São Paulo, domingo, 03 de abril de 2005

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A estrutura falsa do parentesco

Morto em janeiro, o antropólogo Claude Meillassoux questionou a explicação de Lévi-Strauss para o incesto

MANOLO FLORENTINO
COLUNISTA DA FOLHA

Os anos 50 avançavam quando Claude Meillassoux [1925-2005] regressou definitivamente a Paris. Na década anterior, cursara direito e ciência política e logo se pôs a caminho dos EUA para graduar-se em economia pela Universidade de Michigan. Retornou à França como administrador da empresa têxtil da família, mas desencantou-se com o mundo dos negócios. De novo migrou para os EUA, de onde voltava agora para intermediar os contatos entre especialistas norte-americanos em produtividade e empresas francesas. Não deu outra: em pouco tempo estava no olho da rua.


Porta-voz de um novo obscurantismo foi o mínimo que Meillassoux ouviu


Peregrinar por diferentes culturas e variados campos do saber expunha a inquietude vital que sempre o acompanharia. Abraçara a esquerda independente francesa antes de os horrores do stalinismo alcançarem a opinião pública mundial, pois cedo descobrira nas inquisitoriais "autocríticas" e na fluidez de preceitos como "centralismo democrático" e "vanguarda revolucionária" pretextos para a iteração do servilismo e do baldar. Ao contestá-los, desvelava a intrepidez que igualmente o habitava, esteio do futuro "seminário Meillassoux" da rua de Tournon.
A maneira como se tornou antropólogo reitera ser o acaso o pai dos grandes feitos e, de quebra, confirma que as profissões é que elegem os seus intérpretes. Desempregado, Claude Meillassoux não pôde recusar o convite do antropólogo Georges Balandier para resenhar os funcionalistas britânicos.
Pouco tardou para as discussões entre ambos atravessarem tardes e noites. "Assim recebi minhas aulas de etnologia", confessaria anos depois a um historiador da cultura. Balandier tornar-se-ia não apenas o seu orientador de tese mas também um interlocutor constante quando a África vinha à tona.
O estruturalismo vicejava. Amalgamando a contestação aos paradigmas culturais vigentes por meio de trabalhos transbordantes de presunção científica, seus adeptos colhiam êxitos jamais alcançados por nenhuma outra corrente intelectual da França contemporânea. A estrutura ontologizou-se em nome da ciência e da teoria -resumiria mais tarde o historiador François Dosse.
A um homem de arraigadas convicções esquerdistas como Meillassoux, incomodava sobretudo a conversão do estruturalismo em instrumento da desideologização própria da segunda metade do século 20.

Natureza e cultura
Ir à Costa do Marfim permitiu-lhe delimitar o campo do embate com Claude Lévi-Strauss e seus epígonos -a máxima segundo a qual o tabu do incesto estaria na natureza.
Sempre observando não recusar o parentesco, mas sim a sua explicação exclusivamente biológica, Meillassoux tentou demonstrar como, em alguns casos, a interdição resultava tão-somente da censura que se impunham os primeiros cronistas -quase sempre missionários- ao descreverem os hábitos sexuais dos povos primitivos. Fez a festa com uma ou duas etnias perdidas do Pacífico e, mesmo, com os casamentos incestuosos dos faraós. Mas não pôde negar representarem exceções.
Procurou então desvendar os fundamentos do tabu em um livro-chave, "Femmes, Greniers et Capitaux" [Mulheres, Sótãos e Capitais]. A não vigência da lei das probabilidades para pequenos números impediria a grupos formados apenas por pais e filhos bastarem-se demograficamente. O parentesco, como tal, estaria circunscrito às sociedades agrícolas, relacionado ao ciclo agrário que reiteradamente tornava as gerações vindouras dependentes das que antes haviam plantado.
Por derivação, a anterioridade convertia-se em princípio normativo e, com ela, a prevalência dos mais velhos. Em suma: a necessária exogamia transformara-se em tabu do incesto -o outro nome do controle masculino sobre a circulação de mulheres-, e, o parentesco, em insidiosa ideologia.
Porta-voz de um novo obscurantismo foi o mínimo que ele ouviu. Mas Meillassoux continuou a incomodar, ensejando réplicas, tréplicas e demais. A busca por explicações alternativas do parentesco levou-o à imersão na história do escravismo na África, domínio no qual suas contribuições fincaram as raízes mais profundas.
"L'Esclavage en Afrique Précoloniale" [A Escravidão na África Pré-Colonial], antologia publicada pela Maspero em 1975, não apenas instaurou o cativeiro africano como legítimo objeto de reflexão entre os africanistas mas acelerou também as trocas entre a história e a antropologia. "Antropologia da Escravidão -Ventre de Ferro e Dinheiro" [ed. Jorge Zahar] é talvez a mais culta síntese existente sobre a evolução do cativeiro ao sul do Saara, um trabalho incontornável.
Claude Meillassoux faleceu em janeiro último, aos 80 anos de idade, na mesma Paris que sempre o acolheu. Partiu bem acompanhado, escoltado até aqui por talentos como Guillermo Cabrera Infante, Arthur Miller e César Lattes.
Óbvio, não foi o primeiro bem-nascido a extrair da exegese da obra de Karl Marx os fundamentos de suas análises. Tampouco representa o único exemplo de pensador cujo termo ocorreu muito depois do ocaso de suas matrizes teóricas. Noves fora a inapreensível tragédia representada pelo fenecer -os mortos não falam- e salvo engano, seu fim não mereceu qualquer menção dos cientistas sociais brasileiros.

Manolo Florentino é professor no departamento de história da Universidade Federal do Rio de Janeiro. É autor de, entre outros, "A Paz das Senzalas" (Civilização Brasileira). Escreve na seção "Autores", do Mais!.


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