São Paulo, domingo, 03 de julho de 2005

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+ literatura

O escritor argentino Juan José Saer, morto no mês passado, fala sobre a nostalgia do silêncio, sua infância e a ânsia de experiências "para lá da margem oposta do oceano", que terminam por trazer frustração

Um rio sem margens

ELISEO ÁLVAREZ

No último dia 11 de junho, morreu em Paris, aos 67 anos, o colunista do Mais! Juan José Saer, um dos maiores narradores argentinos de sua geração.


Fernando Pessoa dizia escrever para salvar a alma, mas isso para mim é uma metáfora. Ele escreveu para existir, para ser ele mesmo em meio a uma vida cinzenta


Nessa entrevista, concedida ao Canal (á), da TV argentina, e reproduzida no "Clarín", o escritor revisita sua infância em Serodino, um povoado da província de Santa Fé que remete aos personagens e lugares mais emblemáticos de sua obra, fala sobre a literatura -cercada de barulho e superstição, ele diz- e afirma que "escrever é um trabalho que não deixa tempo para rezar".
 

Pergunta - Há autores que escrevem mesmo sem ter nada a dizer, só para provar que continuam existindo?
Juan José Saer -
Também muitos que nunca existiram e ganham fábulas, e autores que há anos não publicam nada, mas querem ficar sempre na berlinda. Bom, a culpa disso é um pouco do jornalismo. Muitos escritores do século 20 acharam que, para construir uma reputação literária, era preciso estar presente no jornalismo e, se possível, fora das páginas literárias. Tudo isso é uma forma de o autor fazer publicidade de sua obra, de manter seu nome presente na cabeça dos possíveis leitores, pouco importando se os livros que ele escreve são primários. O livro é uma mercadoria, o escritor é um produtor, e sua presença pública é uma forma de publicidade.

Pergunta - Mas o sr. não acha que isso também tem a ver com o ego?
Saer -
Pode ser. Mas escritores como Juan Rulfo, [Gustavo Adolfo] Bécquer, [Juan Carlos] Onetti, [William] Faulkner e [James] Joyce faziam o que tinham que fazer e ficavam quietos.

Pergunta - Na literatura, segundo o sr., estaria acontecendo uma degradação do silêncio.
Saer -
Quando venho a Buenos Aires e tenho que dar todas essas entrevistas em série, porque fico pouco tempo na cidade, no fim do dia eu me sinto sujo de palavras, em falta comigo mesmo, porque durante muitos anos me mantive em silêncio. Não ia à televisão nem dava muitas entrevistas aos jornais. Quando minha personalidade literária ganhou maior repercussão, naturalmente comecei a fazer essas coisas. Também sinto um compromisso em relação aos meus editores, acho que devo ajudá-los a vender meus livros.

Pergunta - Fale-nos de Serodino, da Santa Fé dos anos 40, de sua infância.
Saer -
Eu me orgulho de um comentário registrado por Darwin, quando diz que 40 km a noroeste de Rosário se encontra o lugar mais plano, a planície mais absoluta que deve existir em toda a Terra. Aí está Serodino, fundada por volta de 1890 por um imigrante suíço-italiano. Darwin disse isso cem anos antes do meu nascimento, mas ao ler esse comentário eu revivia experiências pessoais. Serodino é uma cidadezinha típica da planície santa-fesina, com as estações da linha Mitre que ia para Tucumán, plantações de milho, trigo e girassol. Como em tantos povoados de imigrantes, o centro não passa de quatro quarteirões cortados pelos trilhos do trem.

Pergunta - Um de seus personagens afirma que "a infância atribui o desconforto do mundo a sua própria ignorância e inépcia e imagina que, para lá da margem oposta do oceano e da experiência, a fruta é mais saborosa e mais real, o sol mais amarelo e benévolo, as palavras e os atos dos homens mais inteligíveis, justos e definidos". Era isso o que sr. sentia?
Saer -
Claro. O problema é quando você chega à margem oposta e percebe que isso era um mito, um fantasma. Todo mundo diz que as frutas eram muito melhores 30 anos atrás, e eu comprovei que não é assim. As crianças e os jovens têm grande impaciência por viver experiências que lhes parecem inacessíveis. Vêem o sexo como uma experiência extraordinária. As primeiras experiências sexuais são de fato extraordinárias, mas depois já não têm mais essa aura mística. Isso acontece com tudo. A fruta, nesse texto, pode ser o prazer ou a experiência intensa, a glória, a amizade, a aventura.

Pergunta - Qual era sua relação com o rio, com a água?
Saer -
Serodino fica a uns 12 km do rio Paraná, perto de Puerto Gaboto, que foi o local do primeiro assentamento espanhol na Argentina. Vivíamos indo ao rio. Uma de minhas lembranças mais antigas é de quando saí da água cheio de sanguessugas, como contei em "El Río Sin Orillas" [O Rio Sem Margens]. Depois fomos morar em Santa Fé, junto ao rio, e vivi a travessia do Paraná, as praias, andar de lancha. Em Faulkner e seu rio Mississippi, eu reencontrava a minha própria experiência. A história da enchente em "Palmeiras Selvagens" (Cosacnaify) me marcou muito; no Paraná era a mesma coisa.

Pergunta - E a literatura?
Saer -
A literatura é uma superstição, talvez toda a arte. Paul Auster diz que ele escreve como se rezasse, o que me parece ridículo. Escrever é um trabalho que não deixa tempo para rezar. Um grande poeta português, Fernando Pessoa, dizia escrever para salvar a alma, mas isso para mim é uma metáfora. Ele escrevia para existir, para ser ele mesmo em meio a uma vida cinzenta.

Pergunta - A literatura permite recuperar mundos perdidos?
Saer -
Sim, basta pensarmos na aventura de Marcel Proust em seu "Em Busca do Tempo Perdido" (Globo), onde ele tenta recuperar seu passado. Proust começou com um artigo de jornal, depois pensou que podia ser um conto, depois um romance que nunca acabava, uma espécie de máquina que continua funcionando tempo afora.

Pergunta - O sr. diz que admirar um escritor implica a obrigação de merecê-lo. Quais são os escritores que o sr. merecia ao começar e quais os que merece agora?
Saer -
Não vou fazer essa lista, outros que a façam. Vladimir Nabokov a fez, e nenhum dos citados o merecia. Nabokov pensa que a atividade mais elaborada que um homem pode fazer é caçar borboletas, eu não. Paulo Coelho disse admirar Borges e Jorge Amado, que são dois mundos opostos, só para ficar bem com argentinos e brasileiros.
Um escritor pode ter ou não uma grande cultura literária e filosófica, pode mostrá-la ou não nos seus livros. Há escritores que escondem sua cultura, como é o caso de Onetti ou de Rulfo.

Pergunta - A grande literatura sempre toca a política?
Saer -
O importante, para mim, está nos valores literários. Gosto de escritores de direita, como Céline ou Borges. Não de Vargas Llosa, mas não porque é um escritor de direita, e sim porque suas formas literárias me parecem caducas. A obra literária tem relação com a política, naturalmente, na medida em que a escritura é um ato privado que se transforma em um fato social, atravessado por todas as energias sociais.


Tradução de Sérgio Molina.
Este texto é um resumo da entrevista realizada por Eliseo Álvarez no programa "Perfiles", do Canal (á), em 6/10/2003.


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