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Critérios disparatados
CONVIVÊNCIA ENTRE
MODOS DE VIDA OPOSTOS
SÓ PODE ENCONTRAR
UM LIMITE EM UMA INSTITUIÇÃO
QUE POSSUA O PODER
JOSÉ ARTHUR GIANNOTTI
COLUNISTA DA FOLHA
Qual é o critério adequado
para nortear a decisão de
retirar ou manter a sonda
que mantinha viva Terri
Schiavo? O marido, guardião legal, já
decidira pela retirada. Depois de
processar o hospital pelo erro médico cometido -responsável por ter
reduzido a mulher a uma vida vegetativa-, depois de cuidar dela durante 15 anos, solicita aos médicos
que a deixem morrer em paz, interrompendo a alimentação artificial.
Limita-se a argumentar que seu estado de saúde é irrecuperável, não
havendo mais esperança de que venha a ter uma vida digna.
Dilema para os médicos. Aqueles
defensores da vida a qualquer custo
se recusam a abandonar o tratamento; a maioria deles, porém, não considera a vida vegetal como humana e
se dispõe a retirar a sonda e desligar
os aparelhos. Quem tem razão? Cada vez se torna mais complicado estabelecer precisamente as fronteiras
entre os humanos e os outros animais. Dizem que a razão está em crise e a capacidade do discurso tem reduzido as pessoas a papagaios falantes. Se as formas mais elementares
de vida devem ser protegidas, mais
conseqüentes seriam aqueles místicos hindus que varrem o chão antes
de dar um passo.
Mas ignoram que o próprio andar
descalço provavelmente destrói certas bactérias da pele. Em contrapartida, os médicos ocidentais não hesitam em recomendar sopa de galinha
aos enfermos debilitados. Até há
pouco tempo, do ponto de vista médico, a morte era declarada quando
o coração parava de bater; hoje, depois que o cérebro deixa de funcionar. No limite desse ângulo até é
possível questionar se Terri estava
morta ou não, já que grande parte de
seu cérebro estava destruída. E esse
não é um caso ímpar, pois uma polêmica semelhante se levanta a respeito do aborto de fetos sem cérebros.
Argumentos cruzados
Em vista dessa argumentação cruzada, cabe constatar que falta à medicina critérios precisos para resolver a questão. Se a maioria dos médicos de hoje opta pela retirada do
aparelho é porque invoca o critério
moral de que Terri não tem nenhuma condição de levar uma vida digna. Mas para muitas pessoas basta
ter um fiapo de vida para que ele seja
digno de sobreviver.
Não se avança muito quando se
passa para o plano moral, que pouco
se desliga do plano religioso. Para
aqueles que acreditam que o ser humano foi feito à imagem e à semelhança de Deus, somente Ele pode
retirar a vida, embora alguns aceitam em casos extremos a pena de
morte. Argumento difícil de ser sustentado no plano da discussão racional, pois a vida de Terri havia sido
manipulada por muitos anos, com
sucessivas intervenções no processo
natural. E, se foi Deus que criou os
humanos, não é por isso que os isentou do livre-arbítrio nem recuperou
o fruto roubado da árvore do conhecimento, cujo emprego, aliás, tecnologicamente bem feito, tem prolongado substancialmente a expectativa
de vida dos habitantes mais abastados do globo.
Desse modo, se Deus colocou os
seres humanos no tempo, eles mesmos têm sabido jogar com a duração
da vida. Mas até onde vai nossa liberdade de intervir na natureza?
Atordoado por esses argumentos, o
religioso costuma apelar para a fé.
Acredita em milagres, e Deus poderia ter ressuscitado Terri. Mas, nesse
plano, não vejo diferença entre ressuscitá-la para a vida ativa e consciente, seja a partir do corpo desconcertado, seja a partir de suas cinzas
depois de sepultada ou cremada e
assim por diante.
A dor dos pais
Torna-se evidente, então, a inutilidade de argumentar quando a diferença diz respeito a um modo de vida. Diante do impasse, nós que acreditamos que Terri se deixasse morrer, posto que não pode levar uma
vida digna, devemos ainda respeitar
o ponto de vista contrário, reconhecendo no conceito de "digno" a irredutibilidade da fé religiosa.
Convém não se esquecer dos pais,
principalmente da mãe. Deixemos
de lado seus argumentos racionais,
pois, no fundo não estão dispostos a
enfrentar a perda radical que é a
morte de um filho. E não cabe censurá-los por isso. Sabemos que, do
ponto de vista médico, as alterações
fisiológicas provadas pelo luto ainda
estão presentes depois de um ano da
perda. Mas na mãe essas alterações
perduram para sempre.
Se Terri precisa morrer para que a
vida humana tenha em geral algum
sentido, para que todos nós possamos fazer parte de um mundo moral
que ultrapassa o plano dos fatos, ou
melhor, para que todos nós possamos conviver no mundo do espírito,
não há como deixar de considerar o
sofrimento dos pais que perdem um
filho. É como se um milagre em negativo se inserisse na ordem criada
por Deus.
Não vejo, pois, como salvar qualquer critério moral ou religioso que
venha legitimar uma decisão a respeito de Terri. O conflito se situa
mais além, pois diz respeito a diferentes formas de vida que passaram
a conviver no mundo contemporâneo. Não estou abdicando da defesa
de meus pontos de vista, de meu agnosticismo, da minha certeza de que
uma vida indigna não vale a pena.
Não é por isso que seres humanos
enfrentam a luta e a morte em nome
de seus valores?
Se a contradição é irredutível cabe
conviver com ela. Mas como e em
que base? Se a convivência entre os
argumentos, a fé e os modos de vida
é possível no plano mais abstrato
das opiniões, ela se quebra diante de
caso concreto de Terri, quando uma
decisão singular há de ser tomada.
E quando o entendimento mútuo
deixa de funcionar, somente resta
uma saída, a luta capaz de estabelecer o poder de impor aos outros
uma decisão particular. E a escolha
se deu entre a violência dos grupos
lutando caso a caso ou aquela violência legitimada do Estado, isto é,
institucionalizada.
Não é à toa que a disputa entre os
norte-americanos tenha sido transferida para o plano do Judiciário.
Não que este se apresente como uma
espécie de esfera celeste cujos movimentos perfeitos regulassem os
acontecimentos do mundo sublunar. A disputa também se exerce no
seu interior, a ponto de leis "ad hoc"
serem promulgadas a cada dia para
atender a este ou àquele ponto de
vista. Mas a chicana com as leis possui limites diferentes conforme o sistema judiciário é mais ou menos instável, isto é, mais ou menos institucionalizado.
Não é a mesma coisa jogar com as
contradições das leis norte-americanas, ainda mais quando se leva em
conta a diversidade dos Estados, e
jogar com a inoperância do sistema
brasileiro, que abre, como todos sabemos, largas brechas para a impunidade. No entanto, seja como for,
essa disputa entre formas de vida
concorrentes, tão característica do
mundo contemporâneo, somente
pode encontrar um limite numa instituição que possua o poder, aceito
por todos, de resolver o dilema neste
caso particular, embora os litigantes
não desistam de modificar seu ordenamento jurídico. Quem ganha na
Justiça tem o poder legítimo ao seu
lado, mas não é por isso que o perdedor se considera justiçado.
Por isso a disputa salta para o plano da política, onde as instituições se
formam e se destroem, onde a diferença moral se torna arma e, por isso
mesmo, pode ser desgastada.
José Arthur Giannotti é professor emérito
na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências
Humanas da USP e coordenador da área de
filosofia do Cebrap (Centro Brasileiro de
Análise e Planejamento). Escreve mensalmente na seção "Autores", do Mais!.
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