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BRASIL 500 D.C.
À sombra dos coqueirais
EVALDO CABRAL DE MELLO
especial para a Folha
Por dois motivos, é bem curioso
que o coqueiro se tenha tornado
uma árvore tão simbolicamente
nacional quanto o pau-brasil ou o
ipê. Em primeiro lugar, porque ele
foi transplantado da Índia; em segundo, porque, ao dominar o terraço marítimo do nosso litoral
nordestino, ele expulsou a variedade que, essa sim, era autenticamente americana, vale dizer, o cajueiro.
Originariamente, o coqueiro
surgiu entre nós no bojo de um esforço de aclimatação de espécies
vegetais do Reino e do Oriente.
Fundamental foi a esse respeito o
papel da Companhia de Jesus, cujos colégios possuíam invariavelmente suas "cercas", isto é, pomares e hortas, onde era um prazer merendar ao ar livre, como no
colégio de Olinda, "o melhor e o
mais alegre que vi no Brasil", segundo o padre Cardim, nada ficando a dever aos de Portugal.
Ademais, Olinda, como Salvador
ou o Rio, estava cingida por um
cinturão de hortas em que se cultivava toda sorte de vegetais da metrópole, inclusive de frutas de espinho.
Ao invadirem a capitania, os holandeses encontrarão "grandes e
belos pomares e hortas, nos quais
há de tudo", o que na pena de um
batavo não é pequeno elogio. Até
mesmo os moradores da modesta
povoação de Natal eram abastados
de legumes portugueses. Já se observou, aliás, a semelhança entre o
horto do colégio de Olinda e a cerca ideal imaginada pelo autor dos
"Diálogos das Grandezas do Brasil", ajudado, como leitor dos
clássicos, pelo velho tópico do jardim de delícias, herdeiro do "locus amenus". Esse devaneio estético-utilitário será realizado anos
depois pelo conde de Nassau no
seu palácio de Friburgo, numa escala com que Brandônio estava
longe de sonhar.
No tocante à incorporação de espécies nativas, enquanto os jesuítas só haviam admitido o maracujá, na cerca de Brandônio já existiam a goiabeira, o tamarineiro e o
ananás, particularmente estimados. E, entre os vegetais africanos
e asiáticos, já sobressaía o coqueiro, que inicialmente só existia nas
hortas e quintais, donde viria a se
disseminar pela franja costeira,
habitat natural do cajueiro, tão ligado à alimentação e à cultura indígena. Devido à pobreza da documentação, mal se vislumbra a verdadeira mutação da paisagem que
foi a marginalização de um pelo
outro, a qual reduziu o cajueiro à
figura de parente pobre, expulso
da linha de frente pelos cenográficos coqueirais, que se tornaram o
biombo que oferecia ao viajante a
primeira visão da terra, ao passo
que os primitivos navegantes, como Pero Lopes de Souza, haviam
enxergado apenas uma terra monotonamente baixa, bem arborizada de bosques de cajueiros e de
manguezais.
No litoral da Índia, o coqueiro
era a base imemorial de um complexo econômico e ecológico, sendo utilizado como material de
construção civil e até naval, como
nas Maldivas. Da casca, a população fazia cuias de beber; na alimentação, consumiam-se-lhe a
água e o miolo, e fabricava-se o
"copra", o azeite para os alimentos e para a iluminação. Dele também se tiravam aguardente, vinagre e açúcar. Seu óleo tinha valor
medicinal como laxativo e no
combate ao reumatismo.
Quase todos esses usos, que não
provocam surpresa no brasileiro
atual, pareciam insólitos às primeiras gerações de colonos, que
só muito tempo decorrido da aclimatação do coqueiro passaram a
contemplá-lo com olhar utilitário.
Ainda ao tempo de frei Vicente do
Salvador, a única utilização do coco consistia em comer sua polpa e
beber sua água, uso, na realidade,
essencial em áreas praieiras afastadas de água potável, a não ser da
chuva. Markgraf, ao referir as vantagens que dele se tiravam na
América hispânica e nas Filipinas,
os mesmos que Garcia da Orta
descrevera para a Índia, menciona
no Brasil apenas a utilização da
água, do leite, que já servia para
cozinhar o arroz, e das cuias feitas
da casca. Mas, como tantas outras
espécies vegetais e animais, nossos
coqueirais vieram não diretamente da Índia, mas de Cabo Verde.
No caso de Pernambuco, é até
possível datar os primeiros transplantes, pois quando Nassau ajardinou seu palácio, mandou trazer,
de três ou quatro milhas de distância, 700 pés, muitos dos quais septuagenários ou octogenários, o
que significa que as árvores datavam das décadas de 1560 e 1570.
Àquela altura, Gândavo ainda não
mencionava o coqueiro, mas pouco depois ele surgia nos pomares
dos jesuítas em Salvador, Ilhéus e
Porto Seguro. Gabriel Soares de
Souza pretenderia que o coqueiro
adaptara-se tão bem que, enquanto na Índia só produzia ao cabo de
20 anos, entre nós bastavam cinco
ou seis. Contudo, tanto ele quanto
o autor dos "Diálogos" e frei Vicente do Salvador lamentavam o
fato de os colonos do Brasil não
saberem aproveitá-lo.
O coqueiro tinha de vencer a
inércia dos hábitos da terra, que
privilegiavam os próprios vegetais. Por isso, sua primeira função
na América portuguesa foi meramente ornamental. Com esse fim,
Brandônio dispunha-se a plantá-lo no seu jardim. Para que o interlocutor não invejasse "os álamos e choupos de nosso Portugal", propunha-lhe "crescidos e
alevantados coqueiros, que não
menos zunido fazem com suas folhas açoitadas do vento". Mas foi
Nassau que tirou todo o partido
decorativo da árvore. Sendo a ilha
de Antônio Vaz a "planície sáfara" a que aludia Barléus, o conde
resolveu sombrear seu palácio
com avenidas de coqueiros, oferecendo aos habitantes o que hoje se
chamaria um espaço de lazer.
Tais alamedas, que frei Manuel
Calado comparou, decerto com
exagero, às famosas de Aranjuez,
tinham o papel de delimitar o espaço externo e interno, circunscrevendo, de um lado, a área onde
se ergueu o edifício e o mesmo jardim, e, de outro, as áreas internas
em que este último se repartia: a de
recreação, a de serviço, os pomares, a de criação de animais domésticos e os grandes viveiros.
Mas, como sugere a iconografia
holandesa, o coqueiro ainda era
bem raro, limitando-se aos núcleos de população e servindo de
decoração a uma ou outra casa-grande de engenho. Ao longo
do nosso litoral, a substituição
maciça do cajueiro pelo coqueiro,
uma verdadeira revolução ecológica, foi fenômeno de longo prazo,
que terá durado todo o século 17.
No fim da vida, Nassau recordou
suas proezas de jardineiro, gabando-se de haver plantado no Brasil,
na Alemanha e nos Países Baixos,
nada menos de 40 mil árvores de
várias espécies. Entre nós, orgulhava-se sobretudo de haver plantado 2.000 coqueiros, sem perder
uma única muda, para pasmo dos
habitantes, que nunca haviam visto o transplante de espécies tão
grandes. Nas aléias de Friburgo,
Barléus só mencionou a existência
de 700 coqueiros, mas frei Calado,
que passeou por elas, referiu-se
também a 2.000, cifra que certamente ouvira do próprio Nassau.
O provável é que esta última correspondesse ao total de coqueiros
plantados pelo governador do
Brasil holandês em todo o Recife e
não apenas no jardim do palácio.
À sua chegada, Nassau aboletara-se num casarão português, então existente no que é hoje a praça
Dezessete. Aí, antes, portanto, da
construção de Friburgo, ele criara
um horto, o "terreno dos coqueiros", atual praça da Independência, situado no interior do chamado "groot kwartier", que incluía
a área ao norte do forte Ernesto,
onde veio a ser construído Friburgo.
Evaldo Cabral de Mello é historiador e diplomata aposentado, autor, entre outros, de "Rubro Veio" (Topbooks) e "O Negócio do Brasil -
Portugal, os Países Baixos e o Nordeste,
1641-1669" (Topbooks).
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