São Paulo, Domingo, 04 de Abril de 1999
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

HISTÓRIA
O historiador inglês Keith Thomas fala sobre seus livros e critica o Novo Trabalhismo de Blair
O revolucionário calado

MARIA LÚCIA G. PALLARES-BURKE
PETER BURKE
especial para a Folha

Keith Thomas -ou sir Keith, como é chamado formalmente- é um dos historiadores mais eminentes e inovadores do Reino Unido de hoje. Tendo iniciado sua carreira numa época em que a maioria dos historiadores ainda estava centrada na história política narrativa, Thomas desbravou com brilhantismo um novo campo: o estudo sociocultural das sociedades do passado.
O livro que o tornou famoso -e com o qual ganhou o prestigioso Prêmio Wolfson- foi "Religião e o Declínio da Magia" (1971, no Brasil pela Companhia das Letras), mais conhecido por suas discussões sobre as razões pelas quais as pessoas acusavam seus vizinhos de bruxaria. Quase imediatamente tornou-se um best seller, foi exposto em livrarias especializadas no "oculto" e seguramente foi consultado não só por estudantes como por videntes.
Outro livro que consolidou sua fama de inovador foi "O Homem e o Mundo Natural" (1983, Companhia das Letras), onde Thomas trata das mudanças de atitudes para com os animais e com a natureza no decorrer dos séculos 16, 17 e 18. Traduzidos em várias línguas, esses dois livros fizeram com que Keith Thomas viesse a ocupar um lugar de liderança na chamada "antropologia histórica", papel que compartilha com Emmanuel Le Roy Ladurie e Carlo Ginzburg, dois dos historiadores atuais que mais admira.
Grande admirador do antropólogo britânico Edward Evans-Pritchard, Thomas muito se inspirou em sua obra sobre a bruxaria, oráculos e magia entre os azandes da África central para desenvolver seus estudos sobre a cultura e a sociedade inglesas do século 17.
Menos conhecidos internacionalmente, mas igualmente importantes, são os artigos, aulas magnas e ensaios de Thomas dispersos em revistas de renome e até hoje jamais coletados em livro. Dois dos artigos, escritos nos anos 50, tratam da história das mulheres muito antes dessa modalidade de história se tornar respeitável e, ainda muito menos, coisa da moda. Outros, inspirados nos trabalhos de teóricos sociais como Mikhail Bakhtin, Norbert Elias e Bronislaw Malinowski, tratam da limpeza e da santidade, da saúde, da função social do passado, das crianças, das relações entre as gerações, da alfabetização, da disciplina e indisciplina escolares etc.
Quando jovem, Keith Thomas causou furor com as ferrenhas críticas que dirigiu em tom bombástico aos seus colegas mais conservadores que se negavam a ver qualquer utilidade nas ciências sociais para o estudo da história.
Hoje, bem mais moderado e apreciador da tradição, Thomas mostra-se cauteloso e cético quanto às possibilidades de grandes mudanças no método histórico. No entanto, aliando tradição e inovação tanto no que diz respeito aos métodos empregados quanto aos temas estudados, ele permanece, no fundo, um historiador radical em sua perspectiva; ou, como já foi descrito, "um revolucionário calado", que não gosta de alardear suas inovações.
Se Quentin Skinner pode ser descrito como um "Cambridge man", Keith Thomas é essencialmente um "Oxford man". Extremamente feliz e orgulhoso por viver e trabalhar há quase 50 anos em Oxford -cidade de 200 mil habitantes-, Thomas, que nasceu num vilarejo do País de Gales, a vê como uma verdadeira metrópole. Londres não é de seu agrado. Quando foi convidado há alguns anos para dar aulas na USP, sua primeira pergunta foi: "Qual o tamanho de São Paulo?". Obviamente, não aceitou o convite.
Há alguns anos Thomas foi eleito presidente do Corpus Christi, "college" fundado em 1517 e onde o humanista espanhol Juan Luis Vives ensinou. Presidir um "college" da Universidade de Oxford equivale a ser reitor de uma pequena universidade, com mais ou menso 300 alunos e 30 professores; o cargo, que tem grande dose de glamour e é sempre muito concorrido, além de alto status envolve uma multidão de tarefas administrativas, financeiras e burocráticas que Thomas desempenha com o espírito de dedicação e orgulho de um "Oxford man".
Na última década, Keith Thomas recebeu duas das maiores homenagens que um intelectual pode almejar na sociedade britânica: foi honrado com o título de sir conferido pela rainha Elizabeth por "serviços prestados à história" e foi nomeado presidente da centenária British Academy (onde seus discursos anuais são lembrados pelo brilhantismo e humor).
Um homem sorridente, alto, magro e de cabelos escuros, que parece ter bem menos do que seus 65 anos, Keith Thomas nos recebeu em sua sala no Corpus Christi. Localizada na ala nova do "college", construída no século 18, seus aposentos de estudo têm todo o charme e a elegância do século das Luzes. Sentado numa confortável poltrona, Keith Thomas falou várias horas num tom bastante amistoso, mas pouco enfático, o que, muitas vezes, tornou sua usual ironia quase imperceptível. O que se segue é uma parte dessa conversa.

Folha - O sr. cresceu numa fazenda do País de Gales, num ambiente pouco voltado para a vida intelectual. O que, no seu entender, o fez optar por uma vida dedicada ao estudo do passado?
Keith Thomas -
É verdade, o único não-fazendeiro de minha família sou eu. E esse é um mundo muito auto-suficiente e não-introspectivo, que tende a dividir as pessoas entre fazendeiros e o resto. O mundo acadêmico é visto como relativamente parasítico, já que o mais importante é alimentar as pessoas. Além disso, dinheiro aí é altamente respeitado. Já meu irmão, bem diferente de mim, continuou na fazenda e hoje é um fazendeiro bem-sucedido, muito mais rico do que eu. Como aluno, eu me saía muito bem em várias disciplinas e foi por acaso que escolhi história como uma das matérias para o Higher School Certificate. Havia um novo professor, muito bom, com quem acidentalmente me encontrei quando estava justamente indo para o lugar onde os alunos declaravam as escolhas de matérias para o colegial. E ele disse: "Você vai fazer história, não é?", ao que eu respondi: "Bem, acho que sim, se o senhor acha que devo". Eu sempre faço o que a última pessoa que encontro me diz.
Folha - Quão importante foi Oxford e o convívio com Christopher Hill para o desenvolvimento de suas atitudes e interesses?
Thomas -
Já ouvira falar de Christopher Hill antes de ir para Oxford e conhecia alguns de seus textos publicados na revista marxista "The Modern Quarterly". Meu primeiro encontro com ele se deu no dia de meu exame e entrevista em Balliol. Deve ter sido por conta desse encontro que Hill ficou fortemente gravado em minha mente. No curso, acabei sempre escolhendo as matérias que Hill ensinava, apesar de haver outros tutores igualmente brilhantes (ou até mais), dos quais me aproximei mais tarde. Mas, seguramente, me tornei um especialista do início da era moderna principalmente porque isso era o que Hill era.
Folha - O sr. chegou a compartilhar das posições marxistas de Christopher Hill?
Thomas -
Hill me seduziu muito mais pela sua personalidade do que por seu marxismo. Ele era um tutor muito pouco didático. Quando o estudante acabava de ler um ensaio, ele não dizia absolutamente nada. Então a gente pensava em algo para dizer, ao que se seguia um longo silêncio, até pensarmos em outra coisa para falar, e assim por diante. Portanto a idéia de que Christopher Hill entrouxava marxismo em seus discípulos é totalmente ridícula. Ele não nos entrouxava nada. Mas, na verdade, diria que eu mesmo era um marxista vulgar, pois o marxismo então me parecia a única alternativa a um empirismo político quase sem nenhuma dimensão mental ou espiritual. Não havia, pelo menos para mim, nenhuma antropologia, sociologia ou ciência política em evidência que pudesse contrabalançar essa dicotomia. A escolha era ou o marxismo ou um evento político seguido de outro, seguido de outro, e assim por diante.
Folha - Mas já não havia a alternativa da Escola dos Anais?
Thomas -
Confesso que nunca li um artigo da revista "Annales" durante meu curso universitário. Já Braudel eu li, e me impressionou muito. Mas, na verdade, ele não era muito útil para os cursos, pois a segunda parte de sua grande obra sobre Felipe 2º era muito detalhada para ser aproveitada para outros temas, e a primeira parte, em que desenvolvia uma espécie de determinismo geográfico, também me parecia pouco aproveitável. Com o passar do tempo passei a ser grande admirador de Marc Bloch e fui seduzido pelo programa de Lucien Febvre.
Folha - Muito antes dos anos 70, quando o movimento feminista incentivou o desenvolvimento da história das mulheres, o sr. já estava escrevendo artigos inovadores e instigantes sobre esse tema. O que o levou a esse pioneirismo?
Thomas -
Como dava muitos tutorados, meus interesses eram gerados pelo que estava tendo que ensinar naquela semana, tudo bastante desestruturado. Um dos temas de estudo era a questão da tolerância religiosa em 1640, e foi a propósito disso que li "Gangraena", de Thomas Edwards, uma obra polêmica da época que atacava as seitas religiosas e a idéia de tolerância. Pois bem, o grande argumento de Edwards contra a tolerância é que com ela a família se desintegraria, já que a mulher poderia seguir uma religião diferente da do marido, e os filhos, uma diferente da dos pais. E foi explorando essa questão que acabei por escrever o artigo "Women and the Civil War Sects", que, a conselho de Christopher Hill, publiquei em 1958 na revista de esquerda "Past and Present". Nele eu argumentava que as seitas que surgiram durante a Guerra Civil haviam propiciado um tipo de emancipação feminina ao darem às mulheres liberdade de expressão, liberdade de pregar e de discutir religião e lhes permitirem alguma participação no governo das congregações. Foi por aí, enfim, que entrei no campo da história das mulheres.
Mas, até agora, não expliquei propriamente o porquê do meu interesse pelo assunto. Suponho que tenha me parecido bastante central, pelo simples fato de as mulheres serem metade da raça humana; e também por me parecer um tópico explorado inadequadamente. Tendo embarcado nessa questão, li alguns livros que me impressionaram, sendo que o "Segundo Sexo", de Simone de Beauvoir, foi provavelmente o que mais se aproximava de uma doutrina sobre o assunto. Colecionei também um grande número de tratados do século 19 sobre as mulheres, mas infelizmente não havia absolutamente nenhum interesse pelo assunto nessa época. E foi por causa desse desinteresse generalizado que eu acabei, muito tolamente, me afastando desse tema.
Folha - Em 1961, o sr. deu uma palestra intitulada "História e Antropologia", cujo título já foi o suficiente para intrigar a comunidade acadêmica. Numa época em que quase nenhum outro historiador levava a antropologia a sério, o que o fez se interessar por ela?
Thomas -
Acho que foi um panfleto de Evans-Pritchard chamado "Antropologia e História" que me despertou para esse novo campo. Àquela altura, estava profundamente ressentido com o fato de muitos acreditarem que a história das mulheres, na qual estava envolvido, era algo mais ou menos ridículo, não história verdadeira. Assim, fiquei imediatamente encantado com a idéia de que em outras partes do mundo tudo o que se referia à vida do cotidiano era central, ao invés de periférico. Essa descoberta coincidiu com o momento em que me dei conta de que meus interesses estavam mais voltados para fazer sentido de todas as dimensões da experiência humana do que somente da dimensão política convencional.
Folha - Malinowski, Evans-Pritchard, Lévi-Strauss e Geertz são todos citados em suas notas de rodapé, apesar de seus estilos intelectuais serem muito diversos. O sr. escolhe, de algum modo, entre eles ou acha que uma escolha é desnecessária?
Thomas -
Vocês querem saber como, afinal de contas, eu podia acreditar em todos eles, quando eles não acreditavam uns nos outros? Pois bem, acho que é porque, ao ler antropologia, eu não estava procurando um sistema, uma chave para entender todas as mitologias ou para abrir todas as portas. Estava, sim, em busca de um estímulo para a imaginação histórica e, nesse sentido, todos esses autores, cada um a seu modo, me foram muito úteis. De modo geral, acho a antropologia mais recente menos acessível do que a tradicional antropologia social britânica. A lucidez desta me parece muito preferível à pretensão e pomposidade das que surgiram depois.
Folha - Quão importante para o seu desenvolvimento intelectual foi a tradição empirista britânica na qual se criou? Existe alguma tensão entre essa tradição e seu interesse em teoria?
Thomas -
Bem, suponho que, apesar de ter escrito contra o empirismo britânico, queira ou não sou um produto dele. Mas, obviamente, depende do que entendemos por isso. Penso que todo conhecimento avança formulando hipóteses e as testando, ao invés de simplesmente ser o resultado de acumulação de fatos. Por outro lado, tendo formulado alguma questão ou hipótese, eu esperaria progredir não invocando uma teoria, mas buscando evidências num sentido moderadamente convencional. Em certo sentido, sinto uma tensão real entre a abordagem teórica e a empírica. Mas, no final, meu método de trabalho e meu modo de argumentar são bastante convencionais. O assunto pode ser bem diferente, mas certamente a argumentação não difere muito daquela utilizada pela "geração inculta" dos historiadores da primeira metade do século.
Há, pois, um elemento cultural britânico, que, sem dúvida, dificulta a nossa compreensão de abordagens mais teóricas, como, por exemplo, a francesa. Uma ilustração disso é a reação das editoras britânicas ao livro de Le Roy Ladurie, "Montaillou". Apesar de apresentar vários defeitos no lado empírico, achei esse livro realmente fantástico quando o li ainda em forma de provas para a edição francesa. Pois bem, não obstante ter dito à Cambridge University Press e à Penguin que era um livro brilhante, que precisava ser traduzido, as duas editoras não se interessaram. Como sabem, tão logo o livro foi publicado em francês e François Mitterrand apareceu com ele em mãos no primeiro dia e "Montaillou" se tornou um best seller mundial. Nem precisa dizer que a Penguin acabou tendo que comprar os direitos de publicação a um culto altíssimo.
Folha - No artigo "History and Anthropology" (1963), o sr. sugeriu novos e interessantes temas para uma história sociocultural, tais como a história dos sonhos, das atitudes diante da dor, a história dos hábitos de beber etc. Diante de tamanha variedade de tópicos, o que o levou a investir tanto tempo e esforço em um volumoso livro sobre o declínio da magia?
Thomas -
Bem, sobre os tópicos que sugeri, acho que muitos já foram, desde então, desenvolvidos pelos historiadores. Mas, meu "Religião e o Declínio da Magia" surgiu como que por acaso. Estava dando um curso sobre o Protetorado e devia, portanto, tratar dos Levellers (Niveladores). Um dia, estava na Bodleian Library vendo se descobria algum manuscrito interessante sobre esses radicais do século 17 quando me deparei com uma pequena nota escrita por Richard Overton -conhecido como um dos chefes desse movimento democrático- ao astrólogo William Lilly.
Num pequeno pedaço de papel alfinetado aos "livros dos casos", onde Lilly registrava as consultas dos seus clientes, a nota do mais racional dos Levellers, dizia o seguinte: "Com seu conhecimento astrológico, você poderia me dizer se devo continuar um Leveller ou não?". Num primeiro momento li a nota de Overton com um certo descaso, mas logo me dei conta de que essas anotações, jamais tocadas desde o século 17, eram potencialmente a mais rica fonte para se conhecer os medos, ansiedades e esperanças das pessoas do século 17. Lilly tinha, por assim dizer, um grande negócio, pois era consultado por mais ou menos 2.000 pessoas por ano. Assim, a primeira parte do livro que escrevi tratava da astrologia, e foi a partir daí que descobri que os clientes queriam sempre saber dos astrólogos se estavam ou não enfeitiçados. E isso me levou, finalmente, à bruxaria, que procurei estudar como parte de um quadro mais amplo.
Folha - O que o levou a escrever sobre as relações do homem com a natureza? Foi uma reação às preocupações correntes com o meio ambiente?
Thomas -
Não, de modo algum, assim como o "Religião e o Declínio da Magia" não era indicativo de nenhum interesse meu pelo oculto. Lamento dizer que tento ser racional de um modo um tanto quanto maçante e nada excitante. Não sou nem um pouco dado a gostos fantasmagóricos e seguramente não estava me sentindo particularmente "verde" quando escrevi "O Homem e o Mundo Natural". Suponho que não seja muito mais sensível aos problemas do meio ambiente do que a maioria das pessoas. Simplesmente aconteceu que fui convidado a dar as Trevelyan Lectures em Cambridge (a partir das quais surgiu o livro) e descobri em antigas anotações minhas uma pasta, ainda não utilizada, intitulada "animais".
Bem, então a pergunta seria: por que afinal de contas se interessou por isso? Acho que é porque anotava praticamente tudo. Minha ambição era fazer uma etnografia global da Inglaterra do início da era moderna; estava, pois, interessado em todas as suas dimensões, inclusive a política, e era natural, portanto, que acabasse me deparando com "animais". Assim, apesar de não ter sido uma opção consciente e não ter um interesse pessoal no assunto, ironicamente meu livro acabou refletindo as preocupações da época. Não estava tentando apostar no que seria a moda dos anos 80, mas simplesmente pensar sobre o que, afinal de contas, eu ainda tinha algo de novo a dizer.
Folha - "O Homem e o Mundo Natural" tem sido criticado por não ser suficientemente comparativo e, consequentemente, por contribuir para o tradicional etnocentrismo acadêmico que afirma a "singularidade ocidental". Como encara essa crítica?
Thomas -
Não é extraordinário? Você se envolve num projeto ultra-ambicioso e ainda é criticado por não ser suficientemente comparativo. Se estivesse escrevendo sobre a reforma parlamentar inglesa de 1832, ninguém diria: "Estou muito surpreso por você não considerar que os brasileiros... enfim". Quanto mais ambicioso o seu tópico, mais se espera que você amplie seus horizontes. Eta vida dura! Mas o fato é que meu objetivo era fundamentalmente identificar algumas características da situação inglesa e não fazer um trabalho comparativo.
Concordo em que a abordagem comparativa é interessante e em que, se o objetivo é identificar o que é distintivo em algum período ou lugar, isso deve envolver a comparação implícita ou explícita. Mas, sem dúvida, se já é difícil estabelecer o estado de coisas em um contexto particular, o que não dizer se comparações tiveram de ser feitas? A questão é saber com que dados vamos afinal, comparar; e não há muitos "O Homem e o Mundo Natural" em todos os países para você consultar e verificar como se comparam com o caso inglês.
Folha- O sr. uma vez afirmou que "mesmo o mais escrupuloso dos historiadores está permanentemente construindo mitos, quer reconheça isso ou não". Não haveria um modo de treinar os historiadores para que eles não manipulem "nossas genealogias a fim de atender a novas necessidades sociais", para utilizar suas próprias palavras?
Thomas -
É claro que há vários graus de construção de mitos, mas o mais eficiente de todos é de um tipo tão sutil que, no meu entender, é muito difícil, se não impossível, erradicá-lo. Quando as pessoas decidem buscar as genealogias do feminismo moderno, do lesbianismo ou de qualquer outro "ismo", elas estão claramente construindo mitos, de um modo muito cru, nada muito diferente de como os Tudors se diziam descendentes de Brutus, o troiano.
Os currículos acadêmicos, atendendo a pressões do momento (como as da última comunidade imigrante), estão também sempre sendo revistos para estabelecer novas genealogias. Mas os mitos não são somente construídos desse modo tão evidente.
O mito fundamental é aquele que se constrói à medida que os modismos e jargões da época penetram na prosa histórica e literária. E essa é a razão pela qual, quando qualquer um de nós abre um livro de história de 1840 ou 1740, ele nos salta aos olhos. E podemos apostar que o que estamos escrevendo agora nos anos 90 saltará aos olhos de nossos descendentes da mesma forma, e nós também seremos um país estrangeiro para eles.
Folha - O que acha do ideal de uma "Nova Grã-Bretanha" proposto pelo novo Partido Trabalhista? É ele menos um mito do que "a volta aos valores vitorianos" idealizada por Margaret Thatcher?
Thomas -
Estou muito desapontado com o New Labour, e o aspecto que mais me incomoda é que ele representa o triunfo da democracia na esfera cultural na sua pior forma; em outras palavras, sua política confirma os piores prognósticos feitos no século passado por Tocqueville ou Stuart Mill sobre a democracia.
Para só citar um exemplo, há pouco tempo apareceu na imprensa nacional um retrato de primeiro-ministro e do ministro da Fazenda, ambos em manga de camisa e com um copo de cerveja na mão, assistindo a um jogo de futebol na televisão.
Tenho certeza de que tão logo a foto foi tirada eles voltaram aos seus afazeres. Que essa seja a imagem pública que consideram bom projetar é algo que me deprime profundamente. É verdade que nunca me interessei por futebol e que suas associações com violência e chauvinismo me repugnam. Mas isso é só um aspecto da questão.
O outro, mais amplo, é que o New Labour não se envolveu em nenhum tipo de compromisso com as atividades científicas, acadêmicas, intelectuais, literárias ou artísticas; mas, por outro lado, abraçou o mundo da cultura popular, do esporte internacional e da mídia no seu nível mais baixo.
Sei que serei visto como antiquado, mas sempre acreditei que a tarefa do socialismo era a de elevar as pessoas. E o que vemos agora é que a noção de aprimoramento, vitoriana no seu melhor sentido, foi completamente abandonada em prol, não tanto do prazer, mas de um hedonismo de baixo nível. Enfim, bilhar em vez de poesia.
Uma das coisas mais tristes e deprimentes do governo Thatcher era seu desinteresse por questões intelectuais e acadêmicas. Ora, esperava-se que a mudança de governo fosse representar uma mudança nesse sentido, o que absolutamente não ocorreu. Eu, que passo hoje muito tempo na administração pública, sei que a British Library está decaindo a olhos vistos. Cortou-se tanto a verba para aquisições e para conservação que hoje está se pensando seriamente em se abandonar totalmente a compra de livros não-britânicos.
A rejeição da herança do passado em prol da imagem da hoje tão falada "Nova Grã-Bretanha" idealizada pelo New Labour é algo estarrecedor. A Grã-Bretanha não é, politicamente falando, muito importante no quadro internacional; mas, por muitas razões históricas, teve um papel único no mundo devido a sua habilidade de preservar muito da herança física e literária da humanidade.
É, portanto, desalentador observar que isso está sendo agora olhado com descaso e negligência. E, de um certo modo, essa atitude está relacionada de perto aos interesses pessoais (ou falta de interesse) dos nossos líderes políticos. Falando de Blair, por exemplo, alguém me contou que, quando ele esteve recentemente visitando a biblioteca do St.Johns's, parecia que jamais pisara nela antes, o que não pode ser verdade, pois afinal ele foi aluno desse "college" quando eu era tutor lá, mas de qualquer modo.... Talvez, não sei... Isso tudo é muito chocante. Enfim, a "New Britain" está relegando o que havia talvez de melhor na velha Grã-Bretanha.
Folha - Inquieto, como outros respeitáveis historiadores, com a possibilidade de a micro-história só tratar de questões insignificantes e preocupado com a crescente popularidade de estudos nessa linha, John Elliot foi enfático ao dizer que algo está muito errado quando "o nome de Martin Guerre é tão ou mais conhecido que o de Martin Luther (Lutero)". O sr. compartilha da preocupação de Elliot com a micro-história?
Thomas -
Adoraria ter dito essa frase. Não chego a perder meu sono com essa questão, mas concordo com o fato de que a micro-história vai longe demais. Acho que "O Queijo e os Vermes", de Carlo Ginzburg, e "Montaillou", de Le Roy Ladurie, são livros maravilhosos, mas pararia praticamente aí na lista de micro-histórias que são importantes. Talvez esteja esquecendo algumas outras, mas o fato é que não há nada de errado em se escrevê-las, desde que não se abandone tudo o mais.
Contrariamente ao que possam pensar, sou a favor do pluralismo na atividade histórica e portanto não sou a priori contra a micro-história. O que sou é contra essa moda, que não acho nada atraente. Há, sem dúvida, tópicos excelentes para uma micro-história, mas na maior parte faltam fontes. Além disso, para fazê-la bem há necessidade de um toque de gênio.


Maria Lúcia G. Pallares-Burke é historiadora e autora de ""The Spectator", o Teatro das Luzes" e "Nísia Floresta, o Carapuceiro e outros Ensaios de Tradução Cultural" (ambos pela Hucitec).


Peter Burke é historiador inglês e autor, entre outros, de "As Fortunas d'"O Cortesão'" (Unesp) e "The European Renaissance" (Blackwell). Ele escreve na seção "Autores", do Mais!


Texto Anterior: Estética - Marcelo Guimarães Lima: A comédia divina
Próximo Texto: Livros - Izidoro Blikstein: Polinésia freudiana
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Agência Folha.