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O COLAPSO DA INFÂNCIA
Katz e Jurandir defendem que
o colapso da diferença entre
a idade adulta e a infância
-os mais velhos juvenilizados, e os mais novos tornados adultos precoces- levou consigo a função de "ponte" entre as duas que o
sonho desempenhava.
Katz - Freud vai mostrar que a
infância permanece na linguagem
dos sonhos. Que a criança tem produções que a linguagem adulta vai
apagar, o que conhecemos como recalque, que, contudo, no sonho,
continua se manifestando. É o que
constitui o desejo e é inesgotável. O
sujeito é aquilo, sem que ele possa se
reconhecer naquilo. O sonho é um
"re-conhecimento" desse infantil. É
preciso perguntar se, na contemporaneidade, ainda há uma margem
boa para que esse infantil possa se
expressar permanentemente.
Se nós sabemos que, com as artes,
esse conhecimento é possível, é preciso perguntar se as artes hoje não se
separaram um pouco da vida cotidiana de todos nós, e se com isso o
infantil não ficou sendo uma área
dominada por técnicas muito específicas. O sujeito que é infantil hoje é
mandado se tratar. É como se essas
expressões infantis, que insistem no
sonho, quando aparecem numa intensidade muito grande, terminassem na mão de um especialista.
Folha - Busca-se menos, religa-se
menos com a infância?
Katz - A infância hoje se torna precocemente adulta. A criança é, hoje,
o pré-adulto. Ela deve obrigações ao
mundo do adulto, esse mundo de
circulação de idéias, produção de
bens e serviços, de ideologia. Até ser
criança atualmente é problemático.
Folha - E o que era ser criança antigamente, o que era a infância?
Katz - O sujeito era marcado por
um período, por uma certa "liberdade" que não dizia respeito a sua captura em aparelhos de pensar mais
adultos, que seguiriam os ditames
da vida produtiva. A criança se vestia de um jeito diferente, se expressava, comia de um modo diferente.
Hoje você come McDonald's de um
até os 70 anos de idade. A roupa infantil é a mesma que serve para a
mãe e para a filha recém-nascida.
Jurandir - O relato do sonho é induzido pela transferência. Todos
nós sonhamos. A produção dos sonhos é discutida quando se está na
análise porque o paciente sabe que
tem alguém a quem dirigir aquele
sonho, alguém que supostamente
sabe o que aquele sonho significa e
que vai ajudá-lo a sofrer menos. Espontâneo ou não, Freud acreditava
que sonhar revelava algo de verdadeiro do sujeito, a verdade "sombria" da alma humana, a verdade do
incesto, do parricídio, da morte. Em
suma, o sonho mostrava ao mesmo
tempo como aquilo surgia e como
você tinha do lado de cá uma espécie
de barreira que impedia que aquilo
se realizasse, atenuando o impacto
disso e fazendo com que o sujeito caminhasse para a sublimação, por
exemplo, para a arte. O sonho era essa espécie de decodificador que fazia
da criança o pai patológico ou normal do adulto.
Conseqüentemente haveria todo o
interesse em tentar ver se, voltando a
esse passado infantil, a gente poderia
descobrir os primeiros passos disso
que seria a "saúde" ou "a doença".
Acontece que se tinha, nesse modelo
da criança como pai patológico do
adulto, uma distância muito mais
marcada, em primeiro lugar pelo fato de que se imaginava que aquelacriança vivia coisas que o adulto não
ia viver. Em segundo, a forma como
o adulto se imaginava estava em radical oposição à maneira como a
criança se imaginava.
Duas coisas, hoje, são marcantes
para que o sonho tenha perdido esse
caráter de decifrador da alma humana. É que parece que ele não tem
mais nada a decifrar. Primeiro porque o modelo da juventude é um
modelo que o adulto quer. E o modelo da adultez infantil é um modelo
que ele ensina à criança. Houve uma
espécie de colapso imaginário entre
essas etapas de vida.
Um não tem muito o que aprender
com o outro porque os dois ficaram
mais ou menos afunilados no mesmo comportamento de irresponsabilidades, de uma vida prazerosa
que não implique o cálculo de conseqüências, de como aquilo vai repercutir no outro, uma certa desenvoltura da ética, que à época de
Freud era muito marcada.
Em segundo lugar, existe um esvaziamento, uma rarefação, do que seriam os grandes mitos românticos
de Freud a propósito da força, do
impacto, da destruição. O romantismo sombrio, que apresentava aquilo
de forma até atraente pelo fascínio
"vis-à-vis" daquele racionalismo nato, engessado e frio. Pelo outro lado
você tinha aqueles poderes, das trevas, que sobretudo a arte revelava.
O que acontece é que a arte não é
mais isso, ganhou forma de mercadoria. A sacralização da arte no tempo de Freud, como reveladora da alma humana mais profunda... A gente descobriu que ela é perfeitamente
reciclável pelo mecanismo do cálculo, da instrumentação. Hoje em dia,
você não choca mais ninguém com
nada. Você não tem a impressão de
revelar nada de mais denso, mais
profundo, mais abstrato, com a arte.
A arte se tornou parte integrante do
circuito de entretenimento, o que
deflacionou absolutamente o seu
encanto.
Hoje ninguém espera mais do sonho que venha revelar alguma coisa
que já não se saiba, que já não tenha
sido vista na televisão ou num livro
de auto-ajuda. Tudo isso contribui
para que a gente não perceba mais
no sonho alguma coisa de fato interessante.
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