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AUTORES
Ciências e economia se unem hoje contra a reflexão crítica sobre a sociedade
O homem reduzido
ROBERT KURZ
especial para a Folha
Quando o físico e romancista
britânico Charles P. Snow avançou em 1959 sua tese das "duas
culturas", com ela não somente
conquistou um eco universal,
mas cunhou também um topos
da discussão cultural e sociopolítica. As "duas culturas" são a oposição entre os mundos da ciência
humana e da literatura, de um lado, e, de outro, os da técnica e da
ciência natural, mundos estes
que, desde o século 19, se apartam
cada vez mais. A controvérsia que
se instaurou a respeito, todavia,
permaneceu um tanto superficial.
Isso porque o problema decisivo,
a radicação das duas "culturas"
antagônicas numa determinada
ordem social histórica, quase não
foi posto em litígio.
O debate sobre a tese de Snow
referiu-se mais à relação das ciências naturais com a literatura e a
filologia, e menos à relação das
ciências naturais com a teoria social. Snow, é verdade, ao complementar seu estudo em 1963, admitiu que talvez se pudesse ainda
falar de uma "terceira cultura",
mas isso não passou de um comentário marginal.
O discurso sobre as "duas culturas" toldou, nesse sentido, o verdadeiro problema, ao concentrar-se não numa luta por posições entre as ciências naturais e as ciências humanas, mas na relação polar entre as ciências naturais e os
procedimentos artístico-literários. Essa oposição pôde assumir
o aspecto de uma desavença familiar dentro da intelligentsia burguesa, na qual a ciência natural,
uma espécie de irmã mais velha
ajuizada, levava a melhor sobre os
representantes da "intelligentsia
estética", a quem se podia facilmente tachar de "analfabetos da
ciência".
No fundo, o debate sobre as
"duas culturas" já pressupõe que
"a" ciência seja a ciência natural.
A possível batalha pelo primado
entre a teoria social e as ciências
naturais foi decidida a favor das
últimas, antes mesmo que pudesse ter início. A questão da "terceira cultura" foi em grande parte
ofuscada. Como mostrou a "querela do positivismo" na sociologia
alemã -travada também nos
anos 60 entre os minoritários da
"teoria crítica" de Adorno e Horkheimer, de um lado, e, de outro,
a ciência humana oficial-, o
"mainstream" das ciências sociais
há muito se pôs do lado dos fundamentos e métodos ditados pelas ciências naturais.
Ao emancipar-se desse positivismo das ciências naturais e converter-se em crítica radical da sociedade ou implicar essa última,
no fundo a teoria social deixa de
ser uma "disciplina" acadêmica.
Isso se deve, claro, ao caráter institucional do próprio modelo
científico, que por sua forma é "ritualizado" à moda burguesa e não
possui vocação de crítica radical,
sendo antes parte integrante da
ordem vigente com sua falsa pretensão de objetividade.
Se no declínio da ordem pré-moderna foram sobretudo as novas ciências naturais que, modificando a concepção de mundo,
causaram escândalo e acabaram
perseguidas pelas autoridades,
durante a história de modernização capitalista foi a teoria social,
por sua vez, que passou a ser objeto potencial de perseguição, fosse
diretamente pelo Estado e pela
polícia, fosse mais sutilmente pelos critérios restritivos (tanto de
conteúdo quanto de método) da
"reputação científica". Por isso,
inovações relevantes da crítica social na modernidade, semelhantes -na forma- à criativa "boemia" artística, não raro surgiram
fora ou à margem da ciência oficial, a exemplo de Rousseau no
século 18, Marx no século 19 e a
"Teoria Crítica" ou mesmo os situacionistas franceses (Guy Debord) no século 20.
O neomarxismo acadêmico dos
anos 70, boa parte dele estéril, só
pôde dissimular por alguns momentos -fenômeno da moda
que era- o fato de a teoria crítica
da sociedade no fundo representar pouco mais que uma "gata
borralheira" da academia, como
já se evidenciara no debate mais
ou menos paralelo sobre as "duas
culturas". Hoje a crítica radical da
sociedade desapareceu quase totalmente da ciência acadêmica.
Como último resquício de um
pensamento social irredutível ao
paradigma das ciências naturais
restou apenas a chamada "ética",
uma "doutrina do comportamento" de todo acrítica, individualista
e institucional em relação ao capitalismo, a qual se insinua como
modesta oficina de reparos para
colisões sociais. A "empresa ética" que grassa hoje é o retrato da
teoria social acadêmica após sua
capitulação incondicional.
As disciplinas históricas e sociológicas são segregadas tanto em
termos de método quanto de conteúdo, são quase "perfumaria". O
triunfo da ciência natural sobre o
pensamento crítico da sociedade
e sua entronização como "a" ciência não é obra do acaso. Isso porque a ciência natural moderna e a
ordem social capitalista dominante têm uma origem histórica
comum. A ciência natural foi de
certo modo a "ciência caseira" do
capitalismo ascendente, foi ela
que forneceu um paradigma para
uma "objetividade" sem sujeito.
A ela pôde atrelar-se a apologética
economia política, que representava de certa forma o "cavalo de
Tróia" do pensamento das ciências naturais na teoria social. Desde o princípio, ciência natural e
economia uniram-se contra o
pensamento de crítica social, para
afinal expulsá-lo de vez do panteão da ciência moderna.
O triunfo da ciência natural e da
economia pseudocientífica sobre
a crítica social revela-se em dois
pontos comuns e essenciais de
seus "métodos": funcionalismo,
de um lado, e reducionismo, de
outro. Funcionalismo significa
não se perguntar pelo fundo, mas
somente pela forma, pelo modo
de "funcionar", ao passo que a essência, o "sentido", o verdadeiro
âmago do objeto é pressuposto
sem reflexão e permanece à parte
do interesse científico, um caso
para a "infrutífera metafísica",
para a religião, para a "opinião"
meramente subjetiva.
Na "ciência", os objetos dissolvem-se em suas funções. Na práxis social, trata-se daquela "razão
instrumental" criticada por Horkheimer e Adorno, que dá margem a manipulações segundo o
fim tautológico cegamente pressuposto da valorização do capital,
em que tanto a ciência natural e a
técnica quanto a economia teórica acham-se banidas.
Reducionismo significa, ao menos segundo a intenção, que objetos e formas de ordem superior
sejam reduzidos a meras "combinações" de objetos e formas de ordem inferior. Economia e ciência
natural concordam em grande
parte que espírito, cultura e sociedade possam remontar a elementos biológicos ou mesmo econômicos (funções), e esses, por sua
vez, a elementos físicos. A consciência humana, o pensar e as formas de interação social a eles conexas devem ser reduzidos a processos neurobiológicos no cérebro.
A famigerada "fórmula universal" buscada pelos físicos seria o
coroamento desse reducionismo.
Que só poderia ser, no entanto,
uma fórmula vazia, pois a consciência resulta tão pouco da descrição de processos neurobiológicos quanto o conteúdo de um livro, digamos, sobre os descalabros intelectuais da ciência natural e da economia resulta da descrição da técnica de impressão
gráfica, da estrutura molecular do
papel utilizado ou dos pigmentos
das letras impressas. A consciência supõe "significado" de conteúdo, e isso é "fundo", não "forma", que jamais é idêntico à execução de funções neurobiológicas. Com relação ao "significado"
e ao conteúdo, a pesquisa científica neurológica só pode expor-se
ao ridículo.
Algo semelhante ao reducionismo das ciências naturais afeta o
pensamento econômico. Desde as
hoje ressuscitadas "leis populacionais" de um Malthus, passando pela doutrina sociodarwinista
do "survival of the fittest" (sobrevivência do mais apto), até a suposta predisposição "genética" à
pobreza, ele biologiza a sociedade
para então novamente dissolver
esse reino animal de seres humanos em categorias pseudofísicas,
tais como um mecanismo "natural" de preço, um "desemprego
natural" (Friedman) etc.
Tanto para a natureza quanto
para a sociedade, o enlace desse
funcionalismo reducionista com
esse reducionismo funcional desenvolve potenciais destrutivos. É
por isso que a ciência natural e a
economia, apesar de seu patente
sucesso na manipulação do homem e da natureza, acabou por
não trazer melhora nenhuma às
condições de vida. A economia
não se cansa de produzir novos
surtos de pobreza e crises, a ciência natural, novos "artefatos de
destruição". Mas esse infeliz resultado não remonta a um "abuso" contingente, a uma simples
"utilização" equivocada da "cientificidade" legítima, antes está radicado nos próprios procedimentos, nos axiomas e no sistema de
categorias da ciência natural e da
economia. Não estamos às voltas
aqui com uma objetividade absoluta e a-histórica, senão com um
mundo filtrado pelas formas do
moderno sistema produtor de
mercadorias, que se fazem passar
por um a priori absoluto não apenas no pensamento econômico,
mas também no científico.
Para poder criticar, no interesse
da emancipação humana, esse nexo categórico entre a ciência natural e a economia de produção
mercantil, temos de evitar diversas armadilhas. Não é uma alternativa, por exemplo, criticar o
pensamento físico mecanicista
desde Descartes em nome de um
"organicismo" biológico, tal como tentou a chamada filosofia da
vida na virada do século passado.
Isso não seria mais que jogar o
reducionismo biológico contra o
físico (com as reacionárias consequências sociopolíticas de praxe),
em vez de formular propriamente
uma crítica do reducionismo
científico. O escândalo do paradigma científico é duplo: em última análise, ele não é capaz de distinguir nem entre objetos mortos
e vivos, nem entre biologia e sociedade. Ambos os aspectos desse
processo duplo de redução científica devem ser criticados para superar o nefasto discurso econômico-científico.
Também não é uma alternativa
buscar refúgio num cosmos religioso da pré-modernidade reproduzido sinteticamente. Uma ordem simbólica desse tipo, com
uma cosmovisão coerente, faz
parte irrevogável da história; toda
tentativa de reavivá-lo só pode redundar num obscurantismo ainda mais irracional. A embromação da indústria esotérica, comercializada a extremos, não supera o
reducionismo (e funcionalismo)
econômico-científico, antes só o
complementa.
Não raro, são os próprios cientistas e economistas que cultuam
seu "deus pessoal" ou lêem sua
sorte nas cartas. O objetivo não
pode ser um recuo reacionário a
formas de reflexão anteriores à
ciência moderna, mas somente
um avanço para além delas. Ora, a
forma dessa crítica é necessariamente a teoria social, cuja esfera
de aplicação devia ser estendida
às ciências naturais, ou melhor, às
raízes históricas comuns do capitalismo, da ciência natural e da
economia teórica.
Não se trata simplesmente de
negar os conhecimentos científicos atuais ou aceitar "lado a lado",
sem reflexão, práticas culturais
divergentes, tais como a magia
das danças da chuva e a meteorologia moderna, como sugeriu
Paul Feyerabend, antigo teórico
positivista da ciência, após o colapso de sua imagem científica do
mundo. Um caso ainda pior é o
do físico norte-americano Fritjof
Capra, que traça paralelos superficiais entre a mística do Extremo
Oriente e a física moderna, reunindo-as num moralismo raso.
A tarefa é muito mais complicada. Cumpre "historicizar" a ciência natural e submetê-la a uma auto-reflexão social: ela não é uma
relação imediata "do" ser humano com a natureza "objetiva", antes vem sempre filtrada pelo caráter social dos sujeitos que percebem e pesquisam. A ciência natural, claro, não é uma ciência da sociedade, e isso pelo próprio âmbito de seu objeto, mas é, sim, uma
ciência social, devendo ser
apreendida, nesse sentido, como
fenômeno de uma certa "subjetividade histórica" -e seus axiomas, categorias e procedimentos,
decifrados como formas sociais
de percepção.
Esta, portanto, é a grande questão: em que consiste, do prisma
da teoria do conhecimento e da
práxis social, de uma "visão de
mundo", o nexo formal comum e
historicamente limitado entre capitalismo e ciência natural, nexo
este que cabe ser superado? A tarefa consistiria, nesse sentido, em
vincular a crítica à pseudo-objetividade das categorias econômicas
modernas a uma crítica correspondente à forma socialmente
mediada das ciências naturais, a
fim de "enxergá-las" de alto a baixo com as lentes da crítica social,
pulverizando a interpretação sociotecnológica ou sociobiológica
e evidenciando seu âmbito de
aplicação limitado. Há muito
tempo a própria física chegou a
seus limites, que simplesmente
não são reconhecidos como limites histórico-sociais. Talvez o previsível fiasco da "fórmula universal" seja a gota d'água para que a
ciência natural comece a tomar
consciência crítica de sua forma
social negativa.
Para desvendar o caráter irracional da moderna racionalidade
econômica e científica, os teóricos
da sociedade teriam, é claro, de
superar seu "analfabetismo" científico, e os cientistas, seu "analfabetismo" social. Uma tal perspectiva exige também uma crítica social do modelo científico.O sistema dos "especialistas bitolados",
inflexível como é, não produzirá
mais novos conhecimentos que
abalarão o mundo.
Robert Kurz é sociólogo e ensaísta alemão,
autor, entre outros, de "O Colapso da Modernização" (Ed. Paz e Terra) e "Os Últimos Combates" (Ed. Vozes). Ele escreve mensalmente
na seção "Autores", da Folha.
Tradução de José Marcos Macedo.
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