhar,
mas só saberão que vivo no ócio as
pessoas que me conhecem bem,
meus vizinhos por exemplo. A
qualidade e quantidade de meu
consumo, por sua vez, permitem
que qualquer um reconheça imediatamente meu status. Em outras
palavras, em um aeroporto, se
quero ser reconhecido e respeitado como membro de uma classe
favorecida, de nada adianta meu
lazer -pois os desconhecidos que
cruzarei não tem como saber que
vivo de ócio.
Tentativas nesta direção (por
exemplo, exibir uma camiseta de
Aruba) são patéticas, pois, testemunhando meus sonhos de férias,
elas me designam no melhor dos
casos como um simples aspirante
na escalada social. O consumo, na
situação do aeroporto, é muito
mais eficiente. Sentado na sala do
Diners, brinco com uma caneta
Mont Blanc, falando em um telefone digital. Isso, sim, qualquer
desconhecido pode ver e reconhecer.
Veblen previa assim que, na sociedade moderna (urbana e cosmopolita), o sinal de riqueza passaria a ser o consumo e não o lazer.
Mais que isso seria difícil para ele
imaginar: como a necessidade social de consumir ostentatoriamente produziria o mundo que Schorr
descreve (o nosso), onde o consumo, que deveria nos enobrecer,
acaba nos escravizando.
Schorr mostra, por exemplo, como a própria dinâmica da rivalidade está mudando na sociedade
contemporânea. De uma situação
em que cada um tentava emular o
vizinho (ou o imediatamente superior), passamos para uma situação onde todos (inclusive os menos favorecidos) competem diretamente com os absolutamente
mais favorecidos (as estrelas sociais que constituem um único paradigma para todos). A mais básica tentativa de se afirmar socialmente se funda assim em uma
comparação impossível, e a insatisfação é instituída como razão de
ser da sociedade inteira.
Como resposta a este círculo vicioso de gasto e trabalho, Schorr
propõe na segunda parte de seu livro uma pesquisa sobre o fenômeno dos "downshifters", ou seja,
literalmente os que reduzem a
marcha, desistem da corrida social
e passam a consumir menos sem
receio de deslizar socialmente.
O fenômeno que Schorr apresenta é demasiadamente restrito
para representar uma tendência.
Também ele não escapa totalmente à lógica do consumo. A competição social é hoje cada vez menos
animada por uma comparação entre quem possui mais ou menos
produtos estandardizados. Ao
contrário, desde os anos 60, o consumidor ideal é aquele que, consumindo, consegue expressar sua livre singularidade, seu não-conformismo.
Deste ponto de vista, o "downshifter" anticonsumista, ecologista, adepto das medicinas tradicionais e naturais, construtor de cabanas de madeira no fundo dos
bosques é só mais um consumidor. Ele se diferencia em uma organização social na qual a competição está deixando de ser quantitativa e se torna um enfrentamento estético entre estilos diferentes
que se multiplicam (eu sou new
age, você é "cool", ele é motoqueiro). A diversificação aperfeiçoa o efeito da velha rivalidade
quantitativa, garantindo um novo
sopro mais variado para a produção e o consumo. E os estilos de
vida reduzidos, que Schorr relata,
são também modelos de consumo.
Mesmo assim, o fenômeno dos
"downshifters" -que decidem
trabalhar menos e descer socialmente- é uma das poucas declarações contra as condições básicas
de nossa sociedade. Uma maneira
de dizer que a felicidade não está
necessariamente na satisfação
(impossível) de desejos infinitos.
Ela poderia também consistir em
aprender a desejar menos (e menos futilidades). Parênteses: curiosamente, os EUA -onde a sociedade de consumo mais se realizou- são também a pátria de
uma tradição ideológica tão antiga
quanto o país, pela qual a vida
simples é o verdadeiro valor.
Contardo Calligaris é psicanalista e ensaísta,
autor de "Hello Brasil" (Escuta) e "Crônicas do
Individualismo Cotidiano" (Ática).
E-mailąccalligari@aol.com
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