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Matemática moderna do ver
Textos de Rancière analisam a interseção entre estética e política
PAULA SIBILIA
ESPECIAL PARA A FOLHA
Além de serem conceitos fartamente saturados na tradição ocidental, arte e política
são dois campos fundamentais da atividade humana que -talvez hoje mais do que nunca- merecem o desafio do pensamento. Vítima de múltiplos assassinatos, a arte
tem ressuscitado com incansável
persistência para tudo estetizar; embora com a inocência perdida mas
também sob o estigma de uma fatal
banalização. Quanto à política,
aconteceu tudo o que já sabemos.
Nesse contexto, é muito bem-vindo
um livro com tão diáfano subtítulo:
"Estética e Política".
Já o título é bem mais incógnito,
pelo menos para quem não tem familiaridade com a obra de Jacques
Rancière. Mas esse ar enigmático
que exala "A Partilha do Sensível"
pode atiçar a curiosidade, instando a
desbravar suas páginas na procura
de boas surpresas. Quem isso fizer
irá encontrar, logo no início, uma
nota da tradutora que remete o misterioso título a um conceito destrinchado pelo autor em obras anteriores, como "Políticas da Escrita" e "O
Desentendimento" (ambos pela ed.
34). Trata-se do "modo como se determina no sensível a relação entre
um conjunto comum partilhado e a
divisão de partes exclusivas".
O livro tem um formato atípico:
cada um dos cinco capítulos começa
com uma pergunta formulada por
"dois jovens filósofos" para a revista
"Alice", e logo vem a resposta do entrevistado. É um livro que nasceu
sob outra insígnia, portanto, e foi
adaptado para caber nesse molde
-muito bem sucedido, aliás, considerando que a edição francesa de
2000 foi traduzida para várias línguas e publicada em vários países.
Uma conseqüência dessa origem,
porém, é o tamanho: ao todo, pouco
mais de 50 páginas de texto. Mas tais
peculiaridades podem levar ao engano: não se trata de uma breve e ágil
introdução ao pensamento desse filósofo contemporâneo; ao contrário, mais do que uma gentil porta de
entrada para os novatos, parece uma
saleta para os já iniciados. Pois, longe de serem básicas e cristalinas, as
perguntas que abrem os diversos capítulos indagam sobre complexos
assuntos desenvolvidos em outros
livros.
Algumas dessas questões são difíceis de apreender sem recorrer aos
textos aludidos -na maioria dos casos, de maneira tácita. Visando reorganizar o debate em torno da noção
de estética, Rancière examina as relações entre política (isto é, aquilo
que "ocupa-se do que se vê e do que
se pode dizer sobre o que é visto, de
quem tem competência para ver e
qualidade para dizer, das propriedades do espaço e dos possíveis do
tempo") e práticas artísticas ("maneiras de fazer" que intervêm na distribuição geral das maneiras de fazer
e nas suas relações com maneiras de
ser e formas de visibilidade"). Assim, os abusos na noção de modernidade desfilam junto aos "três regimes estéticos", as artes mecânicas e a
promoção dos anônimos, a mímesis
e a racionalidade da ficção.
Desse intricado e fértil mosaico irradiam temas de indubitável interesse, e quem consiga superar um
certo hermetismo -ou se deixe seduzir por suas ríspidas arestas- é
provável que aspire a mergulhar
mais fundo na obra de Rancière.
Mas haverá também quem remanesça um tanto desapontado após a
leitura, havendo constatado certo
"déjà vu" não apenas nos temas e
nas abordagens mas também no estilo árduo, por vezes tão penosamente desprovido de valor estético
como de vigor político.
Paula Sibilia é doutoranda em comunicação pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e em saúde pela Universida Estadual
do Rio. É autora de "O Homem Pós-Orgânico" (Relume-Dumará).
A Partilha do Sensível
72 págs., R$ 20
de Jacques Rancière. Tradução de Monica
Costa Netto. Ed. Exo.experimental.org/34 (r.
Hungria, 592, Jardim Europa, CEP 01455-000, São Paulo, SP, tel. 0/xx/11/3816-6777).
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