São Paulo, domingo, 4 de janeiro de 1998.



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LIVROS
Um país chamado São Paulo


'Sentido da Formação' analisa Lúcio Costa, Antonio Candido e Gilda de Mello e Souza


GILBERTO VASCONCELLOS
especial para a Folha

Do ponto de vista cultural, a abordagem paulistocêntrica da realidade brasileira (excluindo outras interpretações que não sejam oriundas de São Paulo) é um epifenômeno do modelo multinacional de desenvolvimento implantado com o golpe de 1964, a partir do qual São Paulo, como dizia Darcy Ribeiro, desempenhará o papel de neocolonizador dos Brasis pobres.
Para não me acusarem de eterno espírito de porco ressentido, como se eu fosse um ingrato dissidente paulista, espécie de Richard Morse da mogiana, recordemos que desde 1993, lá em Tóquio, os países ricos (G-7) escolheram São Paulo para ser (junto com Bancoc, Kuala Lumpur, Jacarta, Cingapura) "Estado regional", com objetivo de ingressar algum dia no rol dos Estados-membros da Organização Econômica para a Cooperação e Desenvolvimento (OECD), o que levou o físico nuclear J.W. Bautista Vidal a perguntar: então, 1932 está sendo revivido nesta babaquice niuliberal?

A OBRA
Sentido da Formação - Paulo Eduardo Arantes e Otília Beatriz Fiori Arantes. Ed. Paz e Terra (r. do Triunfo, 177, CEP 01212-010, SP, tel. 011/223-6522). 136 págs. R$ 19,00.



Diga-se de passagem que uma abordagem é paulistocêntrica não por tematizar assuntos ou autores de São Paulo, a grande cidade que não está contudo imune ao provincianismo em sua vida cultural; de resto, cosmopolitismo não é incompatível com atitude provinciana.
Nas últimas décadas, já virou norma de bom gosto e inteligência tecer elogios ao livro "Formação da Literatura Brasileira" (1959), do crítico Antonio Candido. Longe de mim querer aqui insinuar que tal obra não mereça ser fartamente elogiada; todavia o que me intriga é o sistemático esquecimento de outros autores nacionais importantes, a exemplo de um Gilberto Freyre e, sobretudo, de um Nelson Werneck Sodré, o historiador da literatura brasileira e autor de "Formação Histórica do Brasil", cujo tema é também o "sentido de formação", o mesmo tema, aliás, do ensaio escrito a quatro mãos por Otília Fiori e Paulo Arantes, de cujas páginas está ausente no entanto a questão do colonialismo.
E, por falar em ausência (ausência que às vezes é tudo, conforme queria Padre Antônio Vieira), convém sublinhar que as luzes do paulistocentrismo nunca se dão conta do paralelismo desigual, na cultura brasileira, entre Mário de Andrade e Luís da Câmara Cascudo. O primeiro sendo objeto de estudo em mil teses universitárias, enquanto o segundo não tem a menor mídia nos cursos de letras e ciências humanas, embora tivesse sido publicado pela primeira vez por Monteiro Lobato em São Paulo. Ora, Cascudinho é o estudioso do "sentido de formação" naquilo que o Brasil possui de mais rico e vigoroso: o folclore. Que outra formação sociocultural engendrou um magnífico dicionário do folclore como o de Luís da Câmara Cascudo? Surpreendente verificar que até mesmo em Alfredo Bosi há ruído na palavra folclore: "Sombras folclorizantes".
Em outros trabalhos de Paulo Arantes, posteriores a 1992, observa-se a recorrência à trindade uspiana (Antonio Candido, Roberto Schwarz, Fernando Henrique Cardoso) para explicar o drama dos intelectuais brasileiros divididos, dilacerados ou malandramente acomodados, entre o "localismo" e o "cosmopolitismo", tendo como pano de fundo o caráter inorgânico de como as idéias aparecem e desaparecem entre nós, malgrado o enfoque de Paulo Arantes, que se inclina menos à tradição de Sílvio Romero do que a de Joaquim Nabuco, assim como nessa preferência nacional universitária Machado de Assis acaba sempre ganhando de dez a zero do romântico José de Alencar.
Em Paulo Arantes se repete a mania comparativista que persegue a USP do além-mar: o confronto lá e cá, o esquizofrênico contraponto entre trópicos e Europa. Daí resulta uma atitude mental do vaivém, perpétuo e melancólico, porque desse modo digital de interpretar a cultura na "periferia capitalista", o Brasil não deixa de ser concebido sob o registro baixo-astral: "País tão mal-acabado", "sociedade deprimida pela própria imagem", ou senão "pátrios prejuízos", "formação cultural defeituosa". Eis a retumbante conclusão: "Afinal periferia e envergadura intelectual não costumam andar juntas". Enfim, é o retrato da cultura brasileira para baixo, mas sem o delírio antropológico alucinado dos tristes trópicos do paulista Paulo Prado.
Do livro de Otília e Paulo Arantes, "Sentido da Formação", o capítulo que me comoveu foi sobre a arquitetura de Lúcio Costa. Isto porque, no conjunto do livro, quanto mais longe os autores se mantém da resignada sociologia aduaneira da USP -e próximos do viés estético de Gilda de Mello e Souza- o "sentido de formação" se salva do esnobe neomazombismo da impotência colonizada. A propósito, convido o leitor a curtir o belo ensaio escrito individualmente por Otília. Gostei muito do elogio que ela faz ao surto cultural criativo sob a vigência do Estado Novo, na exata medida em que lamenta a ocorrência do golpe de 64 para a arquitetura, assim como reporta nossa atenção à nefanda desestatização da atual sociedade brasileira com os seus efeitos culturalmente obscurantistas.
É uma pena que Otília faça uso amiúde do raciocínio contrapontual abstrato, extraído da economia política, aquilo que poderia denominar-se dialética chiclete de bola entre "centro avançado e periferia retardatária", o que redunda inevitavelmente na síndrome depressiva do "país ainda mal-acabado".
Otília Fiori Arantes acerta a mão num aspecto fundamental: esteticamente (Lúcio e Oscar são o Marx e o Engels da arquitetura dos anos 30), a ditadura estadonovista de Getúlio Vargas foi muito mais fecunda do que está sendo a democracia desnacionalizada da década de 90: a democracia das perdas patrimoniais e do adeus ao território.


Gilberto Felisberto Vasconcellos é professor de ciências sociais da Universidade Federal de Juiz de Fora (MG) e autor de "O Príncipe da Moeda" (Ed. Espaço e Tempo), entre outros.



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