São Paulo, domingo, 03 de julho de 2005

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

O COLAPSO DA INFÂNCIA

Katz e Jurandir defendem que o colapso da diferença entre a idade adulta e a infância -os mais velhos juvenilizados, e os mais novos tornados adultos precoces- levou consigo a função de "ponte" entre as duas que o sonho desempenhava.
 

Katz - Freud vai mostrar que a infância permanece na linguagem dos sonhos. Que a criança tem produções que a linguagem adulta vai apagar, o que conhecemos como recalque, que, contudo, no sonho, continua se manifestando. É o que constitui o desejo e é inesgotável. O sujeito é aquilo, sem que ele possa se reconhecer naquilo. O sonho é um "re-conhecimento" desse infantil. É preciso perguntar se, na contemporaneidade, ainda há uma margem boa para que esse infantil possa se expressar permanentemente.
Se nós sabemos que, com as artes, esse conhecimento é possível, é preciso perguntar se as artes hoje não se separaram um pouco da vida cotidiana de todos nós, e se com isso o infantil não ficou sendo uma área dominada por técnicas muito específicas. O sujeito que é infantil hoje é mandado se tratar. É como se essas expressões infantis, que insistem no sonho, quando aparecem numa intensidade muito grande, terminassem na mão de um especialista.

Folha - Busca-se menos, religa-se menos com a infância?
Katz -
A infância hoje se torna precocemente adulta. A criança é, hoje, o pré-adulto. Ela deve obrigações ao mundo do adulto, esse mundo de circulação de idéias, produção de bens e serviços, de ideologia. Até ser criança atualmente é problemático.

Folha - E o que era ser criança antigamente, o que era a infância?
Katz -
O sujeito era marcado por um período, por uma certa "liberdade" que não dizia respeito a sua captura em aparelhos de pensar mais adultos, que seguiriam os ditames da vida produtiva. A criança se vestia de um jeito diferente, se expressava, comia de um modo diferente. Hoje você come McDonald's de um até os 70 anos de idade. A roupa infantil é a mesma que serve para a mãe e para a filha recém-nascida.
Jurandir - O relato do sonho é induzido pela transferência. Todos nós sonhamos. A produção dos sonhos é discutida quando se está na análise porque o paciente sabe que tem alguém a quem dirigir aquele sonho, alguém que supostamente sabe o que aquele sonho significa e que vai ajudá-lo a sofrer menos. Espontâneo ou não, Freud acreditava que sonhar revelava algo de verdadeiro do sujeito, a verdade "sombria" da alma humana, a verdade do incesto, do parricídio, da morte. Em suma, o sonho mostrava ao mesmo tempo como aquilo surgia e como você tinha do lado de cá uma espécie de barreira que impedia que aquilo se realizasse, atenuando o impacto disso e fazendo com que o sujeito caminhasse para a sublimação, por exemplo, para a arte. O sonho era essa espécie de decodificador que fazia da criança o pai patológico ou normal do adulto.
Conseqüentemente haveria todo o interesse em tentar ver se, voltando a esse passado infantil, a gente poderia descobrir os primeiros passos disso que seria a "saúde" ou "a doença". Acontece que se tinha, nesse modelo da criança como pai patológico do adulto, uma distância muito mais marcada, em primeiro lugar pelo fato de que se imaginava que aquelacriança vivia coisas que o adulto não ia viver. Em segundo, a forma como o adulto se imaginava estava em radical oposição à maneira como a criança se imaginava.
Duas coisas, hoje, são marcantes para que o sonho tenha perdido esse caráter de decifrador da alma humana. É que parece que ele não tem mais nada a decifrar. Primeiro porque o modelo da juventude é um modelo que o adulto quer. E o modelo da adultez infantil é um modelo que ele ensina à criança. Houve uma espécie de colapso imaginário entre essas etapas de vida.
Um não tem muito o que aprender com o outro porque os dois ficaram mais ou menos afunilados no mesmo comportamento de irresponsabilidades, de uma vida prazerosa que não implique o cálculo de conseqüências, de como aquilo vai repercutir no outro, uma certa desenvoltura da ética, que à época de Freud era muito marcada.
Em segundo lugar, existe um esvaziamento, uma rarefação, do que seriam os grandes mitos românticos de Freud a propósito da força, do impacto, da destruição. O romantismo sombrio, que apresentava aquilo de forma até atraente pelo fascínio "vis-à-vis" daquele racionalismo nato, engessado e frio. Pelo outro lado você tinha aqueles poderes, das trevas, que sobretudo a arte revelava.
O que acontece é que a arte não é mais isso, ganhou forma de mercadoria. A sacralização da arte no tempo de Freud, como reveladora da alma humana mais profunda... A gente descobriu que ela é perfeitamente reciclável pelo mecanismo do cálculo, da instrumentação. Hoje em dia, você não choca mais ninguém com nada. Você não tem a impressão de revelar nada de mais denso, mais profundo, mais abstrato, com a arte. A arte se tornou parte integrante do circuito de entretenimento, o que deflacionou absolutamente o seu encanto.
Hoje ninguém espera mais do sonho que venha revelar alguma coisa que já não se saiba, que já não tenha sido vista na televisão ou num livro de auto-ajuda. Tudo isso contribui para que a gente não perceba mais no sonho alguma coisa de fato interessante.


Texto Anterior: Fim do espanto
Próximo Texto: A crise do outro
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.