São Paulo, domingo, 03 de novembro de 2002

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

"O Grau Zero do Escreviver" reúne textos do poeta, crítico e tradutor José Lino Grünewald sobre temas como cinema, música e televisão

Perambulação com rumo certo

O Grau Zero do Escreviver
286 págs., R$ 32,00 de José Lino Grünewald. Org. de José Guilherme Corrêa. Ed. Perspectiva (av. Brigadeiro Luís Antônio, 3.025, CEP 01401-000, SP, tel. 0/xx/11/3885-8388).

José Geraldo Couto
Colunista da Folha

José Lino Grünewald (1931-2000) foi poeta, tradutor, crítico e, acima de tudo, um pensador da cultura, um homem sintonizado com as grandes questões da linguagem e da comunicação em nossa época. Em "O Grau Zero do Escreviver", organizado por José Guilherme Corrêa, reúne-se uma parte relevante dos textos que Zé Lino (como era chamado pelos amigos e admiradores) publicou na imprensa entre o final dos anos 50 e o final dos 90. São artigos, resenhas, trechos de entrevistas e pequenos ensaios que dão testemunho de uma inteligência viva e multifacetada. Além de seu campo principal de interesse -a literatura e, dentro dela, a poesia-, Grünewald dedicou-se também a pensar e discutir o cinema, o teatro, a música, a televisão, o comportamento, a propaganda etc. De "O Grau Zero do Escreviver" estão excluídos seus personalíssimos textos sobre cinema, reunidos em outro volume, "Um Filme É um Filme", organizado por Ruy Castro e lançado em 2001 pela Companhia das Letras.

Coerência básica
Por trás da multiplicidade de temas abordados na atual coletânea -das teorias de Ernst Cassirer aos programas televisivos de humor-, é possível constatar a coerência básica do autor, empenhado em demolir falsas fronteiras entre "alta" e "baixa" culturas e em defender a integração entre proposta e forma no fazer literário e artístico. É essa atitude antiacadêmica e sem preconceitos, essa abertura à invenção artística, venha ela de onde vier, que permite ao crítico, por exemplo, considerar Noel Rosa e Orestes Barbosa poetas mais importantes que Augusto Frederico Schmidt. Ou então de fazer aproximações audaciosas, como as que estabelece entre o cinema de Alain Resnais e a poesia de Mallarmé ou entre os "tempos mortos" de Virginia Woolf e o dos filmes de Antonioni. Do mais sofisticado conceito de Peirce [filósofo norte-americano, 1839-1914" à mais coloquial piada de bar, tudo serve de alimento para a reflexão inquieta de Grünewald, mas algumas idéias básicas conferem um rumo seguro a essa aparente perambulação intelectual. Tais diretrizes estão configuradas em certas citações repetidas à exaustão. Em especial: "O poeta é a antena da raça" (Pound), "Poesia não se faz com idéias, e sim com palavras" (Mallarmé), "A poesia é a fundação do ser pela palavra" (Heidegger). Com essas réguas e compassos, Grünewald traça suas afinidades e antipatias estéticas e faz sua leitura particular da história literária.

Leitura autônoma
Se essa leitura é bastante próxima daquela que fazem os concretistas, tem também bastante autonomia e originalidade para defender, na contramão daqueles, uma revalorização da poesia de Mário de Andrade ou para realçar a importância de poetas surrealistas como André Breton e Robert Desnos. Até o caudaloso Neruda, uma espécie de antípoda dos concretos, tem sua lírica valorizada criticamente pelo autor. Os textos mais densos e estimulantes de "O Grau Zero do Escreviver" são aqueles em que Grünewald se debruça sobre algum autor de sua predileção e opera uma leitura ao mesmo tempo rigorosa e apaixonada de sua obra. É o que faz, por exemplo, ao analisar os "minipoemas" de Lorca, naquele que é talvez o mais belo artigo do livro. Ou então no generoso panorama das várias fases e faces da produção de Carlos Drummond de Andrade ("Drummond no Processo"). Ou ainda no instigante paralelo entre o cinema de Resnais e a poesia de Mallarmé.

Escolhos no caminho
Pena que a edição do volume não tenha obedecido ao cuidado que os textos merecem e que a coleção "Debates", da ed. Perspectiva, costumava respeitar.
Os erros de revisão são frequentes e irritantes, não raro dificultando ou mesmo impossibilitando a compreensão do texto. Alguns exemplos de trocas absurdas: "nomes" por "no mês" (pág. 93), "alentado" por "alenta-o" (pág. 95), "sombras" por "sobras" (pág. 96), "she" (ela) por "ahe" (pág. 142).
Com tantos escolhos no caminho, a leitura da prosa -sempre tão agradável- do autor torna-se um exercício constante de interpretação e adivinhação. Pensando bem, talvez o autor até visse nisso mais um motivo para rir.


Texto Anterior: Experiências oníricas na Grécia Antiga
Próximo Texto: lançamentos
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.