São Paulo, domingo, 03 de novembro de 2002

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FRENTE POPULAR


O que falta -foi deliberadamente evitada- é uma tentativa de unir esses elementos esparsos de um jovem revolucionário em uma síntese interior; conforme a narrativa avança, o preço da crescente exteriorização é a dispersão


A cena apresentada é convincente, mas essencialmente genérica. Do caminho pessoal de Hobsbawm através dela, pouco nos é informado: nada sobre seu desenvolvimento intelectual, virtualmente nada sobre sua vida emocional, quase nenhuma pista de suas idéias políticas. O pronome persistente é agora o anônimo e geracional "nós". A primeira pessoa do singular é reservada para momentos menos carregados, como quando um "cursus" mais convencional é abordado: "Meu último período, maio-junho de 1939, foi muito bom. Editei a "Granta", fui eleito para os Apóstolos e tive um primeiro lugar estrelado nos Tripos [exames de graduação em Cambridge", o que também me deu uma bolsa no King's".
Exatamente quão enganadora deve ser essa supressão da subjetividade pode ser visto no curioso deslocamento de episódios decisivos dessa fase da vida do autor para capítulos muito posteriores, separados por centenas de páginas de relato de seus anos de estudante.
Perto do final do capítulo sobre Cambridge, as férias de verão passadas em Paris, trabalhando com James Klugmann para uma organização de frente do Comintern [abreviatura para "Internacional Comunista" ou "Terceira Internacional", fundada em Moscou em 1919", e a futura historiadora Margot Heinemann são citadas casualmente.
Sobre o primeiro, Hobsbawm comenta obscuramente: "O que se sabia a seu respeito? Ele nada revelava"; da última, diz simplesmente: "Provavelmente teve mais influência sobre mim que qualquer outra pessoa que conheci", e, depois desse breve tributo, ela nunca mais aparece. É somente quando se chega a um conjunto de reminiscências finais sobre diversas partes do mundo que Hobsbawm visitou, no fim do livro, que -sob os títulos objetivos de "França" e "Espanha"- se insinua uma percepção dos sentimentos particulares que poderiam existir por trás dessas frases entrecortadas.
Pois não há nada no relato de Cambridge que se aproxime da paixão de sua descrição da comemoração da Queda da Bastilha no primeiro ano da Frente Popular [coalizão socialista, liderada por Léon Blum, que venceu as eleições de 1936", quando ele percorreu uma Paris em festa no caminhão de uma equipe de cinegrafistas do Partido Socialista Francês -"Foi um dos raros dias em que minha mente estava no piloto automático. Eu apenas sentia e experimentava"-, depois bebeu e dançou até de madrugada: um transe bem diferente da marcha fúnebre em Berlim.
Seria estranho se essas temporadas em Paris, trabalhando como tradutor no que era então o núcleo de todas as redes do Comintern na Europa, rodeado pelo fermento da Frente Popular, não significassem mais para ele do que as tarefas do partido no Clube Socialista em Cambridge. Talvez devido a alguma associação inconsciente, nesse outro ambiente -em uma memória que, fora isso, é rigorosamente silenciosa sobre esses assuntos- ele até confidencia, atipicamente, sua iniciação sexual, "numa cama rodeada de espelhos" em um bordel perto do Boulevard de Sébastopol. Antes, aventurando-se em uma entrada ilegal na Espanha pouco depois do início da Guerra Civil, aproximadamente na época em que John Cornford se alistou em Barcelona, ele pensou em pegar em armas pela República?
Mais uma vez, a página em que ele se questiona retrospectivamente sobre essa possível encruzilhada tem uma profundidade e uma beleza enigmáticas, que se destacam da opaca história inglesa. O que falta -foi deliberadamente evitada- é uma tentativa de unir esses elementos esparsos de um jovem revolucionário em uma síntese interior. Conforme a narrativa avança, o preço da crescente exteriorização é a dispersão.
Cronologicamente, depois de Cambridge veio a Segunda Guerra: uma experiência relativamente vazia para Hobsbawm, do que ele se queixa com legítima amargura. O Departamento da Guerra o confinou a um regimento de minas, até que foi enviado para Cingapura e então para funções menores na Inglaterra, no Corpo Educacional, provavelmente porque ele vinha da Áustria, tanto quanto porque era um comunista. Mas, de sua época com os engenheiros de minas, ele aprendeu a apreciar em primeira mão as tradicionais qualidades dos operários ingleses, pelos quais criou uma "admiração permanente, embora exasperada", o início de uma simpatia imaginosa que marcou tudo o que escreveu desde então sobre as classes populares.
A aguda insegurança econômica, às vezes próxima da penúria, de seu passado em Viena de qualquer forma o teria aproximado mais da experiência proletária do que a maioria dos intelectuais ingleses de sua geração.
Foi também durante a guerra que ele se casou pela primeira vez, com uma colega comunista, uma funcionária pública sobre quem ele quase nada diz.
Depois de ser desmobilizado tardiamente, começou a trabalhar como historiador e logo conseguiu um emprego no Birkbeck College, em Londres. Mas, então, viu o que deveria ter sido uma carreira brilhante -depois de um começo tão promissor no King's College- desviada de seu caminho natural pela Guerra Fria, quando todos os comunistas tiveram as promoções congeladas. Ele dá a entender, de maneira digna, sua mágoa diante da negação dos cargos permanentes que, no devido tempo, poderia ter esperado em Cambridge.
Mas, lendo nas entrelinhas, seu relato desse desvio na carreira contém alguns mistérios. Ele revela que não apenas participou da reconstituição dos Apóstolos -um grupo de iniciados, se jamais existiu um- depois da guerra como, na verdade, foi o organizador da sociedade e continuou recrutando estudantes até meados da década de 50. Havia alguma conexão entre esse papel e a bolsa que ele recebeu no King's em 1949, não antes, mas no auge da Guerra Fria, ou a prestidão com que lhe cederam alojamentos confortáveis, o que ele mesmo comenta, quando seu casamento terminou? Um indício de que poderia haver mais do que parece nessa história é sugerido por uma ausência intrigante: o nome de Noel Annan, colega e mais tarde diretor do King's, um amigo próximo, não aparece nela.
Se em princípio esses assuntos têm seu lugar numa autobiografia, de outro modo são de importância superficial. A carga principal do tratamento dado por Hobsbawm a esses anos é política. Três capítulos substanciais são dedicados a explicar o que significava ser comunista nessa época, fora ou dentro do poder; os problemas que surgiram para os comunistas britânicos devido à evolução do sistema soviético durante a Guerra Fria; e como a desestalinização detonou uma crise no PC britânico que o deixou como um dos poucos intelectuais restantes no partido. Repetidamente, ele volta à pergunta: por que ficou até o amargo fim?


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