São Paulo, domingo, 03 de novembro de 2002

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AUTO-RETRATO

Com delicadeza e reserva, mas também uma tensa franqueza, Hobsbawm nos leva de seu nascimento acidental em Alexandria para uma infância precária na Viena do pós-guerra; a breve mas exaltada adolescência nos últimos dias da Berlim de Weimar [cidade em que foi proclamada a república, em 1919, ao fim da Primeira Guerra; a República de Weimar terminou em 1933, com a ascensão do nacional-socialismo"; o afastamento do nazismo para a Inglaterra e a transferência final para Cambridge, às vésperas da Guerra Civil Espanhola.
Retratos tocantes de seus pais -um desafortunado pai inglês e uma frágil mãe austríaca, ambos mortos quando ele tinha 14 anos- esboçam um pano de fundo psicológico; a ascendência judaica de ambos os lados, na cidade mais anti-semita da Europa, outro. Ele explica o tipo de lealdade às origens familiares que aprendeu da mãe, e sua correspondente "falta de qualquer obrigação emocional com o pequeno país-Estado militarista, culturalmente desapontador e politicamente agressivo, que pede minha solidariedade em termos raciais".
Deslocado para Berlim, onde um tio (do lado inglês) trabalhava na indústria de cinema, Hobsbawm descreve sua descoberta do comunismo aos 15 anos, em um tradicional ginásio prussiano, com Hitler às portas do poder. Houve poucas evocações tão vívidas da atmosfera elétrica da esquerda revolucionária na Alemanha naqueles meses. Não admira que as memórias do último desfile decadente de um KPD [Partido Comunista da Alemanha" condenado, no lusco-fusco de Berlim, o tenham marcado mais profundamente que os dias de escola na tranquila Londres do Governo Nacional [governo de coalizão (1931-1940), com forte inclinação conservadora, liderado por Ramsay MacDonald (1866-1937)".
Sobre sua experiência subsequente na escola primária St. Marylebone, ele escreve com afetuoso bom humor ("Eu gostava dos exames como de sorvete"). Na composição dessas cenas contrastantes, a inteligência do historiador está sempre em ação, ambientando os incidentes de uma vida pessoal nas correntes cruzadas de um espaço e tempo graficamente delineados. A imagem que surge, com considerável dom artístico, é a de um menino diferente das imagens convencionais do homem: solitário, inicialmente mais atraído pela natureza do que pela política, um tanto absorto e introspectivo, gradualmente mais confiante em suas forças.
O tom de auto-retrato em que ele envolve sua adolescência lembra algo do horóscopo que Kepler [(1571-1630), astrônomo alemão] fez de si mesmo: "Eric John Ernest Hobsbawm, um rapaz de 18 anos e meio, alto, anguloso, encurvado, feio, de cabelos claros, rápido para compreender, com um estoque de conhecimento geral considerável, embora superficial, e muitas idéias originais, gerais e teóricas. Um incorrigível tomador de atitudes, o que é ainda mais perigoso e às vezes eficaz, pois ele se convence a acreditar nelas... Não tem senso de moral, totalmente egoísta. Algumas pessoas o acham extremamente desagradável, outras, amável, outras ainda (a maioria), apenas ridículo... Ele é fútil e arrogante. É um covarde. Ama profundamente a natureza. E esquece a língua alemã".
Assim termina a primeira parte de "Tempos Interessantes". De um ponto de vista literário, bem poderia ter parado aí. Então teríamos algo próximo daquelas obras-primas de final abrupto, comoventes e instigantes na mesma medida, que nos deixaram Benjamin Constant ou Sartre -viagens à idade da razão ou da paixão, que nos abandonam em seu limiar. Se essa idéia não é incongruente é porque, em vez de preparar o caminho para o retrato do historiador como jovem, a passagem acima fecha a porta para outras explorações semelhantes do "self".
Uma recriação imaginativa, profundamente sentida, do jovem que ele foi um dia abruptamente dá lugar a outro tipo de empreendimento.
Nunca mais vislumbramos a mesma paisagem interior. Sem avisar sobre qualquer mudança de marcha, o capítulo seguinte nos leva à segunda parte de "Tempos Interessantes", que cobre a participação de Hobsbawm no Partido Comunista da Grã-Bretanha do final dos anos 30 até sua dissolução, no início dos 90.
Aqui ele relata sua época em Cambridge, no auge do comunismo estudantil; seu encalhamento durante a guerra como suspeito para as autoridades; suas perspectivas como membro do partido e sua parcial marginalização como acadêmico durante a Guerra Fria; suas reações à crise que envolveu o movimento comunista com as revelações de Kruschov [líder da União Soviética de 1958 a 64)] e a revolta húngara em 1956 [rebelião generalizada em Budapeste, que eclodiu em março de 1956, contra o aparato repressivo stalinista; rapidamente avançou para a contestação da integração plena da Hungria pela URSS]; os motivos pelos quais ele ficou no partido depois que a maioria de seus colegas historiadores marxistas o deixaram, acreditando que sua opção foi mais frutífera que a deles; como acabou ajudando, na sua própria opinião, a salvar o Partido Trabalhista no momento em que o próprio Partido Comunista da Grã-Bretanha ruiu.
Esses capítulos marcam uma completa mudança de registro. A diferença começa na primeira página, em que -antes mesmo de tentar descrever sua experiência pessoal em Cambridge- Hobsbawm se sente obrigado a explicar quão reduzida era sua intimidade com Burgess e Maclean, Philby e Blunt, os quais o precederam na universidade. Muito honrosamente, ele acrescenta que se mais tarde tivesse sido convidado a executar o mesmo tipo de missão o teria feito. Mas fica uma sensação de desconforto, como se outro tipo de leitor começasse a pairar ao fundo da narrativa.
A descrição de Cambridge que se segue oferece esboços hábeis do arcaísmo dos tutores e das instituições e dos motivos e do caráter dos estudantes radicais. Salientando que a esquerda em seu auge abrangia talvez um quinto do corpo subgraduado, do qual o contingente comunista, por sua vez, não passava de um décimo, Hobsbawm reforça a influência informal que, não obstante, o partido exercia na universidade -um produto de suas campanhas enérgicas, do compromisso com o êxito acadêmico e do fervor de seus jovens ativistas.


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