|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
HISTÓRIA
O historiador inglês Keith Thomas fala sobre seus livros e critica o Novo
Trabalhismo de Blair
O revolucionário calado
MARIA LÚCIA G. PALLARES-BURKE
PETER BURKE
especial para a Folha
Keith Thomas -ou sir Keith,
como é chamado formalmente-
é um dos historiadores mais eminentes e inovadores do Reino Unido de hoje. Tendo iniciado sua
carreira numa época em que a
maioria dos historiadores ainda
estava centrada na história política
narrativa, Thomas desbravou com
brilhantismo um novo campo: o
estudo sociocultural das sociedades do passado.
O livro que o tornou famoso -e
com o qual ganhou o prestigioso
Prêmio Wolfson- foi "Religião e
o Declínio da Magia" (1971, no
Brasil pela Companhia das Letras), mais conhecido por suas
discussões sobre as razões pelas
quais as pessoas acusavam seus vizinhos de bruxaria. Quase imediatamente tornou-se um best seller,
foi exposto em livrarias especializadas no "oculto" e seguramente
foi consultado não só por estudantes como por videntes.
Outro livro que consolidou sua
fama de inovador foi "O Homem
e o Mundo Natural" (1983, Companhia das Letras), onde Thomas
trata das mudanças de atitudes para com os animais e com a natureza no decorrer dos séculos 16, 17 e
18. Traduzidos em várias línguas,
esses dois livros fizeram com que
Keith Thomas viesse a ocupar um
lugar de liderança na chamada
"antropologia histórica", papel
que compartilha com Emmanuel
Le Roy Ladurie e Carlo Ginzburg,
dois dos historiadores atuais que
mais admira.
Grande admirador do antropólogo britânico Edward Evans-Pritchard, Thomas muito se inspirou
em sua obra sobre a bruxaria, oráculos e magia entre os azandes da
África central para desenvolver
seus estudos sobre a cultura e a sociedade inglesas do século 17.
Menos conhecidos internacionalmente, mas igualmente importantes, são os artigos, aulas magnas e ensaios de Thomas dispersos
em revistas de renome e até hoje
jamais coletados em livro. Dois
dos artigos, escritos nos anos 50,
tratam da história das mulheres
muito antes dessa modalidade de
história se tornar respeitável e,
ainda muito menos, coisa da moda. Outros, inspirados nos trabalhos de teóricos sociais como Mikhail Bakhtin, Norbert Elias e Bronislaw Malinowski, tratam da limpeza e da santidade, da saúde, da
função social do passado, das
crianças, das relações entre as gerações, da alfabetização, da disciplina e indisciplina escolares etc.
Quando jovem, Keith Thomas
causou furor com as ferrenhas críticas que dirigiu em tom bombástico aos seus colegas mais conservadores que se negavam a ver
qualquer utilidade nas ciências sociais para o estudo da história.
Hoje, bem mais moderado e
apreciador da tradição, Thomas
mostra-se cauteloso e cético quanto às possibilidades de grandes
mudanças no método histórico.
No entanto, aliando tradição e
inovação tanto no que diz respeito
aos métodos empregados quanto
aos temas estudados, ele permanece, no fundo, um historiador
radical em sua perspectiva; ou, como já foi descrito, "um revolucionário calado", que não gosta de
alardear suas inovações.
Se Quentin Skinner pode ser
descrito como um "Cambridge
man", Keith Thomas é essencialmente um "Oxford man". Extremamente feliz e orgulhoso por viver e trabalhar há quase 50 anos
em Oxford -cidade de 200 mil
habitantes-, Thomas, que nasceu num vilarejo do País de Gales,
a vê como uma verdadeira metrópole. Londres não é de seu agrado.
Quando foi convidado há alguns
anos para dar aulas na USP, sua
primeira pergunta foi: "Qual o tamanho de São Paulo?". Obviamente, não aceitou o convite.
Há alguns anos Thomas foi eleito presidente do Corpus Christi,
"college" fundado em 1517 e onde o humanista espanhol Juan
Luis Vives ensinou. Presidir um
"college" da Universidade de Oxford equivale a ser reitor de uma
pequena universidade, com mais
ou menso 300 alunos e 30 professores; o cargo, que tem grande dose de glamour e é sempre muito
concorrido, além de alto status envolve uma multidão de tarefas administrativas, financeiras e burocráticas que Thomas desempenha
com o espírito de dedicação e orgulho de um "Oxford man".
Na última década, Keith Thomas
recebeu duas das maiores homenagens que um intelectual pode
almejar na sociedade britânica: foi
honrado com o título de sir conferido pela rainha Elizabeth por
"serviços prestados à história" e
foi nomeado presidente da centenária British Academy (onde seus
discursos anuais são lembrados
pelo brilhantismo e humor).
Um homem sorridente, alto,
magro e de cabelos escuros, que
parece ter bem menos do que seus
65 anos, Keith Thomas nos recebeu em sua sala no Corpus Christi.
Localizada na ala nova do "college", construída no século 18, seus
aposentos de estudo têm todo o
charme e a elegância do século das
Luzes. Sentado numa confortável
poltrona, Keith Thomas falou várias horas num tom bastante
amistoso, mas pouco enfático, o
que, muitas vezes, tornou sua
usual ironia quase imperceptível.
O que se segue é uma parte dessa
conversa.
Folha - O sr. cresceu numa fazenda do País de Gales, num ambiente
pouco voltado para a vida intelectual. O que, no seu entender, o fez
optar por uma vida dedicada ao
estudo do passado?
Keith Thomas - É verdade, o
único não-fazendeiro de minha família sou eu. E esse é um mundo
muito auto-suficiente e não-introspectivo, que tende a dividir as
pessoas entre fazendeiros e o resto.
O mundo acadêmico é visto como
relativamente parasítico, já que o
mais importante é alimentar as
pessoas. Além disso, dinheiro aí é
altamente respeitado. Já meu irmão, bem diferente de mim, continuou na fazenda e hoje é um fazendeiro bem-sucedido, muito mais
rico do que eu. Como aluno, eu me
saía muito bem em várias disciplinas e foi por acaso que escolhi história como uma das matérias para
o Higher School Certificate. Havia
um novo professor, muito bom,
com quem acidentalmente me encontrei quando estava justamente
indo para o lugar onde os alunos
declaravam as escolhas de matérias para o colegial. E ele disse:
"Você vai fazer história, não é?",
ao que eu respondi: "Bem, acho
que sim, se o senhor acha que devo". Eu sempre faço o que a última pessoa que encontro me diz.
Folha - Quão importante foi Oxford e o convívio com Christopher
Hill para o desenvolvimento de
suas atitudes e interesses?
Thomas - Já ouvira falar de
Christopher Hill antes de ir para
Oxford e conhecia alguns de seus
textos publicados na revista marxista "The Modern Quarterly".
Meu primeiro encontro com ele se
deu no dia de meu exame e entrevista em Balliol. Deve ter sido por
conta desse encontro que Hill ficou fortemente gravado em minha
mente. No curso, acabei sempre
escolhendo as matérias que Hill
ensinava, apesar de haver outros
tutores igualmente brilhantes (ou
até mais), dos quais me aproximei
mais tarde. Mas, seguramente, me
tornei um especialista do início da
era moderna principalmente porque isso era o que Hill era.
Folha - O sr. chegou a compartilhar das posições marxistas de
Christopher Hill?
Thomas - Hill me seduziu muito mais pela sua personalidade do
que por seu marxismo. Ele era um
tutor muito pouco didático. Quando o estudante acabava de ler um
ensaio, ele não dizia absolutamente nada. Então a gente pensava em
algo para dizer, ao que se seguia
um longo silêncio, até pensarmos
em outra coisa para falar, e assim
por diante. Portanto a idéia de que
Christopher Hill entrouxava marxismo em seus discípulos é totalmente ridícula. Ele não nos entrouxava nada. Mas, na verdade,
diria que eu mesmo era um marxista vulgar, pois o marxismo então me parecia a única alternativa a
um empirismo político quase sem
nenhuma dimensão mental ou espiritual. Não havia, pelo menos
para mim, nenhuma antropologia, sociologia ou ciência política
em evidência que pudesse contrabalançar essa dicotomia. A escolha
era ou o marxismo ou um evento
político seguido de outro, seguido
de outro, e assim por diante.
Folha - Mas já não havia a alternativa da Escola dos Anais?
Thomas - Confesso que nunca li
um artigo da revista "Annales"
durante meu curso universitário.
Já Braudel eu li, e me impressionou muito. Mas, na verdade, ele
não era muito útil para os cursos,
pois a segunda parte de sua grande
obra sobre Felipe 2º era muito detalhada para ser aproveitada para
outros temas, e a primeira parte,
em que desenvolvia uma espécie
de determinismo geográfico, também me parecia pouco aproveitável. Com o passar do tempo passei
a ser grande admirador de Marc
Bloch e fui seduzido pelo programa de Lucien Febvre.
Folha - Muito antes dos anos 70,
quando o movimento feminista incentivou o desenvolvimento da
história das mulheres, o sr. já estava escrevendo artigos inovadores
e instigantes sobre esse tema. O
que o levou a esse pioneirismo?
Thomas - Como dava muitos
tutorados, meus interesses eram
gerados pelo que estava tendo que
ensinar naquela semana, tudo bastante desestruturado. Um dos temas de estudo era a questão da tolerância religiosa em 1640, e foi a
propósito disso que li "Gangraena", de Thomas Edwards, uma
obra polêmica da época que atacava as seitas religiosas e a idéia de
tolerância. Pois bem, o grande argumento de Edwards contra a tolerância é que com ela a família se
desintegraria, já que a mulher poderia seguir uma religião diferente
da do marido, e os filhos, uma diferente da dos pais. E foi explorando essa questão que acabei por escrever o artigo "Women and the
Civil War Sects", que, a conselho
de Christopher Hill, publiquei em
1958 na revista de esquerda "Past
and Present". Nele eu argumentava que as seitas que surgiram durante a Guerra Civil haviam propiciado um tipo de emancipação feminina ao darem às mulheres liberdade de expressão, liberdade
de pregar e de discutir religião e
lhes permitirem alguma participação no governo das congregações.
Foi por aí, enfim, que entrei no
campo da história das mulheres.
Mas, até agora, não expliquei
propriamente o porquê do meu
interesse pelo assunto. Suponho
que tenha me parecido bastante
central, pelo simples fato de as
mulheres serem metade da raça
humana; e também por me parecer um tópico explorado inadequadamente. Tendo embarcado
nessa questão, li alguns livros que
me impressionaram, sendo que o
"Segundo Sexo", de Simone de
Beauvoir, foi provavelmente o que
mais se aproximava de uma doutrina sobre o assunto. Colecionei
também um grande número de
tratados do século 19 sobre as mulheres, mas infelizmente não havia
absolutamente nenhum interesse
pelo assunto nessa época. E foi por
causa desse desinteresse generalizado que eu acabei, muito tolamente, me afastando desse tema.
Folha - Em 1961, o sr. deu uma
palestra intitulada "História e Antropologia", cujo título já foi o suficiente para intrigar a comunidade
acadêmica. Numa época em que
quase nenhum outro historiador
levava a antropologia a sério, o
que o fez se interessar por ela?
Thomas - Acho que foi um panfleto de Evans-Pritchard chamado
"Antropologia e História" que
me despertou para esse novo campo. Àquela altura, estava profundamente ressentido com o fato de
muitos acreditarem que a história
das mulheres, na qual estava envolvido, era algo mais ou menos
ridículo, não história verdadeira.
Assim, fiquei imediatamente encantado com a idéia de que em outras partes do mundo tudo o que se
referia à vida do cotidiano era central, ao invés de periférico. Essa
descoberta coincidiu com o momento em que me dei conta de que
meus interesses estavam mais voltados para fazer sentido de todas as
dimensões da experiência humana
do que somente da dimensão política convencional.
Folha - Malinowski, Evans-Pritchard, Lévi-Strauss e Geertz são
todos citados em suas notas de rodapé, apesar de seus estilos intelectuais serem muito diversos. O
sr. escolhe, de algum modo, entre
eles ou acha que uma escolha é
desnecessária?
Thomas - Vocês querem saber
como, afinal de contas, eu podia
acreditar em todos eles, quando
eles não acreditavam uns nos outros? Pois bem, acho que é porque,
ao ler antropologia, eu não estava
procurando um sistema, uma chave para entender todas as mitologias ou para abrir todas as portas.
Estava, sim, em busca de um estímulo para a imaginação histórica
e, nesse sentido, todos esses autores, cada um a seu modo, me foram muito úteis. De modo geral,
acho a antropologia mais recente
menos acessível do que a tradicional antropologia social britânica.
A lucidez desta me parece muito
preferível à pretensão e pomposidade das que surgiram depois.
Folha - Quão importante para o
seu desenvolvimento intelectual
foi a tradição empirista britânica
na qual se criou? Existe alguma
tensão entre essa tradição e seu
interesse em teoria?
Thomas - Bem, suponho que,
apesar de ter escrito contra o empirismo britânico, queira ou não
sou um produto dele. Mas, obviamente, depende do que entendemos por isso. Penso que todo conhecimento avança formulando
hipóteses e as testando, ao invés de
simplesmente ser o resultado de
acumulação de fatos. Por outro lado, tendo formulado alguma
questão ou hipótese, eu esperaria
progredir não invocando uma teoria, mas buscando evidências num
sentido moderadamente convencional. Em certo sentido, sinto
uma tensão real entre a abordagem teórica e a empírica. Mas, no
final, meu método de trabalho e
meu modo de argumentar são bastante convencionais. O assunto
pode ser bem diferente, mas certamente a argumentação não difere
muito daquela utilizada pela "geração inculta" dos historiadores
da primeira metade do século.
Há, pois, um elemento cultural
britânico, que, sem dúvida, dificulta a nossa compreensão de
abordagens mais teóricas, como,
por exemplo, a francesa. Uma ilustração disso é a reação das editoras
britânicas ao livro de Le Roy Ladurie, "Montaillou". Apesar de
apresentar vários defeitos no lado
empírico, achei esse livro realmente fantástico quando o li ainda
em forma de provas para a edição
francesa. Pois bem, não obstante
ter dito à Cambridge University
Press e à Penguin que era um livro
brilhante, que precisava ser traduzido, as duas editoras não se interessaram. Como sabem, tão logo o
livro foi publicado em francês e
François Mitterrand apareceu
com ele em mãos no primeiro dia e
"Montaillou" se tornou um best
seller mundial. Nem precisa dizer
que a Penguin acabou tendo que
comprar os direitos de publicação
a um culto altíssimo.
Folha - No artigo "History and
Anthropology" (1963), o sr. sugeriu novos e interessantes temas
para uma história sociocultural,
tais como a história dos sonhos,
das atitudes diante da dor, a história dos hábitos de beber etc. Diante de tamanha variedade de tópicos, o que o levou a investir tanto
tempo e esforço em um volumoso
livro sobre o declínio da magia?
Thomas - Bem, sobre os tópicos
que sugeri, acho que muitos já foram, desde então, desenvolvidos
pelos historiadores. Mas, meu
"Religião e o Declínio da Magia"
surgiu como que por acaso. Estava
dando um curso sobre o Protetorado e devia, portanto, tratar dos
Levellers (Niveladores). Um dia,
estava na Bodleian Library vendo
se descobria algum manuscrito interessante sobre esses radicais do
século 17 quando me deparei com
uma pequena nota escrita por Richard Overton -conhecido como
um dos chefes desse movimento
democrático- ao astrólogo William Lilly.
Num pequeno pedaço de papel
alfinetado aos "livros dos casos",
onde Lilly registrava as consultas
dos seus clientes, a nota do mais
racional dos Levellers, dizia o seguinte: "Com seu conhecimento
astrológico, você poderia me dizer
se devo continuar um Leveller ou
não?". Num primeiro momento li
a nota de Overton com um certo
descaso, mas logo me dei conta de
que essas anotações, jamais tocadas desde o século 17, eram potencialmente a mais rica fonte para se
conhecer os medos, ansiedades e
esperanças das pessoas do século
17. Lilly tinha, por assim dizer, um
grande negócio, pois era consultado por mais ou menos 2.000 pessoas por ano. Assim, a primeira
parte do livro que escrevi tratava
da astrologia, e foi a partir daí que
descobri que os clientes queriam
sempre saber dos astrólogos se estavam ou não enfeitiçados. E isso
me levou, finalmente, à bruxaria,
que procurei estudar como parte
de um quadro mais amplo.
Folha - O que o levou a escrever
sobre as relações do homem com a
natureza? Foi uma reação às preocupações correntes com o meio
ambiente?
Thomas - Não, de modo algum,
assim como o "Religião e o Declínio da Magia" não era indicativo
de nenhum interesse meu pelo
oculto. Lamento dizer que tento
ser racional de um modo um tanto
quanto maçante e nada excitante.
Não sou nem um pouco dado a
gostos fantasmagóricos e seguramente não estava me sentindo particularmente "verde" quando escrevi "O Homem e o Mundo Natural". Suponho que não seja
muito mais sensível aos problemas
do meio ambiente do que a maioria das pessoas. Simplesmente
aconteceu que fui convidado a dar
as Trevelyan Lectures em Cambridge (a partir das quais surgiu o
livro) e descobri em antigas anotações minhas uma pasta, ainda não
utilizada, intitulada "animais".
Bem, então a pergunta seria: por
que afinal de contas se interessou
por isso? Acho que é porque anotava praticamente tudo. Minha
ambição era fazer uma etnografia
global da Inglaterra do início da
era moderna; estava, pois, interessado em todas as suas dimensões,
inclusive a política, e era natural,
portanto, que acabasse me deparando com "animais". Assim,
apesar de não ter sido uma opção
consciente e não ter um interesse
pessoal no assunto, ironicamente
meu livro acabou refletindo as
preocupações da época. Não estava tentando apostar no que seria a
moda dos anos 80, mas simplesmente pensar sobre o que, afinal
de contas, eu ainda tinha algo de
novo a dizer.
Folha - "O Homem e o Mundo
Natural" tem sido criticado por
não ser suficientemente comparativo e, consequentemente, por
contribuir para o tradicional etnocentrismo acadêmico que afirma a "singularidade ocidental".
Como encara essa crítica?
Thomas - Não é extraordinário? Você se envolve num projeto ultra-ambicioso e ainda é criticado por não ser suficientemente comparativo. Se estivesse
escrevendo sobre a reforma parlamentar inglesa de 1832, ninguém diria: "Estou muito surpreso por você não considerar
que os brasileiros... enfim".
Quanto mais ambicioso o seu tópico, mais se espera que você
amplie seus horizontes. Eta vida
dura! Mas o fato é que meu objetivo era fundamentalmente
identificar algumas características da situação inglesa e não fazer um trabalho comparativo.
Concordo em que a abordagem comparativa é interessante
e em que, se o objetivo é identificar o que é distintivo em algum
período ou lugar, isso deve envolver a comparação implícita
ou explícita. Mas, sem dúvida, se
já é difícil estabelecer o estado de
coisas em um contexto particular, o que não dizer se comparações tiveram de ser feitas? A
questão é saber com que dados
vamos afinal, comparar; e não
há muitos "O Homem e o Mundo Natural" em todos os países
para você consultar e verificar
como se comparam com o caso
inglês.
Folha- O sr. uma vez afirmou
que "mesmo o mais escrupuloso
dos historiadores está permanentemente construindo mitos,
quer reconheça isso ou não".
Não haveria um modo de treinar
os historiadores para que eles
não manipulem "nossas genealogias a fim de atender a novas
necessidades sociais", para utilizar suas próprias palavras?
Thomas - É claro que há vários graus de construção de mitos, mas o mais eficiente de todos é de um tipo tão sutil que, no
meu entender, é muito difícil, se
não impossível, erradicá-lo.
Quando as pessoas decidem buscar as genealogias do feminismo
moderno, do lesbianismo ou de
qualquer outro "ismo", elas estão claramente construindo mitos, de um modo muito cru, nada muito diferente de como os
Tudors se diziam descendentes
de Brutus, o troiano.
Os currículos acadêmicos,
atendendo a pressões do momento (como as da última comunidade imigrante), estão
também sempre sendo revistos
para estabelecer novas genealogias. Mas os mitos não são somente construídos desse modo
tão evidente.
O mito fundamental é aquele
que se constrói à medida que os
modismos e jargões da época penetram na prosa histórica e literária. E essa é a razão pela qual,
quando qualquer um de nós abre
um livro de história de 1840 ou
1740, ele nos salta aos olhos. E
podemos apostar que o que estamos escrevendo agora nos anos
90 saltará aos olhos de nossos
descendentes da mesma forma, e
nós também seremos um país
estrangeiro para eles.
Folha - O que acha do ideal de
uma "Nova Grã-Bretanha" proposto pelo novo Partido Trabalhista? É ele menos um mito do
que "a volta aos valores vitorianos" idealizada por Margaret
Thatcher?
Thomas - Estou muito desapontado com o New Labour, e o
aspecto que mais me incomoda é
que ele representa o triunfo da
democracia na esfera cultural na
sua pior forma; em outras palavras, sua política confirma os
piores prognósticos feitos no século passado por Tocqueville ou
Stuart Mill sobre a democracia.
Para só citar um exemplo, há
pouco tempo apareceu na imprensa nacional um retrato de
primeiro-ministro e do ministro
da Fazenda, ambos em manga de
camisa e com um copo de cerveja na mão, assistindo a um jogo
de futebol na televisão.
Tenho certeza de que tão logo a
foto foi tirada eles voltaram aos
seus afazeres. Que essa seja a
imagem pública que consideram
bom projetar é algo que me deprime profundamente. É verdade que nunca me interessei por
futebol e que suas associações
com violência e chauvinismo me
repugnam. Mas isso é só um aspecto da questão.
O outro, mais amplo, é que o
New Labour não se envolveu em
nenhum tipo de compromisso
com as atividades científicas,
acadêmicas, intelectuais, literárias ou artísticas; mas, por outro
lado, abraçou o mundo da cultura popular, do esporte internacional e da mídia no seu nível
mais baixo.
Sei que serei visto como antiquado, mas sempre acreditei
que a tarefa do socialismo era a
de elevar as pessoas. E o que vemos agora é que a noção de aprimoramento, vitoriana no seu
melhor sentido, foi completamente abandonada em prol, não
tanto do prazer, mas de um hedonismo de baixo nível. Enfim,
bilhar em vez de poesia.
Uma das coisas mais tristes e
deprimentes do governo Thatcher era seu desinteresse por
questões intelectuais e acadêmicas. Ora, esperava-se que a mudança de governo fosse representar uma mudança nesse sentido, o que absolutamente não
ocorreu. Eu, que passo hoje
muito tempo na administração
pública, sei que a British Library
está decaindo a olhos vistos.
Cortou-se tanto a verba para
aquisições e para conservação
que hoje está se pensando seriamente em se abandonar totalmente a compra de livros
não-britânicos.
A rejeição da herança do passado em prol da imagem da hoje
tão falada "Nova Grã-Bretanha" idealizada pelo New Labour é algo estarrecedor. A
Grã-Bretanha não é, politicamente falando, muito importante no quadro internacional; mas,
por muitas razões históricas, teve um papel único no mundo devido a sua habilidade de preservar muito da herança física e literária da humanidade.
É, portanto, desalentador observar que isso está sendo agora
olhado com descaso e negligência. E, de um certo modo, essa
atitude está relacionada de perto
aos interesses pessoais (ou falta
de interesse) dos nossos líderes
políticos. Falando de Blair, por
exemplo, alguém me contou
que, quando ele esteve recentemente visitando a biblioteca do
St.Johns's, parecia que jamais pisara nela antes, o que não pode
ser verdade, pois afinal ele foi
aluno desse "college" quando
eu era tutor lá, mas de qualquer
modo.... Talvez, não sei... Isso
tudo é muito chocante. Enfim, a
"New Britain" está relegando o
que havia talvez de melhor na
velha Grã-Bretanha.
Folha - Inquieto, como outros
respeitáveis historiadores, com a
possibilidade de a micro-história
só tratar de questões insignificantes e preocupado com a crescente popularidade de estudos
nessa linha, John Elliot foi enfático ao dizer que algo está muito
errado quando "o nome de Martin Guerre é tão ou mais conhecido que o de Martin Luther (Lutero)". O sr. compartilha da preocupação de Elliot com a micro-história?
Thomas - Adoraria ter dito
essa frase. Não chego a perder
meu sono com essa questão, mas
concordo com o fato de que a
micro-história vai longe demais.
Acho que "O Queijo e os Vermes", de Carlo Ginzburg, e
"Montaillou", de Le Roy Ladurie, são livros maravilhosos, mas
pararia praticamente aí na lista
de micro-histórias que são importantes. Talvez esteja esquecendo algumas outras, mas o fato é que não há nada de errado
em se escrevê-las, desde que não
se abandone tudo o mais.
Contrariamente ao que possam pensar, sou a favor do pluralismo na atividade histórica e
portanto não sou a priori contra
a micro-história. O que sou é
contra essa moda, que não acho
nada atraente. Há, sem dúvida,
tópicos excelentes para uma micro-história, mas na maior parte
faltam fontes. Além disso, para
fazê-la bem há necessidade de
um toque de gênio.
Maria Lúcia G. Pallares-Burke é historiadora e autora de ""The Spectator", o Teatro das
Luzes" e "Nísia Floresta, o Carapuceiro e outros Ensaios de Tradução Cultural" (ambos
pela Hucitec).
Peter Burke é historiador inglês e autor, entre outros, de "As Fortunas d'"O Cortesão'"
(Unesp) e "The European Renaissance"
(Blackwell). Ele escreve na seção "Autores",
do
Mais!
Texto Anterior: Estética - Marcelo Guimarães Lima: A comédia divina Próximo Texto: Livros - Izidoro Blikstein: Polinésia freudiana Índice
|