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A CRISE DO OUTRO
O outro, a quem se narra o
sonho, faz parte do seu
sentido, é decisivo para a
definição do seu significado. Com o enfraquecimento da "ética do sacrifício" -encarnada nas
formas sociais e religiosas tradicionais-, que prevê que o sujeito abra
mão de parte de sua vontade, liberdade e autonomia para poder construir o seu próprio sentido, o outro
perde sua "face". A relação do sujeito com os outros não se dá mais a
partir do sacrifício, mas do abuso inconseqüente ou da dívida sem fim a
ser permanentemente cobrada.
A tarefa compartilhada de decifração do sonho é enfraquecida.
Katz - Nós não podemos deixar de
sonhar. O sonho insiste. Eu diria que
o que é atemporal na construção
teórica de Freud é que o sonho se sonha, independente disso que estamos pensando, a gente continua sonhando. O sonho aparece hoje sob
outras formas. Uma delas seria a
ampliação da fantasia. Do ponto de
vista expansivo, continua-se fantasiando na vida social, como o Joãosinho Trinta falou: "Quem gosta de
miséria é intelectual". Gostava. O luxo, nesse sentido, é expansivo e toma conta desde os grupos mais pobres aos mais ricos.
O infantil, também, não deixa de
insistir, por exemplo com as questões da morte, da finitude, da miséria, da doença, do envelhecimento.
Elas aparecem hoje nas formas dessas novas religiões e seitas, que
emergem dando soluções a isso, acatando esse infantil sem dizer que é
infantil, mas tomando isso sob a figura de possessões, do demônio, e
reencantando essas formas, dando-lhes uma organização racional. Racionalidade dessas novas religiões,
que prometem a felicidade terrena,
sem jogar para o mundo de lá. Acho
que é um modo de, restritivamente,
fazer falar o infantil. As novas religiões, colocando-se como terrenais,
souberam dar conta disso.
Jurandir - Quanto à religião, há
também uma dimensão que é a de
orientar a ética cotidiana. Foi uma
das características do desenvolvimento da religião, a de fornecer normas e regras para a ética cotidiana.
Foi também a maneira como a religião acabou se diluindo: ela ensinou
a tanta gente que religião era ética, e
foi perdendo cada vez mais seu caráter místico, que acabou sendo dispensada. Com a relativização excessiva que temos no mundo pós-moderno -que aparece não só na teoria, mas também no nível do fenômeno de massa, das novelas, dos
"talk shows"-, em particular nos
padrões de moralidade sexual, sentimental...
O que equivale ao relativismo num
nível mais abstrato que se possa ter
na reflexão filosófica, você começa a
ter embaixo, na sociedade. Um relativismo em matéria de uma coisa
muito xucra, muito pedestre, mas
que manteve esse Ocidente ordenado, que são as moralidades de trabalho, de sexo, de família. Essa ética se
perde quando se apresentam tipos
novos, condutas novas, criticando o
tempo inteiro a autoridade do adulto, o preconceito contra sexo, a moralidade do trabalho. Isso acaba deixando as pessoas completamente
desorientadas. Chega a religião e
tenta dar um norte. Primeiro, faz
uma espécie de reminiscência do
protestantismo, dizendo que a pessoa trabalhe e seja séria que vai ter
dinheiro e uma boa vida. É quase um
weberianismo pós-datado para a
população mais pobre. Depois, é de
uma moralidade estrita, em geral absolutamente conservadora, que novamente retoma as pessoas e ainda
permite a presença do êxtase ritual,
que é algo característico da sociedade de hoje, que tem vínculos fracos
de sociabilidade.
Um dos poucos lugares em que as
pessoas se reúnem é em torno de rituais extáticos. São pontuais, se dispersam, não são fixos. Ali elas ganham uma identidade provisória,
até que o próximo ritual venha empolgar.
Folha - As pessoas ainda narram sua
vida da mesma maneira?
Katz - O declínio da importância do
sonho na análise diz respeito a um
dos elementos do sonho: se ele pede
ao sujeito para ser expresso, ele precisa de algo que o decifre, ou o psicanalista, ou o catálogo junguiano, ou
a religião. E para mim isso se coloca
como um sintoma: quando o sujeito
perde a capacidade de sonhar, nesse
sentido, de dirigir o seu sonho a um
terceiro para que eles possam fazer
outro sentido, significa que o outro
está perdendo a sua força, a sua potência, que teve por muito tempo. O
outro hoje se transforma em formas
medicamentosas, em formas curativas rápidas, e não mais o outro da interrogação. Que faz parte constitutiva do que Freud entendia como sonho -não é um elemento fora do
sonho. É o atemporal no modo de
pensar o sonho. Isso me preocupa,
porque o sujeito não mais quer saber
o que o angustia, mas suturar, tapar
isso imediatamente, o que deve ser
pensado não como um problema da
utopia, mas um problema da própria existência.
Jurandir - O sonho é um indicativo
dessa relação com o outro e sobretudo constitutivo de uma ética, que eu
chamaria de ética do sacrifício.
Na qual, para obter sentido
para minha vida, eu tenho
que abrir mão de alguma coisa de mim para dar ao outro.
Isso foi válido para religião
grega, para o cristianismo,
até para a política, quando
abro mão de parte da minha
autonomia para dá-la ao Estado e adquirir sentido e segurança. Acho que hoje em
dia a gente começa a perder
um pouco isso sem que nada
reclame. Nossa imaginação
talvez não tenha pensado outra relação com a alteridade.
Só imaginamos o modelo sacrificial, e esse está se perdendo, porque as pessoas hoje
querem ceder pouco ao outro em busca de alguma coisa
que dê sentido.
E isso de duas formas: ou
da arrogância anti-social, ou
da vitimização. No primeiro,
eu não devo nada ao outro, e
aquilo é palco da execução e
da ação do meu desejo: eu
mato, eu quebro, eu esfolo,
eu roubo, eu faço o que eu
bem quiser e entender, não
devo nada a ninguém. O segundo, o modo da vítima, é
que não devo nada ao outro
porque ele está o tempo inteiro em dívida comigo. Ele não
me deu, não me deu, me fez
sofrer, me retirou, e agora peço o tempo inteiro o ressarcimento. Do Estado, da mãe,
do pai, de quem quer que seja.
No começo, para Freud, ele
não pensava que a crítica ao
outro era para tirá-lo permanentemente desse lugar. Era
para tirar a magnificação, a
idealização que o obsessional
e o histérico faziam do outro.
O processo psicanalítico é
imaginado como essa tarefa.
Folha - Hoje chega-se ao
ponto de retirar o outro permanentemente de seu lugar?
Jurandir - Bom, o outro perde a sua face, por assim dizer... A versão parcial que eu
dei disso é o desinvestimento
das éticas sacrificiais.
Folha - Dá para julgar isso?
Jurandir - É melhor ou pior?
Vou dizer: é diferente. Porque cada diferença tem o melhor e o
pior. Enquanto no tempo de Freud
era pior ficar paralisado histericamente, também não era nenhuma
maravilha ser aquela dona de casa
que vivia sofrendo aquela dissimetria do patriarcado, mas ali ela
tinha possibilidade sublimatória,
que era no fundo um arranjo, uma
enunciação da possibilidade de
felicidade. Hoje em dia acho a
mesma coisa. Como analista, não
acho que vamos fazer desse mundo qualquer coisa sem falhas.
Qualquer utopia de pureza dessas
é a pior miséria que podemos ter.
Sempre que isso surgiu, o que veio
foi muito pior. O que veio foi o terror. Então temos que nos habituar
a lidar com isso, que é a nódoa humana, como diria Philip Roth.
Folha - Não dá saudade dessa capacidade antiga, maior,
de sacrifício?
Jurandir - Eu não sinto, não.
A única coisa que de fato lamento, mas isso é questão de
gosto, é a experiência estética. Porque acho que essa cultura do ressentimento e da
sublimação deu maravilhas
no campo da literatura e da
música. Acho que a arte romântica produziu coisas absolutamente extraordinárias,
e eu não vou ter mais tempo
para me habituar a um novo
cânone. Flaubert, Proust,
Machado, Eça, aquela música
maravilhosa que a gente teve:
não há dúvida, é um produto
da sacralização da arte como
expressão da liberdade sublimatória, da pulsão, todo o
ethos em que essa parte do
sacrifício estava presente, sob
a forma da religiosidade, do
romantismo amoroso, e que
inspirou aquela gente toda
para fazer aquilo. É a única
coisa que eu lamento.
Katz - Eu, nem isso. Ouvi no
fim de semana passado essa
obra nova do Tom Zé e fiquei
simplesmente fascinado.
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