São Paulo, Domingo, 04 de Abril de 1999
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LIVROS
"As Palavras de Freud" avalia como as traduções alteram termos-chave da psicanálise
Polinésia freudiana

IZIDORO BLIKSTEIN
especial para a Folha

"As Palavras de Freud" é, antes de tudo, um livro agradável e consistente. O que não é pouca coisa. Com efeito, ao examinar e avaliar como alguns termos básicos da teoria freudiana foram traduzidos do alemão para o inglês e o francês, o autor, Paulo Cesar Souza, nos oferece de uma obra cativante, do início ao fim. Tais qualidades se justificam porque, primeiramente, vale lembrar que Paulo César é um bom escritor, na medida em que tem sido capaz de transformar conteúdos "difíceis" em textos claros e fluentes. Em segundo lugar, é um germanista competente, doutor em literatura alemã pela USP, tradutor de textos de Freud, Brecht e Nietzsche, além de versado em letras, linguística...
Com essas qualificações, Paulo Cesar Souza navega "por algumas das ilhas que formam a Polinésia" da linguagem de Freud, isto é, os principais termos que constituiriam "o núcleo da percepção analítica freudiana": "Angst" (angústia), "Ich" (eu), "Es" (isso), "Nachträglichkeit" (efeito a posteriori), "Trieb" (impulso, instinto, pulsão) e "Zwang" (obsessão). Utilizando ferramentas da linguística e da semiótica, o autor descortina a amplitude de significados (ou a polissemia), as ressonâncias e mesmo as ambiguidades dessas palavras na obra de Freud, ao mesmo tempo em que examina suas respectivas traduções na clássica edição inglesa, dirigida por James Strachey, e na edição francesa, coordenada por Jean Laplanche.
Da abrangente e arguta análise de Paulo Cesar Souza emergem duas constatações inquietantes: 1) em virtude da polissemia e da riqueza semiótica da linguagem freudiana, esses termos não são "pontos pacíficos", mas constituem objeto de controvérsias e polêmicas; 2) no empenho de verter com exatidão os termos de Freud, ingleses e franceses adotaram respectivamente critérios próprios de interpretação; assim, enquanto a Standard inglesa traduziu "Trieb" por "instinct" -de significativa influência entre os psicanalistas adeptos do texto inglês-, os franceses criaram o neologismo "pulsion", que, "sob a égide de Lacan", foi adotado, em geral, não só pela psicanálise francesa, mas também por psicanalistas de outras línguas latinas.
E aqui reside o motivo da inquietação de Paulo Cesar Souza: se, de um lado, as soluções dos tradutores fizeram escola, até que ponto, por outro lado, essas mesmas soluções refletem com exatidão os polissêmicos, e até flutuantes, significados freudianos? Para demonstrar essa flutuação semântica, o autor ressalta, por exemplo, que, apesar da diferença estabelecida pelo próprio Freud entre "Angst", "angústia", e "Furcht", "medo", essas duas palavras são empregadas alternadamente, quase como sinônimos, no texto freudiano. Mas o autor observa que não se trata aí de falta de rigor científico, pois essas vacilações constituem, na verdade, fenômenos linguísticos previsíveis e devem ser tratados a partir de três pressupostos básicos que, aliás, teriam de ser levados em conta em qualquer projeto de tradução da obra de Freud.
O primeiro pressuposto refere-se à fluidez semântica dos signos em todas as línguas naturais. O autor demonstra como a "vacilação" entre "Angst", "angústia", e "Furcht", "medo", não ocorre só em Freud, mas na linguagem corrente e em consagrados autores da literatura alemã. O segundo pressuposto diz respeito à linguagem polissêmica e metafórica, utilizada por Freud para expressar sua dinâmica e movente percepção dos fatos psíquicos e, assim, fundar a terminologia psicanalítica. E é justamente a substanciosa descrição da linguagem e do estilo freudiano que parece representar a contribuição mais pertinente e oportuna de "As Palavras de Freud": Paulo Cesar Souza, com efeito, faz uma competente análise semântica e estilística, demonstrando como, na criação de uma ciência absolutamente nova, como a psicanálise, Freud teve de lançar mão de um discurso flexível, poético, metafórico, marcado por uma constante tensão entre ciência e arte.
O batismo semiótico de um fenômeno psíquico fazia-se aos poucos: Freud lançava os termos ensaisticamente até habituar-se a eles e poder considerá-los como certezas inatacáveis. Mas ele mesmo reconhecia que esse contínuo tatear semiótico poderia conduzir a fracassos: "É quase vergonhoso que, depois de tanto trabalho, ainda encontremos dificuldades nas coisas mais fundamentais...". Essas barreiras, contudo, não impediram Freud de continuar perscrutando incansavelmente o inefável: "Se não podemos ver claramente, ao menos vejamos nitidamente o que não é claro".
Esse aparente jogo de palavras resulta do estilo epigramático e aforístico por meio do qual Freud, como um autêntico "jongleur" (ou prestidigitador) vai "torcendo as palavras -como Proust- para atender às necessidades do inefável". O tradutor terá, consequentemente, de saber lidar com essa linguagem movente e esse tatear semiótico, a fim de não considerar certo aquilo que, para Freud, é apenas provável, como é o caso da partícula alemã "wobl" ("talvez", "provavelmente"), traduzida na edição francesa por "sans doute" ("sem dúvida").
O terceiro pressuposto contempla a natureza e a complexidade do trabalho tradutório. Sabemos, sobretudo com Roman Jakobson, que o ato tradutório é, na verdade, uma tarefa interssemiótica, isto é, traduzir é migrar de um sistema de signos de um determinado repertório cultural para outro sistema de signos de outro repertório cultural. É nessa migração que o tradutor revelará toda a sua ciência e arte, na medida em que for capaz de criar correspondências entre o original e a tradução.
A propósito, Paulo Cesar Souza assinala, por exemplo, as acrobacias dos tradutores ingleses, franceses, italianos e espanhóis para verter o freudiano e sonoro "Nachträglichkeit". Considerando os três pressupostos acima referidos, o autor arrisca-se, prudentemente, a formular três "mandamentos" para empreender uma tradução de Freud: 1º) "É bom manter a uniformidade, mas sem descuidar do contexto"; 2º) "É bom evitar a excessiva literalidade, que pode chegar à servilidade"; 3º) "É bom ter cuidado com a excessiva liberdade".
Mas é importante advertir que "As Palavras de Freud" não consiste apenas em avaliar e criticar as traduções de Freud. O que o autor pretende, de fato, é oferecer uma contribuição para um projeto brasileiro. O grande objetivo do livro de Paulo Cesar Souza é "ajudar a preparar o terreno para um novo Freud em português", pois, como ele bem observa, a tradução brasileira apresenta graves defeitos, e isso se deve principalmente ao fato de que se trata de um trabalho de segunda mão, que reproduz os vieses da edição inglesa em que se baseia. Com suas argutas críticas, suas luminosas sugestões e sua sólida fundamentação linguística, "As Palavras de Freud" pode, de fato, estar abrindo veredas para um novo Freud em português.



A OBRA
As Palavras de Freud - Paulo Cesar Souza. Ed. Ática (r. Barão de Iguape, 110, CEP 01507-900, SP, tel. 011/278-9322). 288 págs. R$ 29,00.




Izidoro Blikstein é professor de comunicação na Fundação Getúlio Vargas em São Paulo e professor aposentado da USP.



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