São Paulo, domingo, 03 de julho de 2005

Texto Anterior | Índice

Contra a civilização e a barbárie

Lançamento de Saer refaz a oposição característica da literatura argentina e cria "uma fresta para o mistério"

ANA CECÍLIA OLMOS

A Ocasião", romance de 1986 de Juan José Saer, é o último título do escritor argentino traduzido no Brasil e, ainda que não mitigue a saudade que nos deixou sua ausência, pode nos oferecer a felicidade de um reencontro com sua narrativa. Não é casual a referência a um reencontro quando se trata de apresentar mais um romance desse autor. Cada um dos seus títulos confirma sua idéia de literatura. Para Saer, que rejeitava radicalmente as restrições de qualquer preceptiva estética, o trabalho da escrita literária tem seu fundamento na "vontade de construir uma obra pessoal, um discurso único, retomado sem cessar para ser enriquecido, afinado, individualizado no estilo".


Abrir uma fresta para o mistério, sabemos, foi a tarefa da arte, das práticas esotéricas e do ocultismo


Nesse sentido, "A Ocasião" pode ser pensada como mais uma dobra desse "discurso único" onde se inscreve um estilo que identificamos com o autor e que as cuidadosas traduções brasileiras dos últimos anos encarregaram-se de tornar familiar. É possível reconhecer, nesse romance, os traços inerentes à escrita saeriana, que questiona a evidência exterior da realidade e se interroga acerca de sua essência contingente, duvidando, ainda, das possibilidades de representá-la pela via da linguagem.
Noutras palavras, "A Ocasião" retoma o núcleo estimulante da narrativa de Saer na medida em que expõe e explora, mais uma vez, o sentimento de estranheza do sujeito perante a ordem impenetrável das coisas, mas, sobretudo, na medida em que resiste à tranqüilidade sedutora das respostas positivas.
Porém a particularidade desse romance não reside apenas no retorno dos motivos quase obsessivos da escrita saeriana, senão fundamentalmente no fato de fazer desses motivos a matéria do enredo. O romance relata a história de Bianco, um ítalo-irlandês que, no século 19, percorreu as cidades européias exibindo seus poderes mentais. A telepatia, o deslocamento de objetos, a deformação da matéria por simples contato, faziam parte do leque de poderes por meio dos quais ele tentava provar a supremacia do espírito sobre a matéria.
Esse propósito assumia o caráter de provocação numa época em que o positivismo prescrevia que as possibilidades de conhecimento do real deviam se limitar à constatação dos fatos e das leis que os governam. Abrir uma fresta para o mistério, sabemos, foi a tarefa da arte, das práticas esotéricas e do ocultismo num período dominado pelas certezas da razão. Numa exibição pública perante cientistas de Paris, Bianco é submetido a um ultrajante escárnio que acaba com sua reputação. Desacreditado, decide emigrar a terras americanas e se instalar na solidão do pampa argentino com o firme propósito de escrever uma refutação aos positivistas franceses.
A planície vem ao encontro das preocupações da personagem, que é subjugada pelos efeitos ilusórios de uma paisagem que socava qualquer pretensão de realidade. Pulverizando séculos de história, o narrador do romance condensa a experiência do pampa na imagem de "um espaço irreal e vazio que os conquistadores tinham o especial cuidado de evitar, mas que os índios primeiro, os cavalos e bois mais tarde, aventureiros, soldados e proprietários pouco depois, e mais tarde os deserdados do mundo inteiro que chegavam em barcos abarrotados insistiam em atravessar uma e outra vez, cinzentos e alucinados, deixando rastros fugazes que a intempérie, quase de imediato, se encarregava de fazer desaparecer".
Mas, na Argentina de 1870, não todos concebiam o pampa como esse espaço irreal e vazio. O pragmatismo positivista dominava as políticas do Estado que tentava se apropriar da planície e torná-la produtiva. Dividido entre as meditações filosóficas e o pensamento prático, Bianco não foge à regra e adere, nas suas transações comercias, ao projeto civilizador do país. Como adverte o narrador, ainda que tenha aceitado as leis dessa paisagem, Bianco não foi aniquilado por elas.
Nesse ponto, o romance pode ser pensado como um tributo à literatura argentina, na medida em que retoma, com criatividade, o conflito civilização ou barbárie que se projeta, de Sarmiento a Borges, nesse sistema literário. Com esse gesto, o autor insere sua escrita numa tradição, sem aderir às tipicidades identitárias e sem abandonar o trabalho que individualizou seu estilo.

Ana Cecília Olmos é professora de literatura hispano-americana e coordenadora da pós-graduação em língua e literatura espanholas e hispano-americanas da USP.

A Ocasião
192 págs., R$ 35 de Juan José Saer.Tradução de Paulina Wacht e Ari Roitman. Companhia das Letras (r. Bandeira Paulista, 702, conjunto 32, CEP 04532-002, SP, tel. 0/xx/ 11/3707-3500).



Texto Anterior: + literatura: Um rio sem margens
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.