São Paulo, domingo, 03 de julho de 2005

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A CRISE DO OUTRO

O outro, a quem se narra o sonho, faz parte do seu sentido, é decisivo para a definição do seu significado. Com o enfraquecimento da "ética do sacrifício" -encarnada nas formas sociais e religiosas tradicionais-, que prevê que o sujeito abra mão de parte de sua vontade, liberdade e autonomia para poder construir o seu próprio sentido, o outro perde sua "face". A relação do sujeito com os outros não se dá mais a partir do sacrifício, mas do abuso inconseqüente ou da dívida sem fim a ser permanentemente cobrada.
A tarefa compartilhada de decifração do sonho é enfraquecida.
 

Katz - Nós não podemos deixar de sonhar. O sonho insiste. Eu diria que o que é atemporal na construção teórica de Freud é que o sonho se sonha, independente disso que estamos pensando, a gente continua sonhando. O sonho aparece hoje sob outras formas. Uma delas seria a ampliação da fantasia. Do ponto de vista expansivo, continua-se fantasiando na vida social, como o Joãosinho Trinta falou: "Quem gosta de miséria é intelectual". Gostava. O luxo, nesse sentido, é expansivo e toma conta desde os grupos mais pobres aos mais ricos.
O infantil, também, não deixa de insistir, por exemplo com as questões da morte, da finitude, da miséria, da doença, do envelhecimento. Elas aparecem hoje nas formas dessas novas religiões e seitas, que emergem dando soluções a isso, acatando esse infantil sem dizer que é infantil, mas tomando isso sob a figura de possessões, do demônio, e reencantando essas formas, dando-lhes uma organização racional. Racionalidade dessas novas religiões, que prometem a felicidade terrena, sem jogar para o mundo de lá. Acho que é um modo de, restritivamente, fazer falar o infantil. As novas religiões, colocando-se como terrenais, souberam dar conta disso.

Jurandir - Quanto à religião, há também uma dimensão que é a de orientar a ética cotidiana. Foi uma das características do desenvolvimento da religião, a de fornecer normas e regras para a ética cotidiana. Foi também a maneira como a religião acabou se diluindo: ela ensinou a tanta gente que religião era ética, e foi perdendo cada vez mais seu caráter místico, que acabou sendo dispensada. Com a relativização excessiva que temos no mundo pós-moderno -que aparece não só na teoria, mas também no nível do fenômeno de massa, das novelas, dos "talk shows"-, em particular nos padrões de moralidade sexual, sentimental...
O que equivale ao relativismo num nível mais abstrato que se possa ter na reflexão filosófica, você começa a ter embaixo, na sociedade. Um relativismo em matéria de uma coisa muito xucra, muito pedestre, mas que manteve esse Ocidente ordenado, que são as moralidades de trabalho, de sexo, de família. Essa ética se perde quando se apresentam tipos novos, condutas novas, criticando o tempo inteiro a autoridade do adulto, o preconceito contra sexo, a moralidade do trabalho. Isso acaba deixando as pessoas completamente desorientadas. Chega a religião e tenta dar um norte. Primeiro, faz uma espécie de reminiscência do protestantismo, dizendo que a pessoa trabalhe e seja séria que vai ter dinheiro e uma boa vida. É quase um weberianismo pós-datado para a população mais pobre. Depois, é de uma moralidade estrita, em geral absolutamente conservadora, que novamente retoma as pessoas e ainda permite a presença do êxtase ritual, que é algo característico da sociedade de hoje, que tem vínculos fracos de sociabilidade.
Um dos poucos lugares em que as pessoas se reúnem é em torno de rituais extáticos. São pontuais, se dispersam, não são fixos. Ali elas ganham uma identidade provisória, até que o próximo ritual venha empolgar.

Folha - As pessoas ainda narram sua vida da mesma maneira?
Katz -
O declínio da importância do sonho na análise diz respeito a um dos elementos do sonho: se ele pede ao sujeito para ser expresso, ele precisa de algo que o decifre, ou o psicanalista, ou o catálogo junguiano, ou a religião. E para mim isso se coloca como um sintoma: quando o sujeito perde a capacidade de sonhar, nesse sentido, de dirigir o seu sonho a um terceiro para que eles possam fazer outro sentido, significa que o outro está perdendo a sua força, a sua potência, que teve por muito tempo. O outro hoje se transforma em formas medicamentosas, em formas curativas rápidas, e não mais o outro da interrogação. Que faz parte constitutiva do que Freud entendia como sonho -não é um elemento fora do sonho. É o atemporal no modo de pensar o sonho. Isso me preocupa, porque o sujeito não mais quer saber o que o angustia, mas suturar, tapar isso imediatamente, o que deve ser pensado não como um problema da utopia, mas um problema da própria existência.

Jurandir - O sonho é um indicativo dessa relação com o outro e sobretudo constitutivo de uma ética, que eu chamaria de ética do sacrifício.
Na qual, para obter sentido para minha vida, eu tenho que abrir mão de alguma coisa de mim para dar ao outro. Isso foi válido para religião grega, para o cristianismo, até para a política, quando abro mão de parte da minha autonomia para dá-la ao Estado e adquirir sentido e segurança. Acho que hoje em dia a gente começa a perder um pouco isso sem que nada reclame. Nossa imaginação talvez não tenha pensado outra relação com a alteridade. Só imaginamos o modelo sacrificial, e esse está se perdendo, porque as pessoas hoje querem ceder pouco ao outro em busca de alguma coisa que dê sentido.
E isso de duas formas: ou da arrogância anti-social, ou da vitimização. No primeiro, eu não devo nada ao outro, e aquilo é palco da execução e da ação do meu desejo: eu mato, eu quebro, eu esfolo, eu roubo, eu faço o que eu bem quiser e entender, não devo nada a ninguém. O segundo, o modo da vítima, é que não devo nada ao outro porque ele está o tempo inteiro em dívida comigo. Ele não me deu, não me deu, me fez sofrer, me retirou, e agora peço o tempo inteiro o ressarcimento. Do Estado, da mãe, do pai, de quem quer que seja.
No começo, para Freud, ele não pensava que a crítica ao outro era para tirá-lo permanentemente desse lugar. Era para tirar a magnificação, a idealização que o obsessional e o histérico faziam do outro. O processo psicanalítico é imaginado como essa tarefa.

Folha - Hoje chega-se ao ponto de retirar o outro permanentemente de seu lugar?
Jurandir -
Bom, o outro perde a sua face, por assim dizer... A versão parcial que eu dei disso é o desinvestimento das éticas sacrificiais.

Folha - Dá para julgar isso?
Jurandir -
É melhor ou pior? Vou dizer: é diferente. Porque cada diferença tem o melhor e o pior. Enquanto no tempo de Freud era pior ficar paralisado histericamente, também não era nenhuma maravilha ser aquela dona de casa que vivia sofrendo aquela dissimetria do patriarcado, mas ali ela tinha possibilidade sublimatória, que era no fundo um arranjo, uma enunciação da possibilidade de felicidade. Hoje em dia acho a mesma coisa. Como analista, não acho que vamos fazer desse mundo qualquer coisa sem falhas. Qualquer utopia de pureza dessas é a pior miséria que podemos ter. Sempre que isso surgiu, o que veio foi muito pior. O que veio foi o terror. Então temos que nos habituar a lidar com isso, que é a nódoa humana, como diria Philip Roth.

Folha - Não dá saudade dessa capacidade antiga, maior, de sacrifício?
Jurandir -
Eu não sinto, não. A única coisa que de fato lamento, mas isso é questão de gosto, é a experiência estética. Porque acho que essa cultura do ressentimento e da sublimação deu maravilhas no campo da literatura e da música. Acho que a arte romântica produziu coisas absolutamente extraordinárias, e eu não vou ter mais tempo para me habituar a um novo cânone. Flaubert, Proust, Machado, Eça, aquela música maravilhosa que a gente teve: não há dúvida, é um produto da sacralização da arte como expressão da liberdade sublimatória, da pulsão, todo o ethos em que essa parte do sacrifício estava presente, sob a forma da religiosidade, do romantismo amoroso, e que inspirou aquela gente toda para fazer aquilo. É a única coisa que eu lamento.

Katz - Eu, nem isso. Ouvi no fim de semana passado essa obra nova do Tom Zé e fiquei simplesmente fascinado.


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