São Paulo, domingo, 03 de abril de 2005

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Critérios disparatados

CONVIVÊNCIA ENTRE MODOS DE VIDA OPOSTOS SÓ PODE ENCONTRAR UM LIMITE EM UMA INSTITUIÇÃO QUE POSSUA O PODER

JOSÉ ARTHUR GIANNOTTI

COLUNISTA DA FOLHA

Qual é o critério adequado para nortear a decisão de retirar ou manter a sonda que mantinha viva Terri Schiavo? O marido, guardião legal, já decidira pela retirada. Depois de processar o hospital pelo erro médico cometido -responsável por ter reduzido a mulher a uma vida vegetativa-, depois de cuidar dela durante 15 anos, solicita aos médicos que a deixem morrer em paz, interrompendo a alimentação artificial. Limita-se a argumentar que seu estado de saúde é irrecuperável, não havendo mais esperança de que venha a ter uma vida digna.
Dilema para os médicos. Aqueles defensores da vida a qualquer custo se recusam a abandonar o tratamento; a maioria deles, porém, não considera a vida vegetal como humana e se dispõe a retirar a sonda e desligar os aparelhos. Quem tem razão? Cada vez se torna mais complicado estabelecer precisamente as fronteiras entre os humanos e os outros animais. Dizem que a razão está em crise e a capacidade do discurso tem reduzido as pessoas a papagaios falantes. Se as formas mais elementares de vida devem ser protegidas, mais conseqüentes seriam aqueles místicos hindus que varrem o chão antes de dar um passo.
Mas ignoram que o próprio andar descalço provavelmente destrói certas bactérias da pele. Em contrapartida, os médicos ocidentais não hesitam em recomendar sopa de galinha aos enfermos debilitados. Até há pouco tempo, do ponto de vista médico, a morte era declarada quando o coração parava de bater; hoje, depois que o cérebro deixa de funcionar. No limite desse ângulo até é possível questionar se Terri estava morta ou não, já que grande parte de seu cérebro estava destruída. E esse não é um caso ímpar, pois uma polêmica semelhante se levanta a respeito do aborto de fetos sem cérebros.

Argumentos cruzados
Em vista dessa argumentação cruzada, cabe constatar que falta à medicina critérios precisos para resolver a questão. Se a maioria dos médicos de hoje opta pela retirada do aparelho é porque invoca o critério moral de que Terri não tem nenhuma condição de levar uma vida digna. Mas para muitas pessoas basta ter um fiapo de vida para que ele seja digno de sobreviver.
Não se avança muito quando se passa para o plano moral, que pouco se desliga do plano religioso. Para aqueles que acreditam que o ser humano foi feito à imagem e à semelhança de Deus, somente Ele pode retirar a vida, embora alguns aceitam em casos extremos a pena de morte. Argumento difícil de ser sustentado no plano da discussão racional, pois a vida de Terri havia sido manipulada por muitos anos, com sucessivas intervenções no processo natural. E, se foi Deus que criou os humanos, não é por isso que os isentou do livre-arbítrio nem recuperou o fruto roubado da árvore do conhecimento, cujo emprego, aliás, tecnologicamente bem feito, tem prolongado substancialmente a expectativa de vida dos habitantes mais abastados do globo.
Desse modo, se Deus colocou os seres humanos no tempo, eles mesmos têm sabido jogar com a duração da vida. Mas até onde vai nossa liberdade de intervir na natureza? Atordoado por esses argumentos, o religioso costuma apelar para a fé. Acredita em milagres, e Deus poderia ter ressuscitado Terri. Mas, nesse plano, não vejo diferença entre ressuscitá-la para a vida ativa e consciente, seja a partir do corpo desconcertado, seja a partir de suas cinzas depois de sepultada ou cremada e assim por diante.

A dor dos pais
Torna-se evidente, então, a inutilidade de argumentar quando a diferença diz respeito a um modo de vida. Diante do impasse, nós que acreditamos que Terri se deixasse morrer, posto que não pode levar uma vida digna, devemos ainda respeitar o ponto de vista contrário, reconhecendo no conceito de "digno" a irredutibilidade da fé religiosa.
Convém não se esquecer dos pais, principalmente da mãe. Deixemos de lado seus argumentos racionais, pois, no fundo não estão dispostos a enfrentar a perda radical que é a morte de um filho. E não cabe censurá-los por isso. Sabemos que, do ponto de vista médico, as alterações fisiológicas provadas pelo luto ainda estão presentes depois de um ano da perda. Mas na mãe essas alterações perduram para sempre.
Se Terri precisa morrer para que a vida humana tenha em geral algum sentido, para que todos nós possamos fazer parte de um mundo moral que ultrapassa o plano dos fatos, ou melhor, para que todos nós possamos conviver no mundo do espírito, não há como deixar de considerar o sofrimento dos pais que perdem um filho. É como se um milagre em negativo se inserisse na ordem criada por Deus.
Não vejo, pois, como salvar qualquer critério moral ou religioso que venha legitimar uma decisão a respeito de Terri. O conflito se situa mais além, pois diz respeito a diferentes formas de vida que passaram a conviver no mundo contemporâneo. Não estou abdicando da defesa de meus pontos de vista, de meu agnosticismo, da minha certeza de que uma vida indigna não vale a pena. Não é por isso que seres humanos enfrentam a luta e a morte em nome de seus valores?
Se a contradição é irredutível cabe conviver com ela. Mas como e em que base? Se a convivência entre os argumentos, a fé e os modos de vida é possível no plano mais abstrato das opiniões, ela se quebra diante de caso concreto de Terri, quando uma decisão singular há de ser tomada.
E quando o entendimento mútuo deixa de funcionar, somente resta uma saída, a luta capaz de estabelecer o poder de impor aos outros uma decisão particular. E a escolha se deu entre a violência dos grupos lutando caso a caso ou aquela violência legitimada do Estado, isto é, institucionalizada.
Não é à toa que a disputa entre os norte-americanos tenha sido transferida para o plano do Judiciário. Não que este se apresente como uma espécie de esfera celeste cujos movimentos perfeitos regulassem os acontecimentos do mundo sublunar. A disputa também se exerce no seu interior, a ponto de leis "ad hoc" serem promulgadas a cada dia para atender a este ou àquele ponto de vista. Mas a chicana com as leis possui limites diferentes conforme o sistema judiciário é mais ou menos instável, isto é, mais ou menos institucionalizado.
Não é a mesma coisa jogar com as contradições das leis norte-americanas, ainda mais quando se leva em conta a diversidade dos Estados, e jogar com a inoperância do sistema brasileiro, que abre, como todos sabemos, largas brechas para a impunidade. No entanto, seja como for, essa disputa entre formas de vida concorrentes, tão característica do mundo contemporâneo, somente pode encontrar um limite numa instituição que possua o poder, aceito por todos, de resolver o dilema neste caso particular, embora os litigantes não desistam de modificar seu ordenamento jurídico. Quem ganha na Justiça tem o poder legítimo ao seu lado, mas não é por isso que o perdedor se considera justiçado.
Por isso a disputa salta para o plano da política, onde as instituições se formam e se destroem, onde a diferença moral se torna arma e, por isso mesmo, pode ser desgastada.


José Arthur Giannotti é professor emérito na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP e coordenador da área de filosofia do Cebrap (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento). Escreve mensalmente na seção "Autores", do Mais!.

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