São Paulo, domingo, 03 de julho de 2005 |
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Contra a civilização e a barbárie
Lançamento de Saer refaz a oposição característica da literatura argentina e cria "uma fresta para o mistério"
Nesse sentido, "A Ocasião" pode ser pensada como mais uma dobra desse "discurso único" onde se inscreve um estilo que identificamos com o autor e que as cuidadosas traduções brasileiras dos últimos anos encarregaram-se de tornar familiar. É possível reconhecer, nesse romance, os traços inerentes à escrita saeriana, que questiona a evidência exterior da realidade e se interroga acerca de sua essência contingente, duvidando, ainda, das possibilidades de representá-la pela via da linguagem. Noutras palavras, "A Ocasião" retoma o núcleo estimulante da narrativa de Saer na medida em que expõe e explora, mais uma vez, o sentimento de estranheza do sujeito perante a ordem impenetrável das coisas, mas, sobretudo, na medida em que resiste à tranqüilidade sedutora das respostas positivas. Porém a particularidade desse romance não reside apenas no retorno dos motivos quase obsessivos da escrita saeriana, senão fundamentalmente no fato de fazer desses motivos a matéria do enredo. O romance relata a história de Bianco, um ítalo-irlandês que, no século 19, percorreu as cidades européias exibindo seus poderes mentais. A telepatia, o deslocamento de objetos, a deformação da matéria por simples contato, faziam parte do leque de poderes por meio dos quais ele tentava provar a supremacia do espírito sobre a matéria. Esse propósito assumia o caráter de provocação numa época em que o positivismo prescrevia que as possibilidades de conhecimento do real deviam se limitar à constatação dos fatos e das leis que os governam. Abrir uma fresta para o mistério, sabemos, foi a tarefa da arte, das práticas esotéricas e do ocultismo num período dominado pelas certezas da razão. Numa exibição pública perante cientistas de Paris, Bianco é submetido a um ultrajante escárnio que acaba com sua reputação. Desacreditado, decide emigrar a terras americanas e se instalar na solidão do pampa argentino com o firme propósito de escrever uma refutação aos positivistas franceses. A planície vem ao encontro das preocupações da personagem, que é subjugada pelos efeitos ilusórios de uma paisagem que socava qualquer pretensão de realidade. Pulverizando séculos de história, o narrador do romance condensa a experiência do pampa na imagem de "um espaço irreal e vazio que os conquistadores tinham o especial cuidado de evitar, mas que os índios primeiro, os cavalos e bois mais tarde, aventureiros, soldados e proprietários pouco depois, e mais tarde os deserdados do mundo inteiro que chegavam em barcos abarrotados insistiam em atravessar uma e outra vez, cinzentos e alucinados, deixando rastros fugazes que a intempérie, quase de imediato, se encarregava de fazer desaparecer". Mas, na Argentina de 1870, não todos concebiam o pampa como esse espaço irreal e vazio. O pragmatismo positivista dominava as políticas do Estado que tentava se apropriar da planície e torná-la produtiva. Dividido entre as meditações filosóficas e o pensamento prático, Bianco não foge à regra e adere, nas suas transações comercias, ao projeto civilizador do país. Como adverte o narrador, ainda que tenha aceitado as leis dessa paisagem, Bianco não foi aniquilado por elas. Nesse ponto, o romance pode ser pensado como um tributo à literatura argentina, na medida em que retoma, com criatividade, o conflito civilização ou barbárie que se projeta, de Sarmiento a Borges, nesse sistema literário. Com esse gesto, o autor insere sua escrita numa tradição, sem aderir às tipicidades identitárias e sem abandonar o trabalho que individualizou seu estilo. Ana Cecília Olmos é professora de literatura hispano-americana e coordenadora da pós-graduação em língua e literatura espanholas e hispano-americanas da USP. A Ocasião 192 págs., R$ 35 de Juan José Saer.Tradução de Paulina Wacht e Ari Roitman. Companhia das Letras (r. Bandeira Paulista, 702, conjunto 32, CEP 04532-002, SP, tel. 0/xx/ 11/3707-3500). Texto Anterior: + literatura: Um rio sem margens Índice |
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