São Paulo, domingo, 03 de novembro de 2002

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A ERA DE HOBSBAWM

Max Ehlert
Público acompanha a cerimônia de encerramento dos Jogos Olímpicos, em Berlim, em 1936


por Perry Anderson


EM "TEMPOS INTERESSANTES", QUE SERÁ PUBLICADO PELA CIA. DAS LETRAS, O AUTOR DE "ERA DOS EXTREMOS" RELEMBRA SUA DESCOBERTA DO COMUNISMO NOS ANOS 30, RELATIVIZA OS MOVIMENTOS DE ESQUERDA DOS ANOS 60 E ATACA A EXPLORAÇÃO POLÍTICA DO 11 DE SETEMBRO


Quem seria mais apto para praticar a autobiografia que os historiadores? Treinados para examinar o passado com olhar imparcial, alertas às peculiaridades do contexto e aos artifícios da narrativa, eles pareceriam os candidatos ideais para a difícil tarefa de descrever a própria vida. Mas estranhamente não são eles, e sim os filósofos, que se superam nesse gênero -na verdade, quase o inventaram.
Em princípio, a autobiografia é a mais íntima e particular das formas de escrita, e a filosofia, a mais abstrata e impessoal. Poderiam ser óleo e água. Mas foram santo Agostinho e Rousseau os que nos deram a confissão pessoal e sexual, e Descartes quem ofereceu a primeira "história da minha mente"; em tempos modernos, Stuart Mill [(1806-1873), filósofo e economista inglês] e Nietzsche, Collingwood [Robin George Collingwood (1889-1943), filósofo inglês] e Russell, Sartre e Quine [Willard Van Orman Quine (1908-2000), filósofo americano] deixaram registros de si próprios mais memoráveis que qualquer outra coisa escrita sobre eles.
Por outro lado, o número de historiadores que produziram autobiografias de certa distinção é notavelmente pequeno. Do século 19, as memórias egocêntricas de Guizot [François Guizot (1787-1874), historiador francês] e Tocqueville, raramente consultadas hoje, têm interesse principalmente como testemunhos de evasão política. Mais próximo, o post mortem sobre 1940 de Marc Bloch [(1886-1944), historiador francês], com sua mistura de relato pessoal e exposição geral, é um documento pungente, mas circunscrito demais para ir além de lampejos de auto-revelação.
Mais recentemente, temos os retratos excêntricos de Richard Cobb [(1917-1996), historiador inglês] e as "causeries" de A.J.P. Taylor [Alan John Percivale Taylor (1906-1990), historiador inglês", as quais, para ele, eram evidência de que havia esgotado os temas históricos. De modo geral, no gênero para o qual parece tão bem destinado, o ofício do historiador produziu talvez apenas dois clássicos -o gracioso espelho de Gibbon [Edward Gibbon (1737-94), historiador inglês] no final do século 18 e a sobrenatural "Wunderkammer" ["gabinete de curiosidades"] de Henry Adams [(1838-1918), escritor e historiador americano", no início do século 20.
Nesse campo geralmente decepcionante, Eric Hobsbawm entrou na lista com uma obra que ele nos convida a ler como o "outro lado" da "Era dos Extremos", sua grande história do século 20, "não a história do mundo ilustrada pelas experiências de um indivíduo, mas a história do mundo moldando essa experiência" -e as opções de vida que ela lhe ofereceu.
Publicado aos 85 anos de vida do autor, por sua energia e incisividade "Tempos Interessantes" poderia ter sido escrito aos 40.
Suas qualidades são tais, na verdade, que é quase impossível ler sem ser atraído para sua obra de historiador, tantas são as visões que ela oferece, casual ou deliberadamente, sobre o que conquistou como um todo.
Estamos lidando com uma espécie de quinto volume, em registro mais pessoal, de um projeto contínuo. Este poderia ser chamado simplesmente de "A Era de EJH".
Como tal, ele oferece uma autobiografia composta de três partes bastante distintas. A primeira, que cobre a juventude do autor até as portas da universidade, tem muitos motivos para ser considerada o melhor texto jamais produzido por esse consumado estilista.



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