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Marxismo próprio
Historiador distingue o pensamento do autor
entre os marxistas brasileiros
LINCOLN SECCO
ESPECIAL PARA A FOLHA
Até os anos 1960, o
marxismo no Brasil
foi uma cópia malfeita da produção
teórica autorizada
pela União Soviética. O próprio
conhecimento das obras de
Marx era muito pequeno e sua
interpretação era invariavelmente mecanicista.
Caio Prado Jr. foi uma notável exceção porque foi capaz de
combinar suas leituras de
Marx com o meio cultural dos
anos 20 e 30, caracterizados
pela rejeição de tudo aquilo
que parecia oficial e autorizado
em termos estéticos, políticos e
científicos.
Como primeiro marxista
brasileiro, ele só teve antecedentes em figuras menos conhecidas e que tentaram, sem o
mesmo sucesso que ele, interpretar a realidade brasileira à
luz dos conceitos de Marx.
Esse fora o caso de Octávio
Brandão, autor de "Agrarismo
e Industrialismo" (ed. Anita
Garibaldi) e dos trotskistas Lívio Xavier e Mário Pedrosa, autores do "Esboço de uma Análise da Situação Econômica e Social do Brasil". Caio Prado Jr.
tentou desde cedo interpretar
sem copiar.
Teoria e prática
Numa carta ao próprio Lívio
Xavier de 20 de setembro de
1933, ele escreveu: "É um critério absolutamente errado este
de procurar enquadrar artificialmente os fatos brasileiros
nos esquemas que Marx traçou
para a Europa". E foi isso que
procurou evitar em sua obra.
Como marxista engajado e
virtualmente excluído da vida
acadêmica regular, ele tinha
que unir teoria e prática. Por isso, além de escrever livros de
história, Caio Prado se envolveu em muitas outras atividades em que procurava contribuir para uma atitude política
radical em face de um Brasil
que teimava em reproduzir
suas mazelas coloniais.
Relatos de viagens aos países
socialistas, artigos sobre questão agrária, livros sobre filosofia marxista e economia nacional foram escritos enquanto o
autor dava palestras para públicos amplos e participava da vida partidária, fosse pela Aliança
Nacional Libertadora, fosse pelos comitês de ação em São
Paulo (ligados ao Partido Comunista Brasileiro) durante a
fase em que o partido esteve
praticamente sem nenhuma
direção, já que Luís Carlos
Prestes estava na prisão.
Finalmente, ele foi deputado
estadual em São Paulo (em
1947), mas seu mandato logo
seria cassado juntamente com
o próprio Partido Comunista.
Disputa com historiador
Apesar de toda essa militância ele nunca teve sua obra bem
aceita pelo partido. Historiadores mais afinados com a política
oficial do PCB não deixaram de
o criticar em diferentes épocas,
fosse por não explicitar o uso de
conceitos marxistas, fosse por
disputas no campo da historiografia engajada.
Assim, Leôncio Basbaum,
que, ao contrário de Caio Prado, tinha sido um importante
teórico do partido no início dos
anos 30, considerava algumas
páginas de sua "História Econômica do Brasil" (referentes à
colonização dos EUA) dominadas pelo determinismo geográfico e opostas à visão de Marx,
como afirmou em sua "História
Sincera da República" (Alfa-Omega).
Nelson Werneck Sodré, por
outro lado, admirava a "Formação do Brasil Contemporâneo"
como o melhor livro já escrito
sobre o nosso período colonial,
conforme disse no seu livro "O
Que se Deve Ler para Conhecer
o Brasil" (Bertrand Brasil), mas
não o considerava marxista, e
sim um exemplo de ecletismo
(no jargão dos comunistas da
época isso queria dizer que se
tratava da pior das filosofias).
Sodré era oficial militar de
carreira e tinha se tornado,
simplesmente, a única voz "autorizada" em matéria de história no interior do partido, embora não fosse um membro filiado. A relação com Caio Prado
Jr. era honesta e cordial, mas
eles divergiam totalmente na
caracterização do passado colonial do Brasil.
Assim como Sodré, o próprio
partido acreditava na vigência
de um passado feudal no Brasil,
enquanto Caio Prado Jr. já considerava a América Portuguesa,
desde o início, inserida em relações dominadas pelo capital
mercantil europeu.
Mas agora ele não era mais
apenas um comunista politicamente marginal no interior do
partido -situava-se no centro
de uma polêmica sobre as razões da derrota da esquerda.
Isso porque sua leitura do
Brasil encontrava um novo ambiente cultural, e o próprio
marxismo cedia lugar a uma era
de vários "marxismos".
Desse modo, Caio Prado Jr.
tornou-se o novo paradigma
das leituras críticas do nosso
passado e passou da condição
de herege à de mais brilhante
pensador marxista brasileiro.
LINCOLN SECCO é professor do departamento
de história da USP.
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