São Paulo, domingo, 3 de janeiro de 1999

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MADE IN USA
"Downshifters" pregam anticonsumismo para escapar à escravização social
A sociedade insatisfeita

CONTARDO CALLIGARIS
especial para a Folha

Em 1991, Juliet Schorr -então professora de economia em Harvard- publicou um livro notável: "The Overworked American: The Unexpected Decline of Leisure" (O Americano que Trabalha Demais: O Inesperado Declínio do Lazer, Basic Books). Ela contestava uma falsa certeza que a contracultura dos anos 60 transformara em esperança utópica. Tratava-se da idéia segundo a qual a racionalização e o aumento da produtividade diminuiriam proporcionalmente o tempo de trabalho globalmente necessário e portanto permitiriam que os trabalhadores dispusessem de crescentes e maravilhosos lazeres sem renunciar por isso ao seu nível de vida. No futuro próximo, acreditava-se, poderíamos voltar aos prazeres bucólicos ou então inventar formas modernas de lazer tão nobres quanto o "otium" dos latinos.
Justamente por isso, aliás, nas últimas décadas, sociólogos, economistas, psicólogos e outros pensadores começaram a se preocupar com o lazer que, de um dia para o outro, aumentaria vertiginosamente. O que faríamos com este tempo livre crescendo exponencialmente? Leríamos Tácito e Dante ou ficaríamos na frente da TV?
Abriram-se departamentos universitários de estudos do lazer para tentar remediar antecipadamente tendências deterioradoras das massas operárias, que -como os pensadores sempre receiam- poderiam acabar se alienando, em vez de se cultivar. Outros futurólogos chegaram a imaginar que a nova disponibilidade de tempo nos devolveria a formas de sociabilidade melhores, mais partícipes e mais satisfatórias. O lazer -prevalecendo enfim sobre consumo e produção- nos tornaria mais respeitosos de nosso planeta e seus recursos. Também ele produziria o fim do desemprego. O aumento da produtividade permitiria repartir o tempo de trabalho de tal forma que ninguém fosse condenado à frustrante exclusão do processo produtivo. O lazer introduziria, em suma, um novo pacto ecológico e social.
De fato, a utopia não se realizou, nem mesmo como tendência, mas, curiosamente, custou para que a coisa assim se configurasse. O livro de Schorr em 91 foi praticamente o primeiro a mostrar que o tempo médio de trabalho per capita baixara nos EUA apenas durante a primeira metade do século. Do fim da Segunda Guerra até então, embora a produtividade do trabalhador americano tivesse mais do que dobrado em 40 anos, nada deste aumento se refletira na diminuição do tempo de trabalho. Em outras palavras, o trabalhador americano de hoje produz em uma hora duas vezes o que conseguia produzir seu homólogo de 1948. Mas nem por isso ele trabalha menos. Ao contrário, suas horas de trabalho aumentaram e seguem aumentando.
O que aconteceu então para que descartássemos a possibilidade de uma vida mais sossegada (quem sabe, mais feliz) e preferíssemos prolongar nosso tempo de trabalho até reencontrar -mesmo nas classes médias e altas- horários parecidos com os do século passado?
Schorr só agora responde propriamente a esta pergunta, publicando um segundo livro: "The Overspent American" (O Americano que Gasta Demais, Basic Books), que é um dos ensaios mais estimulantes publicados neste ano.
O livro é uma brilhante descrição da paixão do consumo e de sua necessidade social. O pano de fundo implícito desta vez é naturalmente a obra de Thorstein Veblen. Em sua "Teoria da Classe de Lazer" (publicada em 1899), Veblen notava como na sociedade moderna a diferença social não é instituída por nascença ou hierarquia, mas produzida pela "emulação pecuniária", ou seja pela competição de riquezas que se comparam. Neste jogo, há duas maneiras possíveis de afirmar uma eventual superioridade: é necessário manifestar publicamente quer seja o lazer, quer seja o consumo. Em outras palavras, é preciso se mostrar rico ao ponto de dispensar o trabalho ou então exibir-se dono de objetos que todos desejam.
Acontece que o ócio é uma forma de riqueza que vale sobretudo para uma sociedade pequena. Ou seja, é possível ostentar minha riqueza me abstendo de trabalhar, mas só saberão que vivo no ócio as pessoas que me conhecem bem, meus vizinhos por exemplo. A qualidade e quantidade de meu consumo, por sua vez, permitem que qualquer um reconheça imediatamente meu status. Em outras palavras, em um aeroporto, se quero ser reconhecido e respeitado como membro de uma classe favorecida, de nada adianta meu lazer -pois os desconhecidos que cruzarei não tem como saber que vivo de ócio.
Tentativas nesta direção (por exemplo, exibir uma camiseta de Aruba) são patéticas, pois, testemunhando meus sonhos de férias, elas me designam no melhor dos casos como um simples aspirante na escalada social. O consumo, na situação do aeroporto, é muito mais eficiente. Sentado na sala do Diners, brinco com uma caneta Mont Blanc, falando em um telefone digital. Isso, sim, qualquer desconhecido pode ver e reconhecer.
Veblen previa assim que, na sociedade moderna (urbana e cosmopolita), o sinal de riqueza passaria a ser o consumo e não o lazer. Mais que isso seria difícil para ele imaginar: como a necessidade social de consumir ostentatoriamente produziria o mundo que Schorr descreve (o nosso), onde o consumo, que deveria nos enobrecer, acaba nos escravizando.
Schorr mostra, por exemplo, como a própria dinâmica da rivalidade está mudando na sociedade contemporânea. De uma situação em que cada um tentava emular o vizinho (ou o imediatamente superior), passamos para uma situação onde todos (inclusive os menos favorecidos) competem diretamente com os absolutamente mais favorecidos (as estrelas sociais que constituem um único paradigma para todos). A mais básica tentativa de se afirmar socialmente se funda assim em uma comparação impossível, e a insatisfação é instituída como razão de ser da sociedade inteira.
Como resposta a este círculo vicioso de gasto e trabalho, Schorr propõe na segunda parte de seu livro uma pesquisa sobre o fenômeno dos "downshifters", ou seja, literalmente os que reduzem a marcha, desistem da corrida social e passam a consumir menos sem receio de deslizar socialmente.
O fenômeno que Schorr apresenta é demasiadamente restrito para representar uma tendência. Também ele não escapa totalmente à lógica do consumo. A competição social é hoje cada vez menos animada por uma comparação entre quem possui mais ou menos produtos estandardizados. Ao contrário, desde os anos 60, o consumidor ideal é aquele que, consumindo, consegue expressar sua livre singularidade, seu não-conformismo.
Deste ponto de vista, o "downshifter" anticonsumista, ecologista, adepto das medicinas tradicionais e naturais, construtor de cabanas de madeira no fundo dos bosques é só mais um consumidor. Ele se diferencia em uma organização social na qual a competição está deixando de ser quantitativa e se torna um enfrentamento estético entre estilos diferentes que se multiplicam (eu sou new age, você é "cool", ele é motoqueiro). A diversificação aperfeiçoa o efeito da velha rivalidade quantitativa, garantindo um novo sopro mais variado para a produção e o consumo. E os estilos de vida reduzidos, que Schorr relata, são também modelos de consumo.
Mesmo assim, o fenômeno dos "downshifters" -que decidem trabalhar menos e descer socialmente- é uma das poucas declarações contra as condições básicas de nossa sociedade. Uma maneira de dizer que a felicidade não está necessariamente na satisfação (impossível) de desejos infinitos. Ela poderia também consistir em aprender a desejar menos (e menos futilidades). Parênteses: curiosamente, os EUA -onde a sociedade de consumo mais se realizou- são também a pátria de uma tradição ideológica tão antiga quanto o país, pela qual a vida simples é o verdadeiro valor.


Contardo Calligaris é psicanalista e ensaísta, autor de "Hello Brasil" (Escuta) e "Crônicas do Individualismo Cotidiano" (Ática).
E-mailąccalligari@aol.com



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