São Paulo, domingo, 03 de julho de 2005

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O SONHO PELO AVESSO

A IMPOSSIBILIDADE DE SONHAR NOS EXTERIORIZA CADA VEZ MAIS EM RELAÇÃO A NÓS MESMOS E CRIA A COMPULSÃO À AÇÃO NO MUNDO, NO CONSUMO OU NO HIPERDESEMPENHO EXCESSIVO

Ng Han Guan/Associated Press
Chinês cochila perto de um anúncio que faz referência à prosperidade, em rua de Pequim


TALES AB'SÁBER
ESPECIAL PARA A FOLHA

Toda época do pensamento humano poderia ser definida, de modo suficientemente profundo, pelas relações que estabelece entre o sonho e a vigília." Assim Albert Béguin iniciava, em 1937, o seu célebre ensaio sobre o romantismo alemão e a poesia francesa do século 19 -"A Alma Romântica e o Sonho".
"Tive um sonho... Não fale nada (...) Não sonhe." Uma série de frases como essa a respeito da vida onírica, ou da não-vida onírica, estão espalhadas ao longo de todo um outro trabalho, representante limite do alto modernismo ocidental, "Esperando Godot" (1948), de Samuel Beckett.


Estaríamos caminhando para um mundo de homens sem qualidades o suficiente para sonhar?


Esses pequenos fragmentos falam de mundos distintos: o noturno e onírico, no qual mergulharam artistas e pensadores românticos do início do século 19, na esperança de encontrar o momento absoluto da conexão subjetiva do sonhador com a natureza, ou do sujeito com o real; e o concreto e impensável, do humano falhado, pervasado pelo tempo falhado, onde já não se sonha, onde o real se desfez definitivamente de todo sujeito, de Beckett. Podemos localizar, bem condensada entre esses mundos, a história da própria sonhação teórica da disciplina conhecida como psicanálise.
Ela também, ao seu modo, conheceu o sujeito pela via régia do sonho -como, com ideais bastante diferentes, também desejaram os românticos- e, também, a partir de um certo momento de seu desenvolvimento histórico como disciplina, passou a reconhecer, cada vez mais, uma transformação radical no espaço onírico, transformação que se dava na própria natureza da experiência do sonhar.
Como se sabe, Sigmund Freud [1856-1939] pensou o sonho como uma espécie de sintoma normal -no sentido psicanalítico do termo- que, ao ser analisado, dava um vislumbre da totalidade da vida psíquica e emocional do sujeito. O trabalho da análise demonstrava a estrutura humana de contradições incorporadas, por exemplo, entre o inconsciente recalcado e a vida cotidiana do sonhador, entre o desejo e a censura, entre o sexualmente infantil e os parâmetros de moralidade gerais introjetados na própria estrutura emocional de quem sonha.
Memórias de todos os tempos, tensões desejantes de todas as épocas, sempre ligadas ao presente da vida do sonhador, suas próprias tensões contemporâneas se expressariam na fórmula da deformação onírica, o trabalho do sonho, que, segundo Freud, tentava servir a dois senhores -noções estruturantes, tanto do sujeito, quanto de seu sonho-: o desejo, que busca realização alucinatória no próprio espaço do sonho, e a censura, que impede que tal gozo se dê a conhecer diretamente.
Esse magnífico mundo de pluralidades e riquezas que foi o sujeito freudiano, espalhado por todos os traços de sua própria existência com a chave particular de uma historicidade única, este sujeito sonhador de "A Interpretação dos Sonhos", o primeiro mundo psicanalítico de Freud, pode ser mesmo, para pensarmos como Béguin, o modo de toda uma época conceber o mistério e o valor da experiência do sonho para o humano, através de sua ciência principal, a psicanálise, que se fez exatamente aí.
Uma noite ainda mais profunda do que a descoberta original de sua descontinuidade pode ter caído sobre tal sujeito. "Aqui, pela primeira vez, um sonho não é realização de desejo"... De fato, já a partir de 1920, Freud se vê obrigado a transformar o seu modelo do sonho e do sonhador. Marcado historicamente pelas neuroses traumáticas, advindas da anti-experiência da Primeira Guerra Mundial, reconhecendo no consultório formas de sofrimento em que não só o sonho mas também toda a vida de uma pessoa parecem jamais ter conhecido satisfação ou prazer, Freud lançou a hipótese mais radical do "Além do Princípio do Prazer" e o seu correlato especulativo, para alguns essencialmente poético: a pulsão de morte.
No mesmo momento histórico em que Walter Benjamin percebia o fim da experiência -uma vez que aqueles que voltavam da guerra pareciam incapazes de contar uma história, aquela "experiência" não servia de modo algum aos poderes esclarecedores da narrativa-, Freud reconhecia em seu consultório os pacientes incapazes de usar a transferência analítica, bem como incapazes de usar um sonho como experiência, constitutiva de si mesmos, a não ser como a constante reposição do trauma, que parecia não passar nunca.

O anti-sonho
Daí para frente a psicanálise multiplicou suas visões dos maus-sonhadores, ou não-sonhadores. Ainda na década de 20, Donald Winnicott [1896-1971] observou que crianças muito pequenas podiam adoecer por causa de sonhos maus, que interferiam mesmo em seu desenvolvimento psicossomático global. Jung [1875-1961], na década de 30, atendeu um paciente doentiamente normal, que não sonhava e que, como as crianças de Winnicott, ao chegar a sonhar, o próprio sonho significava uma desordem psíquica radical e regressiva, um surto psicótico.
Bion [1897-1979], a partir dos anos 50, vai conceber seus pacientes psicóticos como aqueles que "nem acordam nem dormem nem pensam nem sonham". Tanto para ele quanto para Winnicott, será uma função onírica vinda de fora, da mãe ou de um ambiente oferecido para as condições incompletas, primitivas e perigosas para a continuidade do desenvolvimento do bebê, que permitiriam o acesso ao sonhar verdadeiro.
Winnicott, ao seu modo tão particular, radicalizaria ainda mais este sonhar que vem do mundo para a constituição do sonhador: seria em uma zona intermediária entre o mundo interno e o externo, no brincar, que a criança poria as potências do sonho e da realidade para si própria ou, noutras palavras, seria desde seu brincar que as realidades de sonho e mundo externo se tornariam viáveis para o sujeito sonhador. Mas, segundo o analista e pediatra inglês, para que pudéssemos brincar, era necessário que tivéssemos mundos disponíveis e oferecidos à distância correta. E que mundo o século 20 ofereceu à experiência da vida humana?
Primo Levi nos lembra a natureza do sonho do século: um sonho recorrente no campo de concentração, era o de que tudo já havia passado, e o sobrevivente, que sonhava, tentava contar, no sonho, o que vivera ou antivivera no campo de extermínio, mas as pessoas se recusavam a ouvi-lo. O sonho terminava em angústia impensável e ruptura do espaço onírico. Como o grau de catástrofe e horror produzido pelo século da paixão pelo real -nas palavras do [filósofo francês Alain] Badiou- perfurou o espaço de sustentação de um sonho entre os homens?

A coisa em si
Bion, no fim de sua vida, vai se interessar pelo sonho de coisa em si, onde as representações oníricas são o que são, não têm sombra, profundidade ou dimensão poética e descosem e inundam o sonhador com pensamentos impensáveis, porém loucamente presentes. "Meu braço caiu e era isso, ele estava lá, caído." O braço caído, sem por que nem destino, apenas o fato, a inscrição psíquica de seu real, um dilaceramento que nada liga. O campo de concentração do sonho de Primo Levi, que não podia se ligar a ninguém, era um sonho dessa espécie.
Sobre esse tipo de sonhador, desse tipo de anti-sonho, Bion observou uma certa natureza da sua produção psíquica: eles são incapazes de reconhecer um senso de verdade nas relações, para eles o mundo é uma acumulação de coisas, entendidas apenas enquanto quantidade. Isso teria a ver com a aceleração do fetichismo da mercadoria, em um mundo que já não conhece nenhum tipo de valor que não passe pelas meras quantidades, pelo sonho radicalmente sem qualidades do dinheiro? Estaríamos caminhando para um mundo de homens sem qualidades o suficiente para sonhar? Nesse fim da vida, Bion, e a psicanálise, finalmente encontravam Beckett.
Por fim, em 1972, o grande estrangeiro da psicanálise, Mohamed Masud Khan, formulava, com base em toda esta tradição anterior, algo que talvez complete o quadro de uma reificação do espaço sonho e sua exteriorização como coisa: "O sonho que se realiza no espaço-sonho de determinado paciente leva à personalização da experiência onírica e tudo que ela acarreta em termos de pulsão e experiência objetal(...); quando os pacientes não podem estabelecer um espaço-sonho na sua realidade interna, eles tendem a explorar seu espaço social e suas relações objetais para atuarem o seu sonho".
Em um certo plano de nosso mundo, temos o braço caído, do homem caído, para fora do humano ou do mercado "homo sacer". Do outro lado, o não-sonho da compulsão à ação no mundo, no consumo ou no hiperdesempenho excessivo, do mercado. Talvez nossa compulsiva atuação coletiva no espaço social nos exteriorize cada vez mais em relação a nós mesmos, na criação de um mundo em oposição à possibilidade de um importante sonho, e seu espaço, que desaprendemos cada vez mais a sonhar.


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