São Paulo, domingo, 04 de fevereiro de 2007

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Marxismo próprio

Historiador distingue o pensamento do autor entre os marxistas brasileiros

LINCOLN SECCO
ESPECIAL PARA A FOLHA

Até os anos 1960, o marxismo no Brasil foi uma cópia malfeita da produção teórica autorizada pela União Soviética. O próprio conhecimento das obras de Marx era muito pequeno e sua interpretação era invariavelmente mecanicista.
Caio Prado Jr. foi uma notável exceção porque foi capaz de combinar suas leituras de Marx com o meio cultural dos anos 20 e 30, caracterizados pela rejeição de tudo aquilo que parecia oficial e autorizado em termos estéticos, políticos e científicos.
Como primeiro marxista brasileiro, ele só teve antecedentes em figuras menos conhecidas e que tentaram, sem o mesmo sucesso que ele, interpretar a realidade brasileira à luz dos conceitos de Marx.
Esse fora o caso de Octávio Brandão, autor de "Agrarismo e Industrialismo" (ed. Anita Garibaldi) e dos trotskistas Lívio Xavier e Mário Pedrosa, autores do "Esboço de uma Análise da Situação Econômica e Social do Brasil". Caio Prado Jr. tentou desde cedo interpretar sem copiar.

Teoria e prática
Numa carta ao próprio Lívio Xavier de 20 de setembro de 1933, ele escreveu: "É um critério absolutamente errado este de procurar enquadrar artificialmente os fatos brasileiros nos esquemas que Marx traçou para a Europa". E foi isso que procurou evitar em sua obra.
Como marxista engajado e virtualmente excluído da vida acadêmica regular, ele tinha que unir teoria e prática. Por isso, além de escrever livros de história, Caio Prado se envolveu em muitas outras atividades em que procurava contribuir para uma atitude política radical em face de um Brasil que teimava em reproduzir suas mazelas coloniais.
Relatos de viagens aos países socialistas, artigos sobre questão agrária, livros sobre filosofia marxista e economia nacional foram escritos enquanto o autor dava palestras para públicos amplos e participava da vida partidária, fosse pela Aliança Nacional Libertadora, fosse pelos comitês de ação em São Paulo (ligados ao Partido Comunista Brasileiro) durante a fase em que o partido esteve praticamente sem nenhuma direção, já que Luís Carlos Prestes estava na prisão.
Finalmente, ele foi deputado estadual em São Paulo (em 1947), mas seu mandato logo seria cassado juntamente com o próprio Partido Comunista.

Disputa com historiador
Apesar de toda essa militância ele nunca teve sua obra bem aceita pelo partido. Historiadores mais afinados com a política oficial do PCB não deixaram de o criticar em diferentes épocas, fosse por não explicitar o uso de conceitos marxistas, fosse por disputas no campo da historiografia engajada.
Assim, Leôncio Basbaum, que, ao contrário de Caio Prado, tinha sido um importante teórico do partido no início dos anos 30, considerava algumas páginas de sua "História Econômica do Brasil" (referentes à colonização dos EUA) dominadas pelo determinismo geográfico e opostas à visão de Marx, como afirmou em sua "História Sincera da República" (Alfa-Omega).
Nelson Werneck Sodré, por outro lado, admirava a "Formação do Brasil Contemporâneo" como o melhor livro já escrito sobre o nosso período colonial, conforme disse no seu livro "O Que se Deve Ler para Conhecer o Brasil" (Bertrand Brasil), mas não o considerava marxista, e sim um exemplo de ecletismo (no jargão dos comunistas da época isso queria dizer que se tratava da pior das filosofias).
Sodré era oficial militar de carreira e tinha se tornado, simplesmente, a única voz "autorizada" em matéria de história no interior do partido, embora não fosse um membro filiado. A relação com Caio Prado Jr. era honesta e cordial, mas eles divergiam totalmente na caracterização do passado colonial do Brasil.
Assim como Sodré, o próprio partido acreditava na vigência de um passado feudal no Brasil, enquanto Caio Prado Jr. já considerava a América Portuguesa, desde o início, inserida em relações dominadas pelo capital mercantil europeu.
Mas agora ele não era mais apenas um comunista politicamente marginal no interior do partido -situava-se no centro de uma polêmica sobre as razões da derrota da esquerda.
Isso porque sua leitura do Brasil encontrava um novo ambiente cultural, e o próprio marxismo cedia lugar a uma era de vários "marxismos".
Desse modo, Caio Prado Jr. tornou-se o novo paradigma das leituras críticas do nosso passado e passou da condição de herege à de mais brilhante pensador marxista brasileiro.


LINCOLN SECCO é professor do departamento de história da USP.


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