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LIVROS
"As Palavras de Freud" avalia como as traduções alteram termos-chave da psicanálise
Polinésia freudiana
IZIDORO BLIKSTEIN
especial para a Folha
"As Palavras de Freud" é, antes
de tudo, um livro agradável e consistente. O que não é pouca coisa.
Com efeito, ao examinar e avaliar
como alguns termos básicos da
teoria freudiana foram traduzidos
do alemão para o inglês e o francês, o autor, Paulo Cesar Souza,
nos oferece de uma obra cativante,
do início ao fim. Tais qualidades se
justificam porque, primeiramente, vale lembrar que Paulo César é
um bom escritor, na medida em
que tem sido capaz de transformar
conteúdos "difíceis" em textos
claros e fluentes. Em segundo lugar, é um germanista competente,
doutor em literatura alemã pela
USP, tradutor de textos de Freud,
Brecht e Nietzsche, além de versado em letras, linguística...
Com essas qualificações, Paulo
Cesar Souza navega "por algumas
das ilhas que formam a Polinésia"
da linguagem de Freud, isto é, os
principais termos que constituiriam "o núcleo da percepção analítica freudiana": "Angst" (angústia), "Ich" (eu), "Es" (isso),
"Nachträglichkeit" (efeito a posteriori), "Trieb" (impulso, instinto, pulsão) e "Zwang" (obsessão). Utilizando ferramentas da
linguística e da semiótica, o autor
descortina a amplitude de significados (ou a polissemia), as ressonâncias e mesmo as ambiguidades
dessas palavras na obra de Freud,
ao mesmo tempo em que examina
suas respectivas traduções na clássica edição inglesa, dirigida por James Strachey, e na edição francesa, coordenada por Jean Laplanche.
Da abrangente e arguta análise
de Paulo Cesar Souza emergem
duas constatações inquietantes: 1)
em virtude da polissemia e da riqueza semiótica da linguagem
freudiana, esses termos não são
"pontos pacíficos", mas constituem objeto de controvérsias e polêmicas; 2) no empenho de verter
com exatidão os termos de Freud,
ingleses e franceses adotaram respectivamente critérios próprios de
interpretação; assim, enquanto a
Standard inglesa traduziu
"Trieb" por "instinct" -de significativa influência entre os psicanalistas adeptos do texto inglês-, os franceses criaram o
neologismo "pulsion", que,
"sob a égide de Lacan", foi adotado, em geral, não só pela psicanálise francesa, mas também por psicanalistas de outras línguas latinas.
E aqui reside o motivo da inquietação de Paulo Cesar Souza: se, de
um lado, as soluções dos tradutores fizeram escola, até que ponto,
por outro lado, essas mesmas soluções refletem com exatidão os
polissêmicos, e até flutuantes, significados freudianos? Para demonstrar essa flutuação semântica, o autor ressalta, por exemplo,
que, apesar da diferença estabelecida pelo próprio Freud entre
"Angst", "angústia", e
"Furcht", "medo", essas duas
palavras são empregadas alternadamente, quase como sinônimos,
no texto freudiano. Mas o autor
observa que não se trata aí de falta
de rigor científico, pois essas vacilações constituem, na verdade, fenômenos linguísticos previsíveis e
devem ser tratados a partir de três
pressupostos básicos que, aliás,
teriam de ser levados em conta em
qualquer projeto de tradução da
obra de Freud.
O primeiro pressuposto refere-se à fluidez semântica dos signos em todas as línguas naturais.
O autor demonstra como a "vacilação" entre "Angst", "angústia", e "Furcht", "medo", não
ocorre só em Freud, mas na linguagem corrente e em consagrados autores da literatura alemã. O
segundo pressuposto diz respeito
à linguagem polissêmica e metafórica, utilizada por Freud para expressar sua dinâmica e movente
percepção dos fatos psíquicos e,
assim, fundar a terminologia psicanalítica. E é justamente a substanciosa descrição da linguagem e
do estilo freudiano que parece representar a contribuição mais pertinente e oportuna de "As Palavras de Freud": Paulo Cesar Souza, com efeito, faz uma competente análise semântica e estilística,
demonstrando como, na criação
de uma ciência absolutamente nova, como a psicanálise, Freud teve
de lançar mão de um discurso flexível, poético, metafórico, marcado por uma constante tensão entre
ciência e arte.
O batismo semiótico de um fenômeno psíquico fazia-se aos
poucos: Freud lançava os termos
ensaisticamente até habituar-se a
eles e poder considerá-los como
certezas inatacáveis. Mas ele mesmo reconhecia que esse contínuo
tatear semiótico poderia conduzir
a fracassos: "É quase vergonhoso
que, depois de tanto trabalho, ainda encontremos dificuldades nas
coisas mais fundamentais...". Essas barreiras, contudo, não impediram Freud de continuar perscrutando incansavelmente o inefável: "Se não podemos ver claramente, ao menos vejamos nitidamente o que não é claro".
Esse aparente jogo de palavras
resulta do estilo epigramático e
aforístico por meio do qual Freud,
como um autêntico "jongleur"
(ou prestidigitador) vai "torcendo as palavras -como Proust-
para atender às necessidades do
inefável". O tradutor terá, consequentemente, de saber lidar com
essa linguagem movente e esse tatear semiótico, a fim de não considerar certo aquilo que, para
Freud, é apenas provável, como é
o caso da partícula alemã "wobl"
("talvez", "provavelmente"),
traduzida na edição francesa por
"sans doute" ("sem dúvida").
O terceiro pressuposto contempla a natureza e a complexidade
do trabalho tradutório. Sabemos,
sobretudo com Roman Jakobson,
que o ato tradutório é, na verdade,
uma tarefa interssemiótica, isto é,
traduzir é migrar de um sistema de
signos de um determinado repertório cultural para outro sistema
de signos de outro repertório cultural. É nessa migração que o tradutor revelará toda a sua ciência e
arte, na medida em que for capaz
de criar correspondências entre o
original e a tradução.
A propósito, Paulo Cesar Souza
assinala, por exemplo, as acrobacias dos tradutores ingleses, franceses, italianos e espanhóis para
verter o freudiano e sonoro
"Nachträglichkeit". Considerando os três pressupostos acima referidos, o autor arrisca-se, prudentemente, a formular três
"mandamentos" para empreender uma tradução de Freud: 1º) "É
bom manter a uniformidade, mas
sem descuidar do contexto"; 2º)
"É bom evitar a excessiva literalidade, que pode chegar à servilidade"; 3º) "É bom ter cuidado com
a excessiva liberdade".
Mas é importante advertir que
"As Palavras de Freud" não consiste apenas em avaliar e criticar as
traduções de Freud. O que o autor
pretende, de fato, é oferecer uma
contribuição para um projeto brasileiro. O grande objetivo do livro
de Paulo Cesar Souza é "ajudar a
preparar o terreno para um novo
Freud em português", pois, como
ele bem observa, a tradução brasileira apresenta graves defeitos, e
isso se deve principalmente ao fato
de que se trata de um trabalho de
segunda mão, que reproduz os
vieses da edição inglesa em que se
baseia. Com suas argutas críticas,
suas luminosas sugestões e sua sólida fundamentação linguística,
"As Palavras de Freud" pode, de
fato, estar abrindo veredas para
um novo Freud em português.
A OBRA
As Palavras de Freud - Paulo Cesar Souza. Ed. Ática (r. Barão
de Iguape, 110, CEP 01507-900,
SP, tel. 011/278-9322). 288
págs. R$ 29,00.
Izidoro Blikstein é professor de comunicação
na Fundação Getúlio Vargas em São Paulo e
professor aposentado da USP.
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