São Paulo, domingo, 04 de fevereiro de 2001

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+3 questões Sobre política cultural

1. É possível conciliar a cultura com as regras do mercado?
2. A lei atual de incentivo à cultura obteve algum resultado?
3. Que tipo de atuação do Estado na esfera cultural é adequada?


Sebastião Milaré
responde
1.
Conciliar, é provável; subordinar é que não. Especialmente no que diz respeito à criação artística. Subordinar a criação às regras do mercado é uma boa maneira de impedir o desenvolvimento das artes e impor como expressão apenas o entretenimento, as linguagens já assimiladas. Especialmente o teatro fica condenado à estagnação se não tiver incentivo oficial e ficar na dependência da oferta e da procura.

2.
Seria necessário falar de "leis de incentivo", já que elas existem nos planos federal, estadual e municipal. Têm, de fato, beneficiado algumas áreas, como o patrimônio histórico, mas beneficiam muito pouco a criação artística. Incidem no grave problema que é desviar para a iniciativa privada a decisão de quais projetos devem ou não receber benefícios, embora se trate de dinheiro público. De maneira que a produção artística fica a reboque de interesses não comprometidos de fato com a cultura, e o incentivo vai, geralmente, para quem dele menos necessita.

3.
Esse é um tema bastante polêmico, que tem gerado muitos debates. O movimento da "Arte contra a Barbárie", por exemplo, vem agitando essa discussão. Mas, grosso modo, seria desejável que o Estado desenvolvesse políticas culturais eficientes, que contemplassem as necessidades legítimas do realizador artístico, e atuasse de modo decisivo e positivo no núcleo da questão, estimulando a pesquisa e a busca de novos horizontes para a arte. Que ele atuasse também no sentido de aprimorar o gosto do público, a sensibilidade do fruidor do produto estético. Falta-nos, infelizmente, um Gustavo Capanema à frente dos assuntos culturais.


Alain Fresnot
responde
1.
É possível, mas a cultura ficará pobre, conformista, sujeita a modas e a trovoadas. Coisas boas serão feitas, mas a maior parte dependerá do humor dos fracos publicitários que ocupam muitos dos departamentos de marketing, das "vocações" das empresas, e quais são essas? A empresa que destruiu o rio Nilo quer filmes sobre água limpa, o conglomerado financeiro quer árvores floridas e a vocação da terceira é o "hobby" do presidente.
A cultura do arroz atende às regras do mercado, a cultura do feijão também. E os subnutridos?

2.
A atual lei de incentivo... são várias. Algumas melhores, outras piores. Algumas fáceis, outras difíceis. Devo a elas a possibilidade de filmar. Graças à Lei Rouanet, a Distribuidora BR me permite fazer o "Desmundo", graças à Lei do Audiovisual o Banespa apóia o filme, assim como apoiou o "Castelo Rá-Tim-Bum", "Kenoma" e "Através da Janela" -e com ele outras tantas empresas. A Lei Marcos Mendonça já alavancou muitos bons e importantes projetos em todas as áreas. Leis de incentivo? Ruim com elas, muito pior sem.

3.
O Estado, por ação ou omissão, está sempre ditando uma política cultural. Há dois modelos mais ou menos delineados: o norte-americano, com muita intervenção privada, muitas fundações sólidas e com objetivos precisos, e o francês, com intervenção estatal em todas as áreas da cultura, regulamentando, controlando de perto as alterações do mercado para corrigir distorções, desequilíbrios. Nos dois casos há muito dinheiro investido.
Aqui há uma tradição de dirigismo e vassalagem desde Gustavo Capanema, uma elite ínfima, escravocrata e pouco educada, o que inviabiliza um verdadeiro modelo norte-americano. O modelo francês esbarra na falta de recursos, de tradição republicana, e na corrupção endêmica. Há que aproveitar o melhor dos dois modelos. O vigor que estamos vendo na discussão teórica que contrapõe os dois é patético. Há mais o que fazer. A atuação adequada do Estado na esfera cultural é vigorosa e democrática, mas infelizmente faltam recursos para tal; onde eles estão?

quem são

Sebastião Milaré
É jornalista, crítico e pesquisador de teatro, além de assessor técnico em artes cênicas no Centro Cultural São Paulo. Escreveu "Antunes Filho e a Dimensão Utópica" (ed. Perspectiva).

Alain Fresnot
É cineasta, dirigiu, entre outros, "Lua Cheia" e "Ed Mort" e produziu "Castelo Rá-Tim-Bum" e "Através da Janela". É diretor e co-roteirista de "Desmundo", filme com previsão de ser finalizado até o fim do ano.

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