São Paulo, Domingo, 04 de Abril de 1999
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ESTADOS UNIDOS
A substituição do cajueiro pelo coqueiro no Brasil do século 17 foi uma verdadeira revolução ecológica
O erro de Karl Marx

CARLOS EDUARDO LINS DA SILVA
da Sucursal de Brasília

Karl Marx escreveu, no prefácio de "O Capital", que "o país mais desenvolvido industrialmente mostra aos menos desenvolvidos a imagem do seu futuro". Era uma antevisão dos Estados Unidos como berço da primeira revolução socialista.
A previsão nunca realizada constrangeu teóricos marxistas por mais de século, por indicar possível deficiência básica da doutrina.
Agora, o cientista político norte-americano Seymour Lipset, um dos mais importantes do mundo, diz que, talvez, Marx não estivesse errado: com a queda da Cortina de Ferro e a globalização da economia, os EUA podem ter mostrado a todos a imagem do futuro.
O mais recente livro de Lipset, "O Socialismo nos EUA: Por Que Não Vingou?", que será lançado no Brasil antes do que nos EUA, tenta explicar as causas do fracasso do socialismo no país mais industrializado do mundo.
Em entrevista à Folha, o ex-trotskista Lipset tratou do tema. Ele esteve em Brasília na semana passada para participar de seminário do Instituto Teotônio Vilela sobre o futuro da social-democracia. O instituto, braço acadêmico do PSDB, edita nos próximos meses o livro de Lipset.
Amigo do presidente Fernando Henrique Cardoso, Lipset, 71, foi professor nas universidades Harvard e de Stanford e é atualmente pesquisador sênior no Woodrow Wilson Center, em Washington.

Folha - Por que nunca, nos Estados Unidos, um partido socialista conseguiu mais do que 6% dos votos numa eleição presidencial (em 1912), nem formar bancada parlamentar?
Seymour Lipset -
Uma razão é o sistema eleitoral. As eleições parlamentares são distritais, majoritárias. A tese do voto útil é muito prevalente. Mesmo partidos não-socialistas, como o de Ross Perot, não conseguem grande sucesso.
Folha - Mas também há razões culturais para o fenômeno.
Lipset -
Claro que sim. Os EUA têm uma fortíssima tradição libertária. O sistema histórico de valores se funda na Revolução Americana, feita contra um Estado forte, e se institucionaliza na Constituição, concebida para enfraquecer os poderes da Presidência.
Folha - Outros países começaram com revoluções contra Estados ainda mais fortes, como a Espanha, e tiveram partidos socialistas mais influentes que nos EUA.
Lipset -
Seu presidente, meu amigo Fernando Henrique, uma vez me disse que não é só nos EUA, mas em todas as Américas, que o socialismo não vai bem nas urnas. Mas é verdade que na América Latina, e mesmo no Canadá, ele se saiu bem melhor do que nos EUA.
Folha - A seu ver, por quê?
Lipset -
Eu acho que a tradição antiestatal nos EUA se origina de duas fontes fundamentais: primeiro, os princípios libertários da revolução, a que já me referi. Segundo, os princípios religiosos.
Folha - Mas há diversos países protestantes no mundo com partidos socialistas importantes.
Lipset -
Mas os EUA são o único país com a maioria da população pertencente a seitas protestantes, não a igrejas. As seitas (batista, metodista, mórmon, evangélicas) são antiestatais, congregacionais, promovem o individualismo. As igrejas (luterana, anglicana) são hierarquizadas, corporativistas, mais vinculadas ao Estado.
Folha - E a questão da estrutura de classes? Gramsci falava dos EUA como um país só burguês.
Lipset -
Não só ele. Em 1890, Engels falava que os EUA eram inteiramente burgueses por não terem passado feudal. Na Europa, a existência de classes é como um dado da natureza. Você não precisa convencer nenhum europeu de que elas existem. Nos EUA, é claro, existe uma estrutura de classes. Mas a ideologia do igualitarismo é fortíssima: igualdade de oportunidades, igualdade de direitos.
Folha - Mas nos EUA houve a escravidão, o segregacionismo.
Lipset -
Sim. Tudo a que estou me referindo aqui se aplica somente para os brancos. Os negros pensam em termos de grupo, de consciência de grupo. Creio que eles teriam apoiado maciçamente um partido socialista forte. Mas os socialistas nunca foram capazes de conquistar sua adesão eleitoral.
Folha - Por que não?
Lipset -
Em parte, porque uma das características do radicalismo norte-americano foi uma forte inclinação para o sectarismo, que alienava não só os negros, mas diversos outros grupos étnicos e culturais. Em parte, porque os dois grandes partidos, primeiro o Republicano, com Lincoln, depois o Democrata, com Roosevelt, foram capazes de atrair os negros.
Folha - Os EUA são um país de imigrantes, muitos deles chegados mais de um século após a revolução. Por que eles não criaram um partido socialista forte?
Lipset -
Engels já constatava, em 1892, que os imigrantes estavam divididos e que a burguesia norte-americana sabia como jogar uma nacionalidade contra a outra. E Lênin dizia que os EUA eram democráticos demais para o socialismo. Na Europa, o socialismo foi construído a partir da luta pelo sufrágio universal, que já existia nos EUA mesmo antes do aparecimento das classes trabalhadoras.
Folha - Como assim?
Lipset -
As colônias inglesas na América do Norte eram autônomas e realizavam eleições antes da revolução. Compare com a América Latina, em que o sistema político era autoritário, centralizado em Madri ou Lisboa: quando a independência chegou, não havia qualquer tradição de liberdade, eleições, administração autônoma.
Folha - O Partido Democrata nos EUA roubou bandeiras socialistas?
Lipset -
De alguma forma, sim, em especial depois do New Deal de Roosevelt. Mas o sistema partidário é muito frágil, dentro da tradição individualista e libertária. O congressista responde ao seu distrito eleitoral, não ao seu partido. Os dois partidos têm alas que vão da esquerda à direita. La Guardia, que foi prefeito de Nova York, saiu de um partido socialista para o Partido Republicano. Até há pouco, segregacionistas brancos conviviam com líderes negros no Partido Democrata, no Sul do país.
Folha - Por que Marx errou na sua previsão sobre os EUA?
Lipset -
Em parte, por ele ter confiado demais na análise do político inglês conservador Thomas Hamilton, que visitou os EUA em 1830 e escreveu sobre os Workingmen's Parties, que tiveram expressivas votações em algumas cidades da Costa Leste em 1820. Hamilton entendeu mal a ideologia desses partidos, muito mais baseada nos princípios da igualdade de oportunidades do que de socialismo. Marx se convenceu de que as votações desses partidos eram prenúncio de um movimento de classe dedicado à abolição do capitalismo.


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