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Sofrendo de amnésia "afetiva", personagem do novo romance de Umberto Eco recorre ao catálogo kitsch
da cultura pop para reencontrar a infância e sua identidade, enquanto o autor esvazia o percurso de emoção
Em busca do Mickey perdido
CRISTOVÃO TEZZA
ESPECIAL PARA A FOLHA
Literatura é arte para cegos
-Homero e Jorge Luís Borges,
nas duas margens do espectro
da literatura ocidental, não me
deixam mentir. Mas, nessa longa
história, a atração que a imagem, como artefato gráfico, exerce sobre
quem escreve sempre esteve presente, ganhando mesmo estatuto próprio com os movimentos de vanguarda do século 20 e com o domínio avassalador do universo visual
contemporâneo sobre a abstração
supostamente opaca da escrita.
Umberto Eco, mundialmente célebre como o romancista de "O Nome
da Rosa" (Nova Fronteira), antes de
ficcionista já era bem conhecido como professor de semiótica e autor de
obras acadêmicas marcantes -o
seu conceito de "obra aberta", um
desdobramento dos conceitos estruturalistas então em voga, correu
mundo nos anos 1960 e 70. Pois em
seu último livro, "A Misteriosa Chama da Rainha Loana", ele nos presenteia com um "romance ilustrado", um agradável cruzamento de literatura propriamente dita com
imagens irresistíveis da cultura de
massa que percorreram os corações
e mentes da infância e juventude do
autor, dos quadrinhos do Fantasma
e Flash Gordon a cartazes fascistas
da era Mussolini.
A idéia do romance é de uma simplicidade cativante: em decorrência
de um derrame, o bibliófilo Yambo
perde a memória emocional, afetiva,
a ponto de não lembrar o próprio
nome, não saber que é casado e que
tem filhos, mas conserva todo o resto, em detalhes excruciantes: "Sabia
tudo de Alexandre, o Grande, e nada
de Alessandro, o meu pequenino".
Instado a escrever sobre a infância,
Yambo só consegue reproduzir frases feitas e trechos de livros.
O ponto de partida do livro, entretanto, em vez de nos levar em direção a uma experiência humana particular, com suas tensões, vai objetivamente esvaziando o biográfico, no
que ele tem de único, ambíguo e semovente, e se tornando o objeto de
um ensaio, no melhor estilo "pós-moderno" -e aqui o professor Umberto Eco sente-se à vontade, dono
de uma absoluta maestria narrativa.
São duas direções ensaísticas: num
primeiro momento, temos uma aula
de medicina; e em seguida a historiografia dá o tom. A voz do personagem se confunde quase sempre
com a voz do ensaísta -e essas duas
linguagens antagônicas, esta com o
pressuposto da verdade, aquela com
a incompletude essencial de tudo
que é vivo, acabam mesmo sendo
dominadas pela frieza da ciência. O
contraponto são as saborosas reproduções coloridas que pontuam o livro, exatamente como "ilustração",
e não como elemento estruturante
(a exemplo das belas narrativas visuais de Valêncio Xavier).
O argumento do livro é um gancho
poderoso para Eco refazer em detalhes toda a memória da cultura de
massa de sua época, e nesse sentido
o livro é um curioso "romance de
formação visual". Para tentar recuperar a memória perdida, Yambo
vai passar uma temporada na casa
de campo da família, onde descobre
porões e sótãos abarrotados de signos de seu tempo de infância, do velho rádio Telefunken aos diários escolares.
É preciso "dar vida" àquilo, isto é,
religar o personagem às suas marcas, no que ela tem de afetiva. Mas o
ensaísta Umberto Eco não se entrega
-é ele que dá as cartas do livro o
tempo todo, que vive a volúpia da
enumeração bibliográfica, o preciosismo vocabular, a memória filtrada
pelo detalhe escolar da aula. Assim,
mesmo os momentos mais marcantes do livro, como a participação do
jovem Yambo na emboscada a dois
alemães no período fascista, esvaziam-se de afeto, sob a lente fria do
tempo. E o que é admirável é que a
estrutura do romance terá sempre o
álibi do personagem, que, afinal, não
vive mesmo a memória afetiva, e, bibliófilo, tem no "catálogo" a sua linguagem.
A ilustração, aqui, vai numa direção contrária do uso da imagem na
obra de W. S. Sebald, certamente
uma referência para Umberto Eco.
Em "Os Imigrantes" (Record), por
exemplo, Sebald cria biografias imaginárias de exilados alemães pontuadas por velhas fotos em preto-e-branco em que a suposta distância
historiográfica, marcada por um estilo quase cartorial, vai transbordando poderosamente os seus limites
para a densa e tensa representação
de um mundo arruinado.
Ao final do romance, Eco testa os
limites de sua perícia narrativa, sempre na fronteira entre o fato e a paródia, ao avançar por uma espécie de
apoteose kitsch, na inspiração direta
dos quadrinhos da infância, agora
amalgamados em imagens oníricas.
Uma prova de fogo. Caberá ao leitor
decidir se o livro passa por ela incólume ou se o autor não acabou corroído pela própria força do kitsch
que pretendeu ilustrar.
Cristovão Tezza é escritor, autor dos romances "O Fotógrafo", "A Suavidade do
Vento" e "Breve Espaço entre Cor e Sombra",
entre outros, e do ensaio "Entre a Prosa e a
Poesia - Bakhtin e o Formalismo Russo", todos editados pela Rocco.
A Misteriosa Chama da Rainha Loana
456 págs., R$ 49,90
de Umberto Eco. Tradução de Eliana Aguiar.
Ed. Record (r. Argentina, 171, CEP 20921-380, Rio de Janeiro, RJ, tel. 0/xx/21/2585-2000)
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