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Giannotti parte da filosofia da lógica e a ela retorna ao defender que a arte e a moral são capazes de constituir, "a seu modo", o pensamento
O jogo do valor e da verdade
BENTO PRADO JR.
ESPECIAL PARA A FOLHA
Não se espante, caro leitor,
com o título ou com o tema do último livro de José
Arthur Giannotti: "O Jogo
do Belo e do Feio". Não se trata de
um inesperado desvio de itinerário
de um autor que, partindo da filosofia da lógica, sempre retornou a seu
ponto de partida.
De um lado, Giannotti ocupou-se
de maneira intensa e viva com as artes plásticas ao longo dos últimos 60
anos. Eu próprio pude beneficiar-me de sua cultura no campo da história e da teoria da pintura numa
viagem por cidades italianas na virada de 1962-63. Naquela ocasião,
Giannotti pôde desempenhar para
nós (eu, Lúcia Prado, Ruth e Fernando Henrique Cardoso) o papel de
guia altamente especializado pelos
museus italianos. Na verdade, foi
um curso intensivo sobre a pintura
do renascimento. De outro lado, a
paixão pela pintura não é alheia ao
coração do pensamento de Giannotti e constitui algo como um "télos"
natural de seu itinerário filosófico.
Repitamos: o ponto de partida é a
filosofia da lógica, da perspectiva antipsicologista da fenomenologia
husserliana. Mas esse ponto de partida já apontava para o passo seguinte: a passagem para uma "ontologia
do social", construída com os instrumentos não só da fenomenologia
mas também da dialética, nas suas
versões hegeliana e marxista. Era essa ontologia que estava subjacente à
longa apresentação que fez (1968) do
"Tractatus Lógico-Philosóphicus"
(Edusp) de Wittgenstein e que culminava numa recusa da trilha do filósofo na sua segunda fase, enveredando, nas palavras de Giannotti,
"por uma concepção fragmentada e
utilitarista da linguagem".
Alguns anos depois, Giannotti
modificaria tal diagnóstico, permitindo-se tornar seus os instrumentos conceituais do segundo Wittgenstein: formas de vida, "Weltbild", jogos de linguagem (e jogos
"não-lingüísticos"), "visão de aspecto" etc. Numa palavra, partindo da
lógica transcendental e passando pelo "lógos prático" (expressão plasmada, creio eu, pelo próprio Giannotti) chegamos ao "lógos estético"
de que falava Merleau-Ponty, mas
com um olhar diferente do fenomenológico que permite, com Wittgenstein, complementar a ontologia
do social com o esclarecimento da
arte e da moral. O tema central do livro de Giannotti é justamente esse
momento em que a razão filosófica
fecha "ou recomeça" o seu ciclo.
Dando a palavra ao autor: "A arte e a
moral, precisamente na medida em
que são capazes de aumentar ou diminuir o diâmetro do mundo, não
preparam a seu modo o invento da
razão? Eis o nosso tema".
Problemas fenomenológicos
Talvez pudéssemos atravessar a
problemática montada por Giannotti de outra perspectiva (deixando
de lado as injustiças cometidas com
Adorno e Benjamin, como bem
apontou Roberto Schwarz). Talvez
fosse possível matizar a oposição
que estabelece entre "formas de vida" e "mundo da vida", apontando
para uma certa superposição entre
enunciados de Wittgenstein e de
Merleau-Ponty.
Não é verdade que o primeiro diz
que não há fenomenologia, mas que
há problemas fenomenológicos?
Não há um mesmo "ar de família"
(nada vago) impregnando tal enunciado wittgensteiniano e a recusa
por Merleau-Ponty da redução
transcendental ou da idéia da fenomenologia como "ciência rigorosa"?
Não fazia o filósofo francês da pergunta "onde estou?" o paradigma da
interrogação filosófica, enquanto o
austríaco dizia: "Todo problema filosófico tem a forma: já não mais sei
onde estou"? Creio que podemos
aceitar essa convergência, sem chegar ao extremo do Foucault que nos
dizia em 1965 em São Paulo: "É preciso ser uma mosca cega para não
ver que a filosofia de Wittgenstein e
a de Heidegger são uma e a mesma
filosofia".
Mas só poderíamos, assim, divergir de Giannotti assumindo o ônus
da prova, ao termo de todo um trabalho tornado possível graças a seu
livro. Seríamos obrigados a tudo recomeçar novamente. Mas essa alternativa não apresenta interesse para
o leitor a que me dirijo. Limitemo-nos, portanto, a convidar o leitor a
abrir o livro de Giannotti e retomar
por sua própria conta o trabalho da
reflexão, para encerrar esta resenha
com uma expressão que remete
imediatamente à linguagem ou ao
estilo de meu antigo professor.
Bento Prado Jr. é filósofo, professor na
Universidade Federal de São Carlos (SP). É
autor de "Presença e Campo Transcendental" (Edusp), entre outros.
O Jogo do Belo e do Feio
216 págs., R$ 39
de José Arthur Giannotti. Companhia das
Letras (r. Bandeira Paulista, 702, conjunto
32, CEP 04532-002, SP, tel. 0/xx/ 11/ 3707-3500).
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