São Paulo, domingo, 03 de novembro de 2002

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Uma história social dos dicionários


Surgidos no Ocidente no século 15, os vocabulários ajudaram a aproximar culturas distantes


Peter Burke

Hoje temos por certo que, se não compreendermos uma palavra, seja em nossa própria língua ou numa língua estrangeira, podemos procurá-la no dicionário. Imagine os problemas que teríamos se esses dicionários não existissem ou fossem inacessíveis! Mas esses livros valiosos, assim como outras obras de referência, não existiram durante a maior parte da história humana. No mundo ocidental, os dicionários só começaram a aparecer em quantidade razoável depois da invenção da imprensa de tipos móveis, em meados do século 15 (melhor descrita como "reinvenção", já que chineses e japoneses imprimiam livros muito antes disso). A existência de livros desse tipo dependeu não apenas da tecnologia existente, mas também de fatores econômicos e sociais. A demanda por dicionários esteve ligada ao surgimento de práticas culturais que incentivavam seu uso regular, incluindo práticas de leitura, como o hábito de consultar livros em busca de determinados itens de informação, em vez de os ler do começo ao fim ou, como dizem os ingleses, "de capa a capa". Em outras palavras, os dicionários não apenas têm uma história, mas também possuem uma história social.

Traduções às cegas
Para colocá-los em contexto é necessário perguntar quem os compilava, para quem e com que objetivos. Assim sendo, não deve surpreender o fato de que os primeiros dicionários foram de latim, para uso em escolas de gramática, fundadas como parte do movimento humanista do Renascimento e frequentadas por meninos originários das classes alta e média. Por exemplo, um dicionário de latim-catalão apareceu em 1489, um dicionário de latim-espanhol em 1492, um dicionário de latim-dinamarquês, em 1510, e um dicionário de latim-tcheco, em 1511. Por outro lado, o primeiro dicionário de latim-português que conheço, compilado por Cardoso, só foi publicado em 1562. Como os estudantes conseguiam fazer suas traduções de Cícero e Virgílio antes dessa data, não sabemos. Ou confiavam na memória ou compilavam para si mesmos vocabulários manuscritos, que desde então se perderam. Dicionários de línguas vernáculas demoraram mais para surgir, provavelmente porque no início os impressores não tinham certeza de qual seria o tamanho do mercado para essas volumosas obras de referência. No caso do espanhol, por exemplo, um "Diccionario de Vocablos Castellanos" foi publicado em 1587, enquanto o mais famoso "Tesoro de la Lengua Castellana", compilado por Sebastián de Covarrubias, data de 1611. O conhecido "Vocabolario della Crusca" italiano foi publicado entre 1612 e 1623, e o famoso dicionário de francês compilado pela Academia Francesa começou a ser publicado em 1694. Um dicionário de inglês-inglês foi publicado em 1604, mas o primeiro dicionário aceito como autoridade foi o compilado pelo dr. Samuel Johnson em 1755. O equivalente português da obra de Johnson é provavelmente o "Diccionário da Língua Portuguesa", do brasileiro Antônio de Morais Silva, publicado pela primeira vez em 1789.

Mercadores e peregrinos
Se foram necessários tantos anos para surgirem dicionários de uma língua, e muito mais para eles se tornarem acessíveis em um formato barato ou portátil, não deve ser difícil imaginar a longa demora para o surgimento de dicionários bilíngues das línguas européias modernas. É verdade que pequenos vocabulários para uso de viajantes, como mercadores e peregrinos, já haviam sido impressos antes de 1500 (o primeiro desses livretes mediava entre italiano e alemão). Havia também o "Calepino", vocabulário latim-italiano-francês-alemão publicado em 1502 e gradualmente ampliado até incluir hebraico, holandês, espanhol, inglês, polonês e húngaro. Para volumes maiores, foi necessário esperar até o final do século 16 ou mais, conforme as línguas. O dicionário de espanhol-italiano de Landucci foi publicado em 1562, e o dicionário de inglês-italiano de Florio, em 1598, mas para um dicionário de inglês-holandês foi preciso esperar até 1648, para português-inglês, até 1701, e para o de português-holandês, até 1714. Não é difícil imaginar os problemas encontrados por viajantes de diferentes países que não tinham na bagagem os dicionários certos. Na Hungria, por exemplo, os estrangeiros costumavam tentar se fazer entender em latim, e diz-se que os estalajadeiros e seus funcionários falavam latim, provavelmente de um tipo rudimentar, assim como nos atuais restaurantes chineses no estrangeiro os garçons aprendem a língua do país em que trabalham (nunca me esquecerei de entrar num restaurante chinês em Copenhague e ser atendido por um garçom chinês falando o que parecia ser um dinamarquês extremamente fluente). O surgimento de dicionários entre línguas européias e não-européias é outra história, e longa. Começa relativamente cedo, graças aos missionários no Novo Mundo. Um dicionário de espanhol-nahuatl foi publicado em 1555, um dicionário de espanhol-zapoteca, em 1578, um de espanhol-quéchua, em 1608. Foi graças aos jesuítas que o primeiro dicionário do japonês para uma língua européia, o dicionário de português-japonês de Rodrigues, apareceu em 1595, mesmo ano que viu a publicação da gramática tupi de Anchieta. O dicionário de tamil-português do jesuíta Antão de Proença, de 1679, foi outra compilação para ser usada no campo missionário, assim como o "Vocabulário em Idioma Bengala e Português", de frei Manuel da Assunção (1743). No caso de outras partes do mundo, porém, os dicionários foram motivados mais por esperanças de comércio que de conversão. Por exemplo, isso é certamente o que explica a publicação de um dicionário de malaio-holandês em Amsterdã, em 1603 (seguido por diversas compilações rivais), ou a de um dicionário de italiano-turco, em 1612. Os leitores terão notado que eu nada disse até agora sobre dicionários de chinês, que apresentavam problemas especiais para os compiladores. Para que um dicionário seja útil na decodificação de textos literários chineses, precisa incluir 50 mil itens ou mais. As entradas não podem ser organizadas em ordem alfabética, porque os chineses não operam com um alfabeto, mas com "ideogramas" -em outras palavras, sinais que representam determinadas palavras.

Quantidade de traços
Até hoje, se você quiser procurar uma palavra chinesa em um dicionário, precisa começar contando o número de traços do ideograma, e mesmo essa operação aparentemente simples não é fácil para um estrangeiro. Em todo o caso, muitos ideogramas são feitos de (aproximadamente) dez traços, e para pesquisar essa parte do dicionário é preciso identificar o "radical", o elemento relativamente comum no lado esquerdo do caractere.
Diante desses problemas, embora a China fosse um terreno para as missões desde os dias do jesuíta italiano Matteo Ricci, no final do século 16, de modo que um dicionário impresso já teria sido útil, esse dicionário só apareceu em 1813. Publicado em Paris e compilado pelo orientalista J. de Guignes, a obra oferecia traduções de ideogramas chineses em latim, assim como em francês, o que aumentava sua atração internacional.
Até hoje, na era dos computadores e da tradução computadorizada, a elaboração de dicionários não é fácil. Na próxima vez em que você consultar um dicionário ou uma obra de referência semelhante, como uma enciclopédia, pense um pouco nas pessoas cujas longas horas de trabalho lhe permitiram adquirir um conhecimento quase instantâneo.
Imagine os problemas de compilar o primeiro dicionário de uma determinada língua (algo que ainda acontece em cantos remotos do mundo), sobretudo imagine as dificuldades de organizar a informação numa era em que as entradas de determinadas palavras não eram escritas num computador, que as organiza automaticamente, mas à mão (usando uma pena) sobre tiras de papel!

Peter Burke é historiador inglês, autor de "História e Teoria Social" (ed. Unesp) e "O Renascimento Italiano" (ed. Nova Alexandria). Escreve regularmente na seção "Autores", do Mais!.
Tradução de Luiz Roberto Mendes Gonçalves.


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