São Paulo, domingo, 03 de abril de 2005

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Análise dos gastos estatais durante o Império mostra que a região Sudeste do Brasil já era privilegiada pela União em detrimento das Províncias do norte, que, à época, pagavam boa parte dos impostos do país

Raízes da desigualdade

U. Dettmar - 6.jan.1982/Folha Imagem
Migrante desempregado em São Paulo


EVALDO CABRAL DE MELLO
COLUNISTA DA FOLHA

Investindo contra a centralização do Império em "A Província" (1870), o advogado, jornalista e político alagoano Tavares Bastos [1839-75] analisou, com base no exame do orçamento imperial de 1866-1867, a verdadeira espoliação fiscal a que as Províncias do norte (do Amazonas à Bahia) eram submetidas pelo Rio: "Satisfaz o Norte, na parte que lhe compete, a todos os encargos da União. Paga as despesas da administração geral nas suas Províncias. Paga os serviços que lhes interessam, vapores e estradas de ferro. Paga, além da que nelas se efetua, a quota relativa da despesa com o Exército e a armada. Paga a quota igualmente da representação nacional e da administração central. Paga os tributos legados pelas guerras do Sul (do Prata, por exemplo), sofre o papel-moeda, atura a dívida pública. Ainda mais: remete ao Rio de Janeiro saldos líquidos, alguns milhares de contos. Deve acaso, por cúmulo de males, suportar a centralização?".
Curiosamente, a questão levantada pelo liberal alagoano ao propor um sistema federalista para o império (idéia que Joaquim Nabuco adotará pouco antes do 15 de novembro) ficou ignorada pela historiografia imperial, embora tivesse aflorado por vezes ao longo do debate parlamentar, sobretudo nos últimos decênios do regime monárquico, como assinalei em livro intitulado "O Norte Agrário e o Império" [ed. Topbooks].

Bruto e líquido
Um estudo ainda por publicar, de autoria de André Villela, historiador econômico doutorado pela London School of Economics e professor da Universidade Cândido Mendes (RJ) e da Fundação Getúlio Vargas (RJ), veio recentemente confirmar a validade da tese de Tavares Bastos para todo o período 1844-1889.
Com base no exame dos "Balanços da Receita e Despesa do Império", o autor pôde examinar detidamente por região (segundo a divisão canônica da geografia do império entre Norte e Sul) a partilha regional das receitas e despesas.
De entrada, é necessário recordar certos aspectos do sistema fiscal do império. Até os anos da Regência, não se distinguiam receita geral e receita provincial. Foi a lei orçamentária de 1833-1834 que alocou ao governo central os direitos de importação e exportação, arrecadados nos principais portos -Rio, Salvador, Recife, São Luís e Belém- bem como certos tributos recolhidos no interior do Brasil, deixando o restante às Províncias e aos municípios.
A partilha continuou a ser leonina, cabendo ao governo central cerca de 80% de toda a receita, segundo os cálculos de Villela, dos quais 75% incidiam sobre o comércio exterior. Ferreira Viana podia assim indagar na Câmara em 1883: "O que é o imposto geral? É o que produz mais. O que é o imposto provincial? É o que produz menos. E o que é o municipal? O que produz quase nada". Tratava-se, portanto, como reconhecia, quando ministro da Fazenda, o barão de Cotegipe, do mesmo sistema fiscal da colônia, dominado pela receita dos dízimos cobrados à entrada e à saída das mercadorias.
Resumindo a investigação de André Villela, enquanto o Sul proporcionava 64,5% da receita imperial, o Norte entrava com 35,5%. No tocante às despesas brutas, ao passo que 68,8% eram realizadas no Sul, apenas 16,0% o eram no Norte, os restantes 15% eram feitas em Londres a título de pagamento da dívida externa. Focalizando exclusivamente os gastos do Ministério da Agricultura, que, como se sabe, era também, no império, Ministério das Obras Públicas (encarregando-se dos investimentos em infra-estrutura, como portos, estradas de ferro, engenhos centrais, navegação a vapor), caberiam 19,9% ao Sul e 15,5% ao Norte.
Mas a formação de economista de Villela permitiu-lhe afinar a análise, escrutinando também as despesas líquidas, segundo critérios técnicos que ele explica no anexo do seu estudo; e que podem ser sintetizados assim: nos anos em que a contribuição do Norte à receita imperial ultrapassava suas despesas líquidas, havia transferência líquida de recursos regionais para o governo central; e inversamente.

Conclusão desoladora
A conclusão é desoladora: o Sul ficou com 69,1% dos gastos do governo imperial. Para nos darmos conta da iniqüidade do rateio, basta levar em conta que a população do Norte equivalia a 52%, em 1854, e a 47,1%, em 1890. Descontando-se anos excepcionais, como os de seca em 1877-1878 e 1889, o Norte efetuou transferências líquidas em nada menos de 39 dos 44 anos a que se refere a pesquisa de Villela. Ao centrar a análise dos gastos em obras como porcentagem da despesa líquida, os investimentos correspondem a 66,4% no Sul e a 31,6% no Norte.
Consoante Villela, "em 31 dos 45 anos (da análise) o Sul foi beneficiado com despesas em "obras" em proporção superior à sua contribuição para as receitas totais". Apenas durante oito anos concentrados no derradeiro decênio monárquico, é que o Norte recebeu transferências líquidas em resposta às pressões crescentes das suas bancadas no Parlamento.
Ironicamente, o Sul como um todo tampouco tirou vantagem, de vez que os investimentos na região destinaram-se prioritariamente à construção da estrada de ferro d. Pedro 2º, que ligava a corte, São Paulo e Minas; e às obras de saneamento, abastecimento d'água e iluminação pública para que o Rio imperial ganhasse a aparência de uma grande cidade européia.
Gostaria de aduzir uma distorção adicional às que invocou Villela. Em si mesma, a estrutura fiscal do império, com sua dependência excessiva dos impostos que incidiam sobre o comércio exterior, teve outra conseqüência negativa, de quantificação talvez impossível. O Norte produzia uma receita de exportação de 35,5% do total, percentagem equivalente à da sua participação na receita total do império.
Quanto à receita de importação, contribuía com 39,6%, enquanto, na receita interior, com apenas 15,7%. Isto significa que o Norte ocupava uma posição estratégica nas finanças imperiais em termos de obtenção de divisas estrangeiras, em especial das libras com que se pagava nossa dívida externa e que permitiam efetuar os investimentos em infra-estrutura.
Posição que já era a sua durante o reinado de d. João 6º e ao longo do Primeiro Reinado e que explica boa parte do empenho com que o processo da independência no Sudeste procurou obter a adesão das Províncias setentrionais.
Cumpre formular o voto de que Villela complete sua análise no nível das Províncias, de modo a verificar quais transferiam receita para o Rio e quais as que, sendo deficitárias, eram supridas pelo cofre imperial, de acordo com a lei de 1833-1834.
Haveria mais Províncias a serem supridas no Sul do que no Norte? Provavelmente. E aqui -trata-se apenas de uma conjectura-, se as transferências líqüidas do Norte foram mais que suficientes para prover suas Províncias deficitárias, elas também terão coberto os déficits de Províncias interiores, como Goiás e Mato Grosso, ou mesmo de Províncias marítimas, como o Paraná ou Santa Catarina -que, devido a seu marginalismo econômico, eram premiadas com o essencial das despesas imperiais com imigração estrangeira. Nessa hipótese, para as grandes Províncias exportadoras do Norte (Bahia, Pernambuco, Maranhão e Pará), a centralização do império terá sido ainda mais funesta.

Evaldo Cabral de Mello é historiador e autor de "A Outra Independência" (ed. 34) e "O Negócio do Brasil" (ed. Topbooks). Ele escreve na seção "Autores", do Mais!.


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