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+ literatura
O escritor argentino Juan José Saer, morto no mês passado, fala sobre a nostalgia do silêncio, sua infância
e a ânsia de experiências "para lá da margem oposta do oceano", que terminam por trazer frustração
Um rio sem margens
ELISEO ÁLVAREZ
No último dia 11 de junho,
morreu em Paris, aos 67
anos, o colunista do Mais!
Juan José Saer, um dos
maiores narradores argentinos de
sua geração.
Fernando
Pessoa dizia escrever para salvar a alma, mas isso para mim é uma metáfora. Ele escreveu para existir,
para ser
ele mesmo em meio
a uma vida cinzenta
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Nessa entrevista, concedida ao Canal (á), da TV argentina, e reproduzida no "Clarín", o escritor revisita sua infância em Serodino, um povoado da província de
Santa Fé que remete aos personagens e lugares mais emblemáticos de
sua obra, fala sobre a literatura
-cercada de barulho e superstição,
ele diz- e afirma que "escrever é
um trabalho que não deixa tempo
para rezar".
Pergunta - Há autores que escrevem
mesmo sem ter nada a dizer, só para
provar que continuam existindo?
Juan José Saer - Também muitos
que nunca existiram e ganham fábulas, e autores que há anos não publicam nada, mas querem ficar sempre
na berlinda. Bom, a culpa disso é um
pouco do jornalismo. Muitos escritores do século 20 acharam que, para
construir uma reputação literária,
era preciso estar presente no jornalismo e, se possível, fora das páginas
literárias. Tudo isso é uma forma de
o autor fazer publicidade de sua
obra, de manter seu nome presente
na cabeça dos possíveis leitores,
pouco importando se os livros que
ele escreve são primários. O livro é
uma mercadoria, o escritor é um
produtor, e sua presença pública é
uma forma de publicidade.
Pergunta - Mas o sr. não acha que isso também tem a ver com o ego?
Saer - Pode ser. Mas escritores como Juan Rulfo, [Gustavo Adolfo]
Bécquer, [Juan Carlos] Onetti, [William] Faulkner e [James] Joyce faziam o que tinham que fazer e ficavam quietos.
Pergunta - Na literatura, segundo o
sr., estaria acontecendo uma degradação do silêncio.
Saer - Quando venho a Buenos Aires e tenho que dar todas essas entrevistas em série, porque fico pouco
tempo na cidade, no fim do dia eu
me sinto sujo de palavras, em falta
comigo mesmo, porque durante
muitos anos me mantive em silêncio. Não ia à televisão nem dava
muitas entrevistas aos jornais.
Quando minha personalidade literária ganhou maior repercussão, naturalmente comecei a fazer essas
coisas. Também sinto um compromisso em relação aos meus editores,
acho que devo ajudá-los a vender
meus livros.
Pergunta - Fale-nos de Serodino, da
Santa Fé dos anos 40, de sua infância.
Saer - Eu me orgulho de um comentário registrado por Darwin,
quando diz que 40 km a noroeste de
Rosário se encontra o lugar mais
plano, a planície mais absoluta que
deve existir em toda a Terra. Aí está
Serodino, fundada por volta de 1890
por um imigrante suíço-italiano.
Darwin disse isso cem anos antes do
meu nascimento, mas ao ler esse comentário eu revivia experiências
pessoais. Serodino é uma cidadezinha típica da planície santa-fesina,
com as estações da linha Mitre que ia
para Tucumán, plantações de milho,
trigo e girassol. Como em tantos povoados de imigrantes, o centro não
passa de quatro quarteirões cortados pelos trilhos do trem.
Pergunta - Um de seus personagens
afirma que "a infância atribui o desconforto do mundo a sua própria ignorância e inépcia e imagina que, para lá da margem oposta do oceano e
da experiência, a fruta é mais saborosa e mais real, o sol mais amarelo e benévolo, as palavras e os atos dos homens mais inteligíveis, justos e definidos". Era isso o que sr. sentia?
Saer - Claro. O problema é quando
você chega à margem oposta e percebe que isso era um mito, um fantasma. Todo mundo diz que as frutas eram muito melhores 30 anos
atrás, e eu comprovei que não é assim. As crianças e os jovens têm
grande impaciência por viver experiências que lhes parecem inacessíveis. Vêem o sexo como uma experiência extraordinária. As primeiras
experiências sexuais são de fato extraordinárias, mas depois já não têm
mais essa aura mística. Isso acontece
com tudo. A fruta, nesse texto, pode
ser o prazer ou a experiência intensa,
a glória, a amizade, a aventura.
Pergunta - Qual era sua relação com
o rio, com a água?
Saer - Serodino fica a uns 12 km do
rio Paraná, perto de Puerto Gaboto,
que foi o local do primeiro assentamento espanhol na Argentina. Vivíamos indo ao rio. Uma de minhas
lembranças mais antigas é de quando saí da água cheio de sanguessugas, como contei em "El Río Sin Orillas" [O Rio Sem Margens]. Depois
fomos morar em Santa Fé, junto ao
rio, e vivi a travessia do Paraná, as
praias, andar de lancha. Em Faulkner e seu rio Mississippi, eu reencontrava a minha própria experiência. A
história da enchente em "Palmeiras
Selvagens" (Cosacnaify) me marcou
muito; no Paraná era a mesma coisa.
Pergunta - E a literatura?
Saer - A literatura é uma superstição, talvez toda a arte. Paul Auster
diz que ele escreve como se rezasse,
o que me parece ridículo. Escrever é
um trabalho que não deixa tempo
para rezar. Um grande poeta português, Fernando Pessoa, dizia escrever para salvar a alma, mas isso para
mim é uma metáfora. Ele escrevia
para existir, para ser ele mesmo em
meio a uma vida cinzenta.
Pergunta - A literatura permite recuperar mundos perdidos?
Saer - Sim, basta pensarmos na
aventura de Marcel Proust em seu
"Em Busca do Tempo Perdido"
(Globo), onde ele tenta recuperar
seu passado. Proust começou com
um artigo de jornal, depois pensou
que podia ser um conto, depois um
romance que nunca acabava, uma
espécie de máquina que continua
funcionando tempo afora.
Pergunta - O sr. diz que admirar um
escritor implica a obrigação de merecê-lo. Quais são os escritores que o sr.
merecia ao começar e quais os que
merece agora?
Saer - Não vou fazer essa lista, outros que a façam. Vladimir Nabokov
a fez, e nenhum dos citados o merecia. Nabokov pensa que a atividade
mais elaborada que um homem pode fazer é caçar borboletas, eu não.
Paulo Coelho disse admirar Borges e
Jorge Amado, que são dois mundos
opostos, só para ficar bem com argentinos e brasileiros.
Um escritor pode ter ou não uma
grande cultura literária e filosófica,
pode mostrá-la ou não nos seus livros. Há escritores que escondem
sua cultura, como é o caso de Onetti
ou de Rulfo.
Pergunta - A grande literatura sempre toca a política?
Saer - O importante, para mim, está nos valores literários. Gosto de escritores de direita, como Céline ou
Borges. Não de Vargas Llosa, mas
não porque é um escritor de direita,
e sim porque suas formas literárias
me parecem caducas. A obra literária tem relação com a política, naturalmente, na medida em que a escritura é um ato privado que se transforma em um fato social, atravessado por todas as energias sociais.
Tradução de Sérgio Molina.
Este texto é um resumo da entrevista realizada por Eliseo Álvarez no programa "Perfiles", do Canal (á), em 6/10/2003.
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