São Paulo, domingo, 03 de julho de 2005

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Matemática moderna do ver

Textos de Rancière analisam a interseção entre estética e política

PAULA SIBILIA
ESPECIAL PARA A FOLHA

Além de serem conceitos fartamente saturados na tradição ocidental, arte e política são dois campos fundamentais da atividade humana que -talvez hoje mais do que nunca- merecem o desafio do pensamento. Vítima de múltiplos assassinatos, a arte tem ressuscitado com incansável persistência para tudo estetizar; embora com a inocência perdida mas também sob o estigma de uma fatal banalização. Quanto à política, aconteceu tudo o que já sabemos. Nesse contexto, é muito bem-vindo um livro com tão diáfano subtítulo: "Estética e Política".
Já o título é bem mais incógnito, pelo menos para quem não tem familiaridade com a obra de Jacques Rancière. Mas esse ar enigmático que exala "A Partilha do Sensível" pode atiçar a curiosidade, instando a desbravar suas páginas na procura de boas surpresas. Quem isso fizer irá encontrar, logo no início, uma nota da tradutora que remete o misterioso título a um conceito destrinchado pelo autor em obras anteriores, como "Políticas da Escrita" e "O Desentendimento" (ambos pela ed. 34). Trata-se do "modo como se determina no sensível a relação entre um conjunto comum partilhado e a divisão de partes exclusivas".
O livro tem um formato atípico: cada um dos cinco capítulos começa com uma pergunta formulada por "dois jovens filósofos" para a revista "Alice", e logo vem a resposta do entrevistado. É um livro que nasceu sob outra insígnia, portanto, e foi adaptado para caber nesse molde -muito bem sucedido, aliás, considerando que a edição francesa de 2000 foi traduzida para várias línguas e publicada em vários países.
Uma conseqüência dessa origem, porém, é o tamanho: ao todo, pouco mais de 50 páginas de texto. Mas tais peculiaridades podem levar ao engano: não se trata de uma breve e ágil introdução ao pensamento desse filósofo contemporâneo; ao contrário, mais do que uma gentil porta de entrada para os novatos, parece uma saleta para os já iniciados. Pois, longe de serem básicas e cristalinas, as perguntas que abrem os diversos capítulos indagam sobre complexos assuntos desenvolvidos em outros livros.
Algumas dessas questões são difíceis de apreender sem recorrer aos textos aludidos -na maioria dos casos, de maneira tácita. Visando reorganizar o debate em torno da noção de estética, Rancière examina as relações entre política (isto é, aquilo que "ocupa-se do que se vê e do que se pode dizer sobre o que é visto, de quem tem competência para ver e qualidade para dizer, das propriedades do espaço e dos possíveis do tempo") e práticas artísticas ("maneiras de fazer" que intervêm na distribuição geral das maneiras de fazer e nas suas relações com maneiras de ser e formas de visibilidade"). Assim, os abusos na noção de modernidade desfilam junto aos "três regimes estéticos", as artes mecânicas e a promoção dos anônimos, a mímesis e a racionalidade da ficção.
Desse intricado e fértil mosaico irradiam temas de indubitável interesse, e quem consiga superar um certo hermetismo -ou se deixe seduzir por suas ríspidas arestas- é provável que aspire a mergulhar mais fundo na obra de Rancière. Mas haverá também quem remanesça um tanto desapontado após a leitura, havendo constatado certo "déjà vu" não apenas nos temas e nas abordagens mas também no estilo árduo, por vezes tão penosamente desprovido de valor estético como de vigor político.


Paula Sibilia é doutoranda em comunicação pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e em saúde pela Universida Estadual do Rio. É autora de "O Homem Pós-Orgânico" (Relume-Dumará).

A Partilha do Sensível
72 págs., R$ 20 de Jacques Rancière. Tradução de Monica Costa Netto. Ed. Exo.experimental.org/34 (r. Hungria, 592, Jardim Europa, CEP 01455-000, São Paulo, SP, tel. 0/xx/11/3816-6777).



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