São Paulo, domingo, 03 de março de 2002

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ACELERAÇÃO PARA NADA


O FILÓSOFO PETER SLOTERDIJK, QUE ACABA DE ESTREAR UM TALK SHOW NA TV ALEMÃ, CRITICA A GUERRA CONTRA O TERRORISMO E AFIRMA QUE A FÓRMULA 1 É O EXEMPLO MAIS BEM-ACABADO DA "VELOCIDADE VAZIA" DA CULTURA OCIDENTAL


Luiz Felipe Pondé
especial para a Folha

Peter Sloterdijk, 55, é hoje sem dúvida um dos filósofos mais conhecidos no euro-eixo Paris-Berlim. Na vida universitária alemã ainda se sentem os efeitos de sua controvérsia com Habermas acerca da biotecnologia, no segundo semestre de 1999.
Adorado por muitos e detestado por outros muitos, sua principal qualidade seria a de falar ao público aquilo que falta ser falado, discutir temas dolorosos com pouca cerimônia, e seu principal pecado, não respeitar os riscos implícitos na teoria crítica social segundo a qual idéias se transformam (porque na realidade já o são de partida) em atores sociais transformadores e, nesse sentido, colocações perigosas flertam com agentes sociais perigosos.
Para além do cenário alemão, se lembrarmos da questão acerca "da morte dos intelectuais públicos" levantada nos EUA há alguns anos (e que muitos não aceitam como uma descrição verdadeira) e se lermos essa "morte" como a transformação da inteligência filosófica (incluindo aqui filósofos, cientistas sociais, psicólogos, críticos literários, historiadores, linguistas etc.) em discussões intermináveis sobre se Shakespeare era gay ou uma mulher gay vestida de homem ou se o câncer é algo em si ou mero signo numa cadeia interminável de signos ou se devemos dedicar mil páginas à história dos fedores e dos alfinetes ou se a filosofia deve ser uma discussão acerca de um sujeito que não passa de uma "dobra geográfica", a performance de Sloterdijk tem cumprido, de certa forma, uma consistente missão de tocar questões nevrálgicas de nossa época (e que esse blablablá não enfrenta), assim como o fez quando descortinou o caráter humanista silencioso da emancipação biológico-dependente (a biotecnologia é nossa!!) na controvérsia de 1999.
Recentemente estreou um "talk show" filosófico na ZDF (emissora estatal alemã) com o título de "A Casa de Vidro", que em alemão também significa "a casa onde se cultivam plantas" ou "estufa", programa que na realidade é uma das formas que sua celebridade assumiu nos últimos anos: para seus fãs, finalmente a Alemanha acordou do pós-guerra e da culpa e recomeçou a pensar; para seus detratores, não passa de um fenômeno de alguém que flerta com aquilo que alemães jovens (nascidos no pós-45) da República de Berlim querem ouvir no momento em que a República da "pequena vila" Bonn morre (gozando na culpa).
Um dos temas centrais do seu primeiro programa foi o medo. A discussão se deu entre intelectuais e um "profissional do medo", um grande alpinista italiano. De certa forma, Sloterdijk se mantém fiel ao seu primeiro grito de guerra, sua "Crítica da Razão Cínica", há cerca de 20 anos: sua recusa radical de participar desse cinismo blablablá.
Como você se sente sendo uma celebridade na Alemanha? Do recepcionista de hotel à estudante de literatura alemã medieval, todos têm uma opinião sobre seu trabalho, alguns adoram, outros detestam! Parece haver uma idéia de que você representa uma geração de intelectuais alemães que pretende romper com o passado e a "culpa alemã". Alguns pensam que seu pensamento é um tanto irresponsável, outros, que pela primeira vez desde a Segunda Guerra um pensador alemão fala de modo livre sobre os problemas de nosso tempo.
Essa coisa de ser importante às vezes nos cria problemas. Tornei-me diretor da minha faculdade e por um ano tenho tido a dolorosa experiência interna da impossibilidade de mudar alguma coisa na vida institucional. Tudo está engessado, não há como gerar nenhuma mudança de fato, não há mais vida. Tenho experimentado a distância real entre o romantismo de quem está fora do poder administrativo e a realidade de quem está nele. Quanto a essa coisa de ser um intelectual alemão "jovem", por 25 anos se viveu sob uma nuvem de culpa e vergonha neste país. Nada havia do que se orgulhar. Penso que os jovens intelectuais alemães que nasceram depois da guerra (nasci em 47) não têm do que sentir culpa, acho que muita gente viveu muitos anos tirando vantagem desse narcisismo da culpa. Existe uma diferença entre responsabilidade e culpa, e obviamente é impossível e indesejável o simples esquecimento da tragédia que aconteceu neste país entre os anos 30 e 40. Todavia essas pessoas que me criticam não sabem bem a diferença entre responsabilidade e culpa e se chocam com meu vocabulário livre, às vezes mesmo jocoso, porque eu de alguma forma recuso abertamente essa mania de ficar se reconhecendo culpado, como aqueles pecadores medievais que usavam roupas de pecadores publicamente, você se lembra disso? Só que os de hoje usam um modelo de roupa para pecadores com o design Armani... Não há por que ficarmos nesse complexo de Segunda Guerra. Os alemães hoje podem inspirar mais confiança em seus vizinhos. O fato é que pode ser humilhante para alguns se sentirem normais.
Falando em Segunda Guerra e Holocausto, o que acha daquela crítica de que há muita "indústria do Holocausto" no Holocausto?
Acho que o ponto importante a levar em conta nessa hipótese é se realmente o Holocausto se transformou numa arma nas mãos de alguns membros da comunidade judaica norte-americana e de seus advogados, simplesmente para ganhar dinheiro, e que na realidade tudo isso em nada ajuda as vítimas verdadeiras que realmente ainda existem. Sua reflexão, de qualquer forma, permanece marcada por um profundo pessimismo com relação ao ser humano e à cultura européia ocidental. Como anda o pessimismo? Acho que consegui estabelecer uma distinção psicologicamente razoável para o meu pessimismo. Na juventude, quase me transformei em uma vítima dele. Hoje procuro manter um otimismo existencial associado a um pessimismo metodológico. Continuo achando este fundamental, principalmente para nós, profissionais do intelecto. Diria que essa tentativa de distinção é quase terapêutica para nós. Meu último livro publicado na França, que lá recebeu o título de "La Mobilité Infinie" (A Mobilidade Infinita), é um exemplo desse meu modo radicalmente crítico de ver nossa cultura. Acho que cultuamos a velocidade, a aceleração, desde no mínimo 1910, com o futurismo italiano (por exemplo), e isso se transformou numa loucura. Vejo aí um processo semelhante ao que Marx aponta com relação ao capital e o reinvestimento em si mesmo em detrimento daquilo que deveria ser objeto de investimento do dinheiro ganho. A maior parte dos ganhos tecnológicos da aceleração moderna não tem nenhum objeto que não seja o aumento da própria aceleração. Não há sentido nenhum nisso. E, assim, nada "é" realmente alguma coisa. Você está falando de uma espécie de "aceleracionismo niilista"? Isso é interessante, pois um dos "grandes valores a agregar", esse "brilhante" conceito da moda na intelligentsia em "business management", em tudo, hoje, é a rapidez. Estamos indo depressa para o nada? Pode-se pensar assim mesmo. O objetivo é unicamente passarmos de um grau de aceleração para outro maior, não há nenhuma razão ou ganho humano real nisso. Não é à toa que a Fórmula 1 se tornou um símbolo. Correr cada vez mais rápido para nada. Trata-se de uma velocidade vazia. Você esteve no Brasil na época da morte do Senna, não? Isso ficou marcado para você como imagem do Brasil? Sim! E lá vi, na capa de uma espécie de revista "Time" brasileira, uma imagem em que o Senna era crucificado no chassi do carro que o matou. Acho essa uma das críticas mais brilhantes a essa mania de aceleração da nossa cultura. Ele representa de fato o sacrificado em nosso nome.
Aqui na Europa se sente muito essa nova ordem mundial do "nobre" combate ao terrorismo. No Brasil, país periférico, essa idéia não se coloca de forma tão cotidiana. Falando-se portanto em manias, como você tem acompanhado como filósofo esse "nobre" combate do Ocidente contra o terrorismo?
Tenho pensado muito nisso. Esse é o tema do meu novo livro a ser publicado na Alemanha. Acho essa idéia de "guerra contra o terrorismo" um absurdo em termos. Hoje a guerra é terrorismo e vice-versa. Vejo essa questão do terrorismo após 11 de setembro como um caso específico de um fenômeno na pós-modernidade, que é a expansão das áreas de combate, para qualquer lado. O terrorismo (a guerra) hoje, que parece nos asfixiar, visa antes de tudo à destruição do ambiente do seu inimigo, à destruição das condições de possibilidade de sucesso do seu inimigo. Não vejo muita diferença entre a guerra "oficial" levada a cabo pelos Estados Unidos contra seus inimigos (que aliás também se caracteriza pela destruição vinda do céu, daí eu chamar nosso terrorismo de "atmoterrorismo" ou "aeromoto", como em "terremoto") e atos como os que aconteceram em Nova York.
O terrorismo hoje seria então uma espécie de infecção causada pela evolução dos modos de violência política?
Vamos a Hegel. Num primeiro momento o terror em política ou guerra teve como causa o "Terror" jacobino francês. Hegel dizia, resumidamente, que terror ali significava um estado da liberdade do poder como uma espécie de "doença infantil", na qual essa liberdade, sem limites, rapidamente se degenerava em violência. Isto é: liberdade sem lei como explosão da vontade de quem estava no poder. Nesse período havia uma coincidência entre a hipocrisia da boa vontade e um absoluto uso de meios infelizes. Num segundo momento, no terrorismo dos anarquistas, o que definia o ato de terror era o desejo de desestabilizar a sociedade e seu Estado burguês.
Você acha que há um parentesco interno entre esse processo histórico do terror e as formas tecnológicas da guerra oficial?
Estou tentando fazer a árvore genealógica do terror como ato político violento e vejo que há uma enorme diferença no momento em que a ciência em geral e a tecnologia passam a ser o coração da guerra oficial. Penso que não há diferença entre a guerra terrorista e a guerra não-terrorista hoje.
O chamado terrorismo hoje seria nada além do que uma face do processo de assimilação dos avanços tecnológicos e científicos por parte da violência política?
Podemos dizer isso. O terceiro momento do terrorismo foi o período fascista, fundador de uma "fobiocracia", um Estado sustentado no terror. Hitler sintetizou uma forma em que cerimonial e terror se juntavam para cultivar o medo no seu próprio povo. Ele fez de Hobbes um otimista, em se tratando do medo. Ele mostrou que era necessário "ajudar" o ser humano a ter ainda mais medo para que se estabelecesse o Estado.
É essa a questão trabalhada pela Escola de Frankfurt no seu estudo acerca da moderna cidadania: submissão e medo. O caráter autoritário do projeto burguês: estarmos permanentemente aterrorizados. Penso que o quarto momento ou tipo de terror, o nosso de hoje, nasce ao lado do terceiro, quando, em 22 de abril de 1915, o Regimento de Gás do Exército alemão (atenção para o nome do regimento!) lançou gás venenoso sobre o Exército francês nas trincheiras. Ali nascia a guerra terrorista atual. Interessante lembrar que o cientista ligado a esse fato, que muito estimulou o uso de armas "avançadas", como gases venenosos, e que ganhou o Prêmio Nobel em 1918 por suas descobertas em química, foi Fritz Haber, um judeu alemão que defendia tais armas por achá-las um modo "mais humano de matar na guerra" e que assim introduziu o conceito, na máquina de guerra alemã, da guerra de massa baseada em armas químicas. Hoje o terrorismo é muito ecológico, opera sobre a idéia de destruição tecnocientífica do ambiente dos seus inimigos.
Você parece carregar nas cores a responsabilidade da tecnociência nessa evolução da guerra em terrorismo ecológico e, aliás, você fala em ecologia. Não é à toa que alguém chamou a rede terrorista Al Qaeda de ONG (organização não-governamental).
Heidegger dizia que o conhecimento tecnológico e científico era uma técnica de fazer o que é implícito, interno, escondido, explícito, isto é, trazê-lo a descoberto.
Descobrir no sentido de trazer à luz os processos escondidos da natureza?
Modernização significa, nesse sentido, "explicar" (modernização não é revolução, isso foi um mal-entendido), mas não no sentido lógico comum de explanar, e sim no seu sentido cognitivo de trazer à superfície. A tecnociência traz à superfície as condições de possibilidade da vida de modo violento. Uma explosão do que era escondido na superfície.
E aí a guerra terrorista seria a apropriação dessa violência de modo obsceno?
Se você quer dizer, por exemplo, a violência de fazer uma mulher "se explicar" abrindo suas pernas involuntariamente em público, sim.


Luiz Felipe Pondé é professor de filosofia da pós-graduação em ciências da religião e do departamento de teologia da Pontifícia Universidade Católica (PUC-SP), da Fundação Armando Álvares Penteado e professor convidado da Universidade Philipps de Marburg (Alemanha). É autor de, entre outros, "O Homem Insuficiente" (Edusp).



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