São Paulo, domingo, 03 de novembro de 2002

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

BARRICADAS

O efeito dessas extensas reflexões é misto. Analisando a opção pelo comunismo em um nível muito geral, da Revolução de Outubro [em 1917" até o fim da guerra, Hobsbawm oferece uma defesa e uma ilustração eloquentes do que ela significou para aqueles que a fizeram, alternando observação social com exemplos individuais, heróicos ou banais. Sua ênfase recai em um etos de obediência abnegada e praticidade -"eficiência empresarial", como ele diz- como a verdadeira marca da Terceira Internacional.
"Os partidos comunistas não eram para os românticos. Pelo contrário, eram para a organização e a rotina... O segredo do Partido Leninista não estava em sonhar com erguer-se sobre as barricadas, tampouco na teoria marxista. Ele pode ser resumido em duas frases: "As decisões devem ser verificadas" e "disciplina partidária". O apelo do partido era que ele realizava as coisas, quando outros não o faziam."
Historicamente, deve-se dizer, essa imagem é estranhamente tendenciosa. Um movimento que contava com revolucionários como Serge ou Trótski, Roy ou Mariátegui, Sneevliet ou Sorge, não era para românticos? Nesse sentido, e Mao Tse-tung -por bem ou por mal uma figura da história do comunismo maior que qualquer dos leais funcionários ou militantes europeus aos quais somos apresentados aqui?
Na verdade, Hobsbawm o condenou alhures precisamente como um "romântico". A realidade é que uma contraposição das barricadas e da teoria à eficiência empresarial e a realizar as coisas é retórica "ex post facto", que no máximo indica algo da auto-imagem do Comintern europeu stalinizado pós-1926, em que o próprio Hobsbawm se formou, mas não capta adequadamente nem sequer suas ambiguidades. O culto da rotina obstinada e da praticidade, como expresso aqui, era com frequência apenas mais uma forma de romantismo, e de modo nenhum sempre a mais eficaz. Felizmente o próprio Hobsbawm não o praticou constantemente, como deixa claro seu inspirador retrato do revolucionário austríaco Franz Marek, o núcleo moral de suas reflexões sobre "ser comunista".
Quais eram então suas convicções como indivíduo, não mais na época do Comintern, dissolvido em 1943, mas do Cominform [agência de informação (1947-1956) constituída pelos partidos comunistas da Bulgária, Tchecoslováquia, França, Hungria, Itália, Polônia, Romênia, União Soviética e Iugoslávia" montado por Zhdanov em 1947 para atuar no auge da Guerra Fria? Não é fácil dizer.
Em parte porque "Tempos Interessantes" evita qualquer cronologia demasiado meticulosa ao discutir o comunismo do autor.
Sua meditação geral sobre a experiência comunista, que se estende sem datas mais ou menos de Lênin até Gorbatchov, é colocada imediatamente depois de seu relato de Cambridge, antes mesmo da guerra. Quando ele retoma o assunto em sua história pessoal, é para evocar a atitude dos intelectuais no partido britânico sobre os desenvolvimentos do período do Cominform que o incomodavam: a excomunhão de Tito, os julgamentos farsescos de Kostov, Rajk e Slansky.

COLAPSO NERVOSO


"Ainda pertenço ao final da primeira geração de comunistas, aqueles para quem a Revolução de Outubro era o ponto de referência central no universo político"


Aqui também a referência é insistentemente coletiva: "O que poderíamos pensar?", "nenhum de nós acreditava", "claramente subestimamos", "pessoas como eu", "nós também admitimos".
Das opiniões pessoais de Hobsbawm pouco ficamos sabendo, além de seu ceticismo de que Basil Davidson pudesse ter sido um agente britânico, como foi acusado juntamente com Rajk, já que sua carreira foi prejudicada na Guerra Fria. Não há pistas de sua opinião sobre os julgamentos de Moscou que destruíram os "velhos bolcheviques" e definiram o padrão para as continuações em Sófia, Budapeste e Praga depois da guerra. Ele nunca cita alguma leitura da considerável literatura em torno desses eventos. A essência de seu relato é que os comunistas britânicos, ou pelo menos os intelectuais do partido, não acreditavam nas versões oficiais de nada disso. Não é exatamente a mesma coisa que saber que eram um monte de mentiras, já que também circulavam versões não-oficiais.
Quando Kruschov finalmente expôs as fundações e todo o grotesco edifício das confissões nas câmaras de tortura de Stálin, Hobsbawm salienta o choque que essas revelações -que, é claro, continham pouco que ainda não se soubesse amplamente do lado de fora-causaram ao movimento comunista internacional. "O motivo é óbvio", ele escreve. "Não nos contaram a verdade sobre algo que afetaria a própria natureza do credo comunista." Mesmo que, mais uma vez, o pronome deixe uma margem de ambiguidade, a implicação deve ser a de que Hobsbawm de certa forma continuara acreditando na honra de Stálin.
De que maneira? A construção da narrativa torna impossível adivinhar. O que fica claro é que se esperava que a palavra da autoridade trouxesse a verdade, e não fontes independentes criticamente verificadas. Em todos os aspectos, o militante e o historiador permaneceram identidades separadas.
A crise que o discurso de Kruschov, em abril de 1956 -seguido poucos meses depois pela revolta húngara- , desencadeou no PC britânico é descrita por Hobsbawm com uma imagem de agitada emoção. "Durante mais de um ano os comunistas britânicos viveram à beira do equivalente político de um colapso nervoso coletivo." O grupo de historiadores do partido, do qual ele era então presidente, se tornou o centro da oposição à oficialidade, e virtualmente todos os seus membros, com exceção dele próprio, haviam deixado o partido no verão de 1957. Por que ficou? Hobsbawm dá duas respostas e um comentário.
"Não entrei no comunismo como um jovem britânico na Inglaterra, mas como um europeu central na República de Weimar em colapso. E cheguei a ele quando ser comunista significava não apenas combater o fascismo, mas fazer a revolução mundial. Ainda pertenço ao final da primeira geração de comunistas, aqueles para quem a Revolução de Outubro era o ponto de referência central no universo político." Portanto, ele escreve, "para alguém que aderiu ao movimento no lugar de onde vim e quando o fiz, simplesmente era mais difícil romper com o partido do que para aqueles que vieram depois e de outros lugares".
Essa é certamente a simples verdade biográfica, bem colocada. Mas, se tanto a emergência quanto a esperança que o levaram ao movimento comunista foram mais intensas do que era habitual entre seus contemporâneos ingleses, é menos claro que o contraste cronológico teria sido mais significativo que o geográfico, como ele passa a sugerir. A Revolução de Outubro teria sido periférica para [o historiador" Christopher Hill, que entrou para o partido em meados da década de 30, aprendeu russo -como Hobsbawm explica que nunca fez- e escreveu um livro sobre Lênin? Em todo o caso, ao enunciar o que considera a maior diferença, de tempo mais que de espaço, Hobsbawm oferece outro comentário esclarecedor sobre si mesmo.
"Politicamente", diz, tendo entrado para o PC em 1936, ele pertence à era da Frente Popular, comprometida com uma aliança entre capital e trabalho, o que determinara seu pensamento estratégico até hoje; "emocionalmente", porém, como um convertido adolescente na Berlim de 1932, ele permaneceu ligado à agenda revolucionária original do bolchevismo.
Essa é uma dicotomia que teve mais de uma influência em sua obra como um todo.
Mas, se esses foram os profundos motivos biográficos pelos quais Hobsbawm continuou sendo comunista depois de 1956, ainda seria de esperar que outras avaliações políticas mais comuns também tivessem atuado. Pois afinal a desestalinização não parou naquele ano. Com a derrota de Malenkov e Molotov no verão de 1957, Kruschov a promoveu ainda mais vigorosamente na União Soviética.
Os campos de trabalho foram esvaziados, os padrões de vida, melhorados, o debate intelectual, reanimado, a solidariedade, estendida ao último capítulo da revolução mundial, no Caribe. Novas medidas para limpar o registro do passado foram tomadas no 22º Congresso do partido, em 1961.


Texto Anterior: Frente Popular
Próximo Texto: Hobsbawm, vida e obra
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.