São Paulo, domingo, 03 de julho de 2005

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Giannotti parte da filosofia da lógica e a ela retorna ao defender que a arte e a moral são capazes de constituir, "a seu modo", o pensamento

O jogo do valor e da verdade

BENTO PRADO JR.
ESPECIAL PARA A FOLHA

Não se espante, caro leitor, com o título ou com o tema do último livro de José Arthur Giannotti: "O Jogo do Belo e do Feio". Não se trata de um inesperado desvio de itinerário de um autor que, partindo da filosofia da lógica, sempre retornou a seu ponto de partida.
De um lado, Giannotti ocupou-se de maneira intensa e viva com as artes plásticas ao longo dos últimos 60 anos. Eu próprio pude beneficiar-me de sua cultura no campo da história e da teoria da pintura numa viagem por cidades italianas na virada de 1962-63. Naquela ocasião, Giannotti pôde desempenhar para nós (eu, Lúcia Prado, Ruth e Fernando Henrique Cardoso) o papel de guia altamente especializado pelos museus italianos. Na verdade, foi um curso intensivo sobre a pintura do renascimento. De outro lado, a paixão pela pintura não é alheia ao coração do pensamento de Giannotti e constitui algo como um "télos" natural de seu itinerário filosófico.
Repitamos: o ponto de partida é a filosofia da lógica, da perspectiva antipsicologista da fenomenologia husserliana. Mas esse ponto de partida já apontava para o passo seguinte: a passagem para uma "ontologia do social", construída com os instrumentos não só da fenomenologia mas também da dialética, nas suas versões hegeliana e marxista. Era essa ontologia que estava subjacente à longa apresentação que fez (1968) do "Tractatus Lógico-Philosóphicus" (Edusp) de Wittgenstein e que culminava numa recusa da trilha do filósofo na sua segunda fase, enveredando, nas palavras de Giannotti, "por uma concepção fragmentada e utilitarista da linguagem".
Alguns anos depois, Giannotti modificaria tal diagnóstico, permitindo-se tornar seus os instrumentos conceituais do segundo Wittgenstein: formas de vida, "Weltbild", jogos de linguagem (e jogos "não-lingüísticos"), "visão de aspecto" etc. Numa palavra, partindo da lógica transcendental e passando pelo "lógos prático" (expressão plasmada, creio eu, pelo próprio Giannotti) chegamos ao "lógos estético" de que falava Merleau-Ponty, mas com um olhar diferente do fenomenológico que permite, com Wittgenstein, complementar a ontologia do social com o esclarecimento da arte e da moral. O tema central do livro de Giannotti é justamente esse momento em que a razão filosófica fecha "ou recomeça" o seu ciclo. Dando a palavra ao autor: "A arte e a moral, precisamente na medida em que são capazes de aumentar ou diminuir o diâmetro do mundo, não preparam a seu modo o invento da razão? Eis o nosso tema".

Problemas fenomenológicos
Talvez pudéssemos atravessar a problemática montada por Giannotti de outra perspectiva (deixando de lado as injustiças cometidas com Adorno e Benjamin, como bem apontou Roberto Schwarz). Talvez fosse possível matizar a oposição que estabelece entre "formas de vida" e "mundo da vida", apontando para uma certa superposição entre enunciados de Wittgenstein e de Merleau-Ponty.
Não é verdade que o primeiro diz que não há fenomenologia, mas que há problemas fenomenológicos? Não há um mesmo "ar de família" (nada vago) impregnando tal enunciado wittgensteiniano e a recusa por Merleau-Ponty da redução transcendental ou da idéia da fenomenologia como "ciência rigorosa"? Não fazia o filósofo francês da pergunta "onde estou?" o paradigma da interrogação filosófica, enquanto o austríaco dizia: "Todo problema filosófico tem a forma: já não mais sei onde estou"? Creio que podemos aceitar essa convergência, sem chegar ao extremo do Foucault que nos dizia em 1965 em São Paulo: "É preciso ser uma mosca cega para não ver que a filosofia de Wittgenstein e a de Heidegger são uma e a mesma filosofia".
Mas só poderíamos, assim, divergir de Giannotti assumindo o ônus da prova, ao termo de todo um trabalho tornado possível graças a seu livro. Seríamos obrigados a tudo recomeçar novamente. Mas essa alternativa não apresenta interesse para o leitor a que me dirijo. Limitemo-nos, portanto, a convidar o leitor a abrir o livro de Giannotti e retomar por sua própria conta o trabalho da reflexão, para encerrar esta resenha com uma expressão que remete imediatamente à linguagem ou ao estilo de meu antigo professor.


Bento Prado Jr. é filósofo, professor na Universidade Federal de São Carlos (SP). É autor de "Presença e Campo Transcendental" (Edusp), entre outros.

O Jogo do Belo e do Feio
216 págs., R$ 39 de José Arthur Giannotti. Companhia das Letras (r. Bandeira Paulista, 702, conjunto 32, CEP 04532-002, SP, tel. 0/xx/ 11/ 3707-3500).



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