São Paulo, domingo, 03 de outubro de 2004

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O sertão em forma de hipertexto

"Grandesertão.br", de Willi Bolle, defende que o romance de Guimarães Rosa esconde uma história criptografada do Brasil

Wander Melo Miranda
especial para a Folha

Na entrevista que concedeu a Günter Lorenz em janeiro de 1965, Guimarães Rosa assinalou que a crítica literária deve ser "um diálogo entre o intérprete e o autor, uma conversa entre iguais que apenas se servem de meios diferentes". Além de intermediário entre a obra e o leitor, o crítico se veria investido da função de complementar o texto ao acrescentar a ele sentidos imprevistos, agindo como o navegante que "sobe a bordo da nave como timoneiro", em busca de novas descobertas. O bom escritor e o bom crítico são descobridores que "procuram mundos desconhecidos". É essa a primeira impressão que se tem -e aos poucos se confirma- com a leitura de "Grandesertão.br - O Romance de Formação do Brasil", de Willi Bolle. A surpresa do título, que destaca a abordagem literária da nacionalidade e da nação por meio de seus desdobramentos futuros, revela de chofre o que o leitor terá pela frente. Revela também, no decorrer da análise, sua filiação à linha sociológica dos trabalhos pioneiros sobre "Grande Sertão - Veredas", realizados por Antonio Candido e Walnice Nogueira Galvão, embora a estenda às conquistas recentes da tecnologia da informação, sem fazer desse procedimento uma salada teórica indigesta. A hipótese principal é a de que "Grande Sertão - Veredas" é um romance de formação ("Bildungsroman") que se dá a ler como história criptografada do Brasil. Para tanto, a narrativa reescreve, na perspectiva do "esquecimento ativo", "Os Sertões", de Euclides da Cunha, bem como dialoga e polemiza com ensaios sobre a formação nacional, de autoria de Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda, Caio Prado Jr., Celso Furtado, Antonio Candido, Raymundo Faoro e Darcy Ribeiro. Como "livro-síntese dos retratos do Brasil", ele cria um hipertexto que configura uma "narração-em-forma-de-rede", metáfora espacial de valor geográfico, empírico e alegórico que expressa um pensamento labiríntico cuja forma literária é o sertão. A analogia com o cérebro humano -sua concepção como "metáfora da aprendizagem"- permite à experiência narrativa localizar o "sertão dentro da gente". O trânsito entre o interno e o externo, facilitado pela acuidade metodológica de Willi Bolle, acentua o significante heterogêneo do sertão, considerado como "antipaisagem", "arquipaisagem da civilização" ou, em última instância, "país arcaico, no limiar entre a mitologia e a história".

Jagunço desconstruído
Diferentemente das leituras anteriores, a jagunçagem aí se inscreve não como tema a ser analisado, mas como discurso pertencente ao "genus indiciale", ao discurso diante do tribunal, cujo exemplo mais flagrante é o julgamento de Zé Bebelo e, em certo sentido, o relato rememorativo e confessional de Riobaldo. Daí a originalidade do "enfoque da relação entre o discurso da jagunçagem como instituição e o discurso mediador do narrador rosiano". A escolha de um "jagunço letrado" como narrador é, como insiste Willi Bolle, um achado. Em virtude de sua natureza, aproximações e distanciamentos relativos ao que é narrado são possíveis: o discurso da jagunçagem é desconstruído por uma visão "de dentro" e uma perspectiva "de fora". É a "instância metanarrativa", constituída pela auto-reflexão do narrador e pela montagem de "cenas contrastivas" realizada pelo autor, que permite a instituição da jagunçagem funcionar como alegoria do "sistema político como um todo". Essas questões confluem para o pacto, que condensa todos os acontecimentos do romance. A forma como é dada centralidade ao episódio é mais um dos momentos fortes da leitura de Willi Bolle, que o interpreta como "uma alegoria da institucionalização da Lei, expressa pelo primeiro pacto ou contrato social, firmado na história primeva da humanidade". Apesar de ser discutível a universalidade que o analista empresta ao pacto, em razão da ambigüidade que sua realização localizada encerra -houve ou não houve o pacto? O diabo existe ou não existe?-, ele não deixa de ser também a "alegoria de um falso contrato social".

Alegoria do Brasil
Nesse sentido, Guimarães Rosa "desmonta o discurso utópico iluminista, para revelar lucifericamente a ordem político-social vigente". O pacto, então, passa a ser visto como alegoria do nascimento do Brasil, encarnado em Riobaldo, que passa a experimentar uma nova identidade. Mais uma vez, dentro e fora se conjugam sob o signo de uma ficção de fundação "literal". Se o pacto é o elemento "centralizador" do relato, qual o lugar que nele Diadorim ocupa?
Se ela é analisada como "figura constelacional", "como forma de organizar os elementos do discurso", em que medida o trabalho de luto que sua perda acarreta e desencadeia a narração enquanto "história do sofrimento" se articula com o pacto e com tudo que ele significa? A opção interpretativa de Wille Bolle pela figura de Diadorim como "paixão estética", embora bem construída, deixa a questão ainda em suspenso. Ao contrário de ser a figura que organiza o relato, Diadorim nele introduz a questão do "gênero" ("gender") a partir da margem que, na sua ambivalência, reforça a bifurcação incessante dos caminhos e impede a integridade -narrativa, nacional- de um sistema significante.
Diadorim permanece à deriva, indecidível na sua condição marginal que ilumina o mundo público da ação pelo recalque dos afetos privados, no fio da navalha entre a soberania do desejo individual e a vontade de uma vida comum, de viver em comum. Nega-se, mesmo à sua revelia, à representação, interrompendo o fluxo do significado e de uma possível verdade narrativa, disseminando projeções de alteridade demoníacas porque intraduzíveis na proliferação significante do que é e não é.
Talvez o maior elogio que se possa fazer a "Grandesertão.br" -o livro mais instigante surgido nos últimos anos sobre a obra de Rosa- seja o fato de ele oferecer uma base sólida para lançar o enigma rosiano para um mais-além que abre novas possibilidades de leitura no presente e novos caminhos para futuras gerações de leitores.


Wander Melo Miranda é professor de teoria da literatura na Universidade Federal de Minas Gerais. É autor de "Graciliano Ramos" (Publifolha), entre outros.

Grandesertão.br
480 págs., R$ 44,00 de Willi Bolle. Ed. Duas Cidades/ed. 34 (r. Hungria, 592, CEP 01455-000, São Paulo, SP, tel. 0/ xx/11/ 3816-6777).



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