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O Estado de branco
CASO SCHIAVO LEMBRA TRATAMENTO DADO AOS LOUCOS NO SÉCULO 16
AO LEGITIMAR A SUBMISSÃO DO INDIVÍDUO À CORPORAÇÃO MÉDICA
ROBERTO ROMANO
ESPECIAL PARA A FOLHA
O caso Schiavo exibe as fraquezas da obediência política. Quem predomina, a
lei religiosa ou a ordem do
Estado? A tragédia grega apresentou
tal aporia. Mas a vida de hoje acrescenta horror ao velho pesadelo. O
poder, religioso ou laico, supõe que
os valores sobre a vida e a morte são
partilhados por dirigentes e dirigidos (Max Weber).
No caso em debate, alguns dirigentes usam crenças que se chocam com
os sentimentos de muitos governados. Parece que regredimos aos inícios dos tempos modernos, quando
Pierre Bayle enunciou a verdade de
que, para agir moralmente, uma
pessoa não precisa ser cristã. E que o
Estado pode muito bem ser ateu ou
sem religião. Mas o espantalho integrista distrai o público de um novo
rumo político, nem religioso nem
laico, imperativo, no entanto, para
indivíduos e famílias.
Trata-se de um poder alheio aos
valores religiosos ou mundanos. A
ordem médica, não eleita nas urnas
ou consagrada com óleos santos, decide o nascimento e a morte.
O Estado promete segurança e vida a quem obedece. Para isso, o
manto da Justiça é posto sobre os dirigentes. Bracton enuncia a certeza
de que "não existe soberano onde
domina a vontade arbitrária, e não a lei". Essa regra foi universalizada nas
revoluções norte-americana e francesa do século 18. Dessas últimas
surgiram as legítimas democracias e
a obediência com base na fé pública,
na "accountability". Mas a regra se
esvazia quando impera o segredo no
Estado ou nas entidades civis. Dos
ministérios às associações civis, o segredo define competências. Quem
não possui técnica ou cargos públicos não partilha dos dados relevantes. Dentre os usuários do segredo,
temos a ordem médica. O porte do
uniforme branco libera informações
inacessíveis aos leigos -o que revela uma falha na idéia de Estado laico,
pois os "leigos" são afastados- e
garante proteção corporativa.
Burocracia irreversível
Aqueles profissionais possuem
prerrogativas dos que dirigem o Estado (economistas, advogados, militares etc.). A sua tutela sobre indivíduos e grupos leigos foi aprimorada
com os tempos. Como a burocracia,
ela é irreversível. La Boétie definiu a
atitude mental dos que exercitam o
poder. Para eles, "nada é mais justo
nem mais conforme às leis do que a
consciência de um homem religioso
temente a Deus, probo e prudente. E
nada é mais louco, mais tolo e mais
monstruoso do que a consciência e a
superstição da massa indiscreta".
E ainda: "O povo não tem meios de
julgar, porque é desprovido do que
fornece ou confirma um bom julgamento, as letras, os discursos e a experiência. Como não pode julgar,
acredita em outrem. É comum que a
multidão creia mais nas pessoas do
que nas coisas e que ela seja mais
persuadida pela autoridade de quem
fala do que pelas razões que se enuncia" ("Mémoires de Nos Troubles
sur l"Édit de Janvier 1562").
No caso de Terri Schiavo, os seus
genitores são chamados de fanáticos. O atilado carola que preside os
EUA somou-se aos oportunistas do
Congresso, gerando um puzzle a ser
resolvido. O mais perigoso, insisto,
não é a tentativa dos republicanos
"piedosos" de sujeitar o Estado laico
ao cristianismo irracionalista.
Enquanto existir alternância no
poder, aqueles atos podem ser abolidos. É grave que aporias jurídicas sejam resolvidas por uma corporação
a quem se atribui algo nunca autorizado (salvo no delírio totalitário) à
igreja e ao poder laico: o direito de
apontar quem deve morrer sem prévia culpa civil, religiosa ou política.
Mesmo na pena de morte, algo assim é indispensável.
Voltemos à obediência e comunhão de valores entre dirigidos e dirigentes que determina a legitimidade. De que serve aos povos abandonar a teocracia ou o arbítrio dos políticos laicos se a sua vida estiver suspensa, sem apelo, aos ditames de
uma corporação?
O caso Schiavo retoma o ocorrido
com o louco. O estatuto do insano,
por ficção jurídica, ainda no século
16 era o de "ausente" ou "morto". Se
ele retornasse à consciência, contas
eram prestadas da sua pessoa, bens,
vínculos sociais. Com o poder médico, o insensato ainda goza de certa
proteção jurídica. Mas equivale apenas ao morto. Resumo cruel de
quem racionalizou a nova realidade :
"Se a demência é inteiramente incurável, o louco será tido como civilmente morto" (Puffendorf).
Obediência legítima
No louco se anteciparam as agressões cometidas em nome do "melhor para o paciente". A "ciência"
eugênica tinha a mesma justificativa
hoje usada nos tribunais norte-americanos: um corpo humano deve
morrer, decreta a instituição médica
(leia-se E. Black: "A Guerra contra os
Fracos"). E os valores políticos ou
religiosos dos leigos? Ora, essa é uma
pergunta impertinente...
Com o caso Schiavo, some a era da
obediência legítima. A veste branca,
posta acima de governantes e governados, não exige a submissão em
nome do ser divino ou da vontade
popular. Seu mando ignora heresias
ou revoluções democráticas. Contra
suas ordens nada valem as rezas ou
as urnas, Deus ou Estado de direito,
Bíblia ou Constituição. Como a burocracia, ela é o nosso destino.
Roberto Romano é professor titular de ética e filosofia política na Universidade Estadual de Campinas e autor de, entre outras
obras, "Moral e Ciência - A Montruosidade
no Século 18" (Senac-SP).
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