São Paulo, domingo, 03 de abril de 2005

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O Estado de branco

CASO SCHIAVO LEMBRA TRATAMENTO DADO AOS LOUCOS NO SÉCULO 16 AO LEGITIMAR A SUBMISSÃO DO INDIVÍDUO À CORPORAÇÃO MÉDICA

ROBERTO ROMANO
ESPECIAL PARA A FOLHA

O caso Schiavo exibe as fraquezas da obediência política. Quem predomina, a lei religiosa ou a ordem do Estado? A tragédia grega apresentou tal aporia. Mas a vida de hoje acrescenta horror ao velho pesadelo. O poder, religioso ou laico, supõe que os valores sobre a vida e a morte são partilhados por dirigentes e dirigidos (Max Weber).
No caso em debate, alguns dirigentes usam crenças que se chocam com os sentimentos de muitos governados. Parece que regredimos aos inícios dos tempos modernos, quando Pierre Bayle enunciou a verdade de que, para agir moralmente, uma pessoa não precisa ser cristã. E que o Estado pode muito bem ser ateu ou sem religião. Mas o espantalho integrista distrai o público de um novo rumo político, nem religioso nem laico, imperativo, no entanto, para indivíduos e famílias.
Trata-se de um poder alheio aos valores religiosos ou mundanos. A ordem médica, não eleita nas urnas ou consagrada com óleos santos, decide o nascimento e a morte.
O Estado promete segurança e vida a quem obedece. Para isso, o manto da Justiça é posto sobre os dirigentes. Bracton enuncia a certeza de que "não existe soberano onde domina a vontade arbitrária, e não a lei". Essa regra foi universalizada nas revoluções norte-americana e francesa do século 18. Dessas últimas surgiram as legítimas democracias e a obediência com base na fé pública, na "accountability". Mas a regra se esvazia quando impera o segredo no Estado ou nas entidades civis. Dos ministérios às associações civis, o segredo define competências. Quem não possui técnica ou cargos públicos não partilha dos dados relevantes. Dentre os usuários do segredo, temos a ordem médica. O porte do uniforme branco libera informações inacessíveis aos leigos -o que revela uma falha na idéia de Estado laico, pois os "leigos" são afastados- e garante proteção corporativa.

Burocracia irreversível
Aqueles profissionais possuem prerrogativas dos que dirigem o Estado (economistas, advogados, militares etc.). A sua tutela sobre indivíduos e grupos leigos foi aprimorada com os tempos. Como a burocracia, ela é irreversível. La Boétie definiu a atitude mental dos que exercitam o poder. Para eles, "nada é mais justo nem mais conforme às leis do que a consciência de um homem religioso temente a Deus, probo e prudente. E nada é mais louco, mais tolo e mais monstruoso do que a consciência e a superstição da massa indiscreta".
E ainda: "O povo não tem meios de julgar, porque é desprovido do que fornece ou confirma um bom julgamento, as letras, os discursos e a experiência. Como não pode julgar, acredita em outrem. É comum que a multidão creia mais nas pessoas do que nas coisas e que ela seja mais persuadida pela autoridade de quem fala do que pelas razões que se enuncia" ("Mémoires de Nos Troubles sur l"Édit de Janvier 1562").
No caso de Terri Schiavo, os seus genitores são chamados de fanáticos. O atilado carola que preside os EUA somou-se aos oportunistas do Congresso, gerando um puzzle a ser resolvido. O mais perigoso, insisto, não é a tentativa dos republicanos "piedosos" de sujeitar o Estado laico ao cristianismo irracionalista.
Enquanto existir alternância no poder, aqueles atos podem ser abolidos. É grave que aporias jurídicas sejam resolvidas por uma corporação a quem se atribui algo nunca autorizado (salvo no delírio totalitário) à igreja e ao poder laico: o direito de apontar quem deve morrer sem prévia culpa civil, religiosa ou política. Mesmo na pena de morte, algo assim é indispensável.
Voltemos à obediência e comunhão de valores entre dirigidos e dirigentes que determina a legitimidade. De que serve aos povos abandonar a teocracia ou o arbítrio dos políticos laicos se a sua vida estiver suspensa, sem apelo, aos ditames de uma corporação?
O caso Schiavo retoma o ocorrido com o louco. O estatuto do insano, por ficção jurídica, ainda no século 16 era o de "ausente" ou "morto". Se ele retornasse à consciência, contas eram prestadas da sua pessoa, bens, vínculos sociais. Com o poder médico, o insensato ainda goza de certa proteção jurídica. Mas equivale apenas ao morto. Resumo cruel de quem racionalizou a nova realidade : "Se a demência é inteiramente incurável, o louco será tido como civilmente morto" (Puffendorf).

Obediência legítima
No louco se anteciparam as agressões cometidas em nome do "melhor para o paciente". A "ciência" eugênica tinha a mesma justificativa hoje usada nos tribunais norte-americanos: um corpo humano deve morrer, decreta a instituição médica (leia-se E. Black: "A Guerra contra os Fracos"). E os valores políticos ou religiosos dos leigos? Ora, essa é uma pergunta impertinente...
Com o caso Schiavo, some a era da obediência legítima. A veste branca, posta acima de governantes e governados, não exige a submissão em nome do ser divino ou da vontade popular. Seu mando ignora heresias ou revoluções democráticas. Contra suas ordens nada valem as rezas ou as urnas, Deus ou Estado de direito, Bíblia ou Constituição. Como a burocracia, ela é o nosso destino.


Roberto Romano é professor titular de ética e filosofia política na Universidade Estadual de Campinas e autor de, entre outras obras, "Moral e Ciência - A Montruosidade no Século 18" (Senac-SP).


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