São Paulo, Domingo, 04 de Abril de 1999
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O suicida fanático do infinito

GILBERTO VASCONCELLOS
especial para a Folha

Essa biografia não acrescenta grandes coisas ao conhecimento da vida e da obra do escritor austríaco Stefan Zweig (1881-1942). Achei o livro perfunctório, tendo em mira que o escritor austríaco era exímio biógrafo, de modo que escrever sobre sua vida requer muito engenho e muita arte.
No entanto o livro merece ser lido, porque é mais um indício de que Zweig volta à moda, no Brasil e no exterior. Dele não se reteve senão o remate trágico do escritor esquisitão que se matou junto com a segunda mulher, 30 anos mais nova, envenenando-se ambos na bela e pacata Petrópolis, a Salzburgo dos trópicos.
Esse fato ainda hoje sensibiliza os intelectuais da província, a exemplo de Julio Ambrósio ("A Geografia Petropolitana"), perscrutando feito louco nos ares da cidade a tendência compulsiva ao suicídio, pelo menos quando fazia frio e chovia, com neblina, nevoeiro e ruço. Nenhum problema prosaico cotidiano. Bem de vida. Paparicadíssimo, amado por todos.
O duplo suicídio ocorrerá em pleno Estado Novo, sob a batuta villa-lobiana de Getúlio Vargas. O motivo dessa "morte no paraíso", segundo o bem achado título de Alberto Dines, permanece um mistério, talvez o pânico de Hitler ganhar a guerra na Europa, o que lembra outro célebre suicidário, também inimigo do nazismo: o infeliz Walter Benjamin. Acontece, porém, que Stefan, alma sensível, estava muito longe de Hitler, vivendo na serra petropolitana, cercado de mimos por todos os lados, mulherio assanhado diante de sua fama de homem sensível e entendido nas coisas do amor.
Vivendo durante o Estado Novo, Stefan, no entanto, nunca acusou a existência de um regime totalitário no Brasil. Inimigo ideológico e estético do totalitarismo, não registrou no entanto semelhança entre Vargas, Hitler e Mussolini, tal qual iria acontecer mais tarde com a sociologia paulista leviana sobre o tal do "populismo".
Escreveu em Petrópolis o clássico "Brasil, País do Futuro". A cura da depressão da humanidade encontrar-se-ia nas florestas tropicais, por meio do poder terapêutico da clorofila, ou daquilo que hoje se denomina biodiversidade. Registre-se o paradoxo: Stefan sublinha o arsenal biótico dos trópicos e se mata aqui, enquanto o francês Lévi-Strauss escreverá "Tristes Trópicos", cego ou indiferente à energia das florestas, academicamente idolatrado pela antropologia áulica da USP, na razão inversa do ostracismo de Darcy Ribeiro, conforme informará seu biógrafo Mércio Gomes.
A energia ufanista positiva sobre o Brasil se apaga com Stefan no Éden, de modo que esse paraíso é um inferno. Doce inferno. Alguma coisa o afastou do céu da literatura brasileira, por causa do juízo equivocado que dele se formou: escritor "cult", menor, espécie de Thomas Mann dos pobres, fácil comunicação, ganhando dinheiro com seus livros. O primeiro escritor de massa do Ocidente. Stefan nunca teve problema de ordem material. Privou e foi amigo de Valéry, Rilke, Joyce, Ravel, Bartok. Estudou com Freud no mesmo colégio em Viena. Discursou à beira do túmulo do criador da psicanálise, em Londres, em 1939. Deixou claro seu ódio a Kant e o amor a Nietzsche. Manteve intacta sua admiração por Goethe.
O ensaísta Stefan escreveu lindas páginas sobre a mocidade de Dostoiévski, contracenando com esmola e libertinagem. Ele dá um close em Oscar Wilde, retratando-o na cadeia, tomando banho dentro d'água suja com dez outros condenados, informando que Dostoiévski não se queixou de epilepsia nem quis curá-la; ao contrário de Beethoven, que se queixava de sua surdez, Byron, de sua perna curta, e Rousseau, da vesícula.
Ao contrário do tédio que sentiu em Buenos Aires, Stefan adorou o Rio de Janeiro. Paz e gentileza. Nova York lhe pareceu legal, porque lá era fácil arrumar "job", mas emprego é coisa vulgar. Tolstói aprendeu a andar de bicicleta aos 73 anos. Para mim, Stefan viajou na idéia do suicídio como obra de arte e estetização da morte, ou seja, um suicida que não queria morrer. Semelhante ao que ele próprio escrevera um dia acerca do poeta alemão Kleist, suicida aos 33 anos, "plano de morte", volúpia da morte dupla com a amada num hotel. Kleist dá um tiro no coração da mulher e se mata com um tiro em sua própria boca. Stefan substituirá, no verão de Petrópolis, em 1942, o revólver pelo veneno como o último gesto desesperado do artista melancólico.



A OBRA
Stefan Zweig - Dominique Bona. Tradução de Carlos Nougué e João Domenech Oneto. Ed. Record (r. Argentina, 171, CEP 20921-380, RJ, tel. 021/585-2000). 378 págs. R$ 35,00.




Gilberto Felisberto Vasconcellos é professor de ciências sociais da Universidade Federal de Juiz de Fora (MG) e autor de "O Príncipe da Moeda" (Ed. Espaço e Tempo), entre outros.



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