São Paulo, domingo, 04 de fevereiro de 2001

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Para filósofo francês, as modelos exemplificam a nova condição da mulher, reabilitada na pós-modernidade e liberada dos estereótipos de sedutora ou de submissa

A beleza positiva das top models



Caio Caramico Soares
da Redação



A depender do filósofo e sociólogo francês Gilles Lipovetsky, eventos como o São Paulo Fashion Week (que ocorre na Fundação Bienal, em SP, até amanhã) poderiam ser vistos como uma expressão ritual de um traço típico da pós-modernidade: a "terceira mulher". Esta, emancipada dos estereótipos de "Eva" (a temível sedutora) e de "Amélia" (a doce rainha do lar), tenderia à igualdade de gênero, no plano social, e à livre autoconstrução simbólica -livre a ponto de poder se utilizar, quando e como lhe conviesse, de atributos de feminilidade antes impostos pelos homens.
Professor na Universidade de Grenoble e autor de livros como "A Terceira Mulher" e "O Império do Efêmero" (ambos lançados no Brasil pela Companhia das Letras), Lipovetsky explica, a seguir, o que tornaria as top models "modelos" não só para figurinos luxuosos, mas também de uma era em que, assim como "a beleza é política", como denunciam as feministas, igualmente a política -no caso, a ascensão das mulheres- se faz celebração estética.
O sr. crê haver algo mais do que uma retórica vazia no fato de mulheres bonitas, sobretudo as top models, serem tão habitualmente denominadas, na linguagem da mídia e do senso comum, "musas" ou "deusas"?
A utilização de termos como "musa" ou "deusa" para designar as top models me parece um total contra-senso. Em primeiro lugar, porque, tradicionalmente, a musa é uma mulher cuja beleza é uma inspiração mágica exercida sobre um homem -a pessoa do poeta. O contexto das top models é totalmente diferente: é às mulheres que sua inspiração se dirige, o seu verdadeiro público é feminino. Em segundo lugar, porque as top models e suas fotografias de moda já não inspiram discursos poéticos. O que as top models geram é, essencialmente, uma prática. É uma beleza que convida seu público -as mulheres- a se transformar, a fazer cirurgias estéticas, ginástica, regimes para se manter magra, jovem, sem rugas. Trata-se, pois, de uma imagem de beleza ligada à ação pragmática, não poética.
Se não são um retorno às imagens sagradas da beleza feminina, as top models poderiam ser consideradas o protótipo da "terceira mulher"?
Sim. Em vários sentidos. Pela notoriedade que lhes permitiu ganhar muito dinheiro e que, ao mesmo tempo, desvinculou a beleza feminina do estereótipo da não-inteligência, da "aparência" meramente superficial e idiota. Hoje em dia, a top model fala à mídia, dá opiniões sobre questões políticas e sociais, sobre o amor etc. Daí ser uma expressão da "terceira mulher". Além do mais, a atual imagem de beleza feminina, de que as top models são a encarnação por excelência, não tem senão aspectos positivos.
Isso é algo totalmente novo, pois a mulher, por exemplo, a musa da antiguidade, era revestida de um poder negativo; sua beleza, então, era digna de suspeita, era associada ao abismo, era algo sombrio, que precipitava os homens no calvário e na morte. Hoje, com sua reabilitação pós-moderna, a beleza é associada a valores como a juventude, a riqueza, o luxo; foi totalmente positivada, perdendo seus laços com o mal. Agora o único aspecto negativo da beleza feminina está no ódio que as mulheres podem nutrir por si mesmas, por seus corpos, ao compararem o que elas são com as imagens perfeitas das top models.
Nesse sentido, estariam certas as feministas, que vêem no atual culto à beleza uma nova faceta de opressão?
Tal questão comporta várias dimensões. Sem dúvida, há um aspecto negativo na jovem que deixa de lado os estudos, o trabalho, em nome de uma ilusão -a de se tornar top model- inacessível senão a uma entre milhares de pessoas. E há muitas jovens, sobretudo das classes populares, que caem nessa grande armadilha hoje em dia -penso que, por exemplo, no Brasil, é muito importante esse aspecto. Mas é importante não exagerarmos. As mulheres, mesmo desejando se manterem belas, não se iludem muito com as top models, sabem que o que se vê nas imagens retocadas por meios eletrônicos não exprime a realidade. Sabem, acima de tudo, que a beleza não é o único fator essencial da existência. A beleza é algo de positivo, todos estão de acordo -estão erradas, pois, as feministas que dizem que a beleza nada significa; ao contrário, ela tem um valor, é algo fascinante, mas não é a única coisa que conta. Daí que a possibilidade de estudar, trabalhar, de ser amada, importa mais às mulheres do que as imagens de top models. Ainda segundo a crítica feminista, estaríamos diante de
um novo tipo de "ascetismo", mesmo que desvinculado de um discurso religioso explícito...

Concordo que haja no culto à estética um componente de ascetismo, mas não de todo negativo para as mulheres, porque elas são compelidas a se observar, se estudar, se controlar, fazer ginástica, comprar dados produtos... E qual é o resultado disso? O resultado é que hoje uma mulher de 50 anos é bem diferente de uma mulher da mesma idade de um século atrás. A mulher atual permanece jovem por bem mais tempo, tem, pois, uma capacidade de sedução bem mais longeva. É um ascetismo voltado à conservação da beleza e da saúde da mulher, um instrumento para que as mulheres finalmente se aproximem dos homens.
Por quê?
Porque, tradicionalmente, os homens tinham um poder de sedução bem mais duradouro que o das mulheres, o que hoje não acontece tanto.
É correto deduzir de seus argumentos que o corpo feminino em forma, a "magreza", é uma virtude tipicamente "democrática", enquanto o corpo robusto é um atributo "aristocrático", pré-moderno, ligado à mulher "domesticada"?
Sim, absolutamente. A era democrática é, para mim, uma das forças que levaram ao atual culto da magreza. Isso porque, em seu sentido mais profundo, a era democrática não é senão a era da soberania -da soberania dos seres humanos sobre o mundo. Ora, a magreza é também uma exigência de soberania sobre o próprio corpo. Exaltava-se na mulher o corpo gordo quando ela era associada sobretudo à maternidade; sua identidade estava em pôr crianças no mundo. Na era democrática, porém, o que dá identidade às pessoas é a sua autonomia, a liberdade, e a mulher não é mais tão associada à maternidade. É muito simplista a percepção das feministas que "denunciam" as top models. O culto à magreza é um fenômeno com causas e razões bem mais complexas, não é algo recente, se desenvolveu ao longo de todo o século 20. A exortação à magreza já existe nas "estrelas" hollywoodianas dos anos 30, por exemplo em Greta Garbo (1905-90), que era extremamente magra. Não se trata de uma simples moda, e sim do correlato da era democrática e individualista.
Mas o sr. não acredita que o culto à magreza e à beleza em geral não são só um sinal de aproximação, mas também de separação entre homens e mulheres, à medida que elas se mantêm presas à lógica da "sedução", distinta da que tende a gerir a sociedade burocrática e racional?
Sim... mas deixe-me colocar a questão de outro modo. O discurso tradicional das feministas é o da denúncia da tirania, do despotismo da beleza sobre as mulheres. Isso é parcialmente verdadeiro. Hoje, sobretudo pelas imagens de top models nos veículos de mídia femininos, as mulheres acham seu corpo mais importante do que nunca, daí os regimes, as ginásticas, a auto-imagem ruim (é comum, nas pesquisas, que elas digam que se acham gordas, que têm celulite etc.). Nisso há um reforço da norma, do controle, dos imperativos do corpo. Mas, ao mesmo tempo, o ideal da beleza, a moda, é hoje menos tirânico do que já foi, pois, antes, ele mantinha -e aqui chego à sua questão- a mulher exclusivamente na esfera privada.
A beleza já não impede a mulher de estudar, de trabalhar, de ter responsabilidades políticas, já não inferioriza nem prende a mulher à esfera privada, ao contrário, pode facilitar para a mulher o sucesso na esfera pública. É verdade que os valores estéticos exprimem uma forma de socialização da mulher que é distinta da que é reservada aos homens e é valorizada na esfera pública. Mas isso é apenas uma tendência, não exclusiva, e que hoje é contrabalançada pela inserção da mulher que, ao estudar, assume um comportamento mais competitivo.
O sr. conhece a top model brasileira Gisele Bündchen?
Creio que sim...mais ou menos...
Além de aclamada como a atual "número um" do mundo, ela é considerada símbolo de uma tendência na moda atual, de rejeição do protótipo da magreza extrema...
Sim, sim, creio que será muito bom se a moda diversificar os tipos de beleza. E isso deverá mesmo acontecer, pois a cultura pós-moderna aspira a algo mais emocional, mais sensível. Ao mesmo tempo, há uma "refeminização" do feminino, estamos longe do padrão "Twiggy" dos anos 60, de mulheres que não querem seios etc.
A época da "terceira mulher" permite esse retorno, pois é uma época em que a mulher se reapropria da identidade feminina -e esta inclui a forma do feminino. Daí surgir um modelo de mulher que não nega a feminilidade. Ocorre hoje -mesmo que se mantenha também um padrão de mulher muito magra- uma emancipação da modelo feminina, algo, aliás, que creio ser um sonho dos homens, o que mostra que a imagem das top models pode se dirigir, em parte, também aos homens, que amam as formas femininas.
Gilles Lipovetsky

"A musa da antiguidade era revestida de um poder negativo; sua beleza era digna de suspeita, era associada ao abismo, era algo sombrio, que precipitava os homens no calvário e na morte; hoje, com sua reabilitação pós-moderna, a beleza é associada a valores como a juventude, a riqueza, o luxo; foi totalmente positivada, perdendo seus laços com o mal"


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