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O suicida fanático do infinito
GILBERTO VASCONCELLOS
especial para a Folha
Essa biografia não acrescenta
grandes coisas ao conhecimento
da vida e da obra do escritor austríaco Stefan Zweig (1881-1942).
Achei o livro perfunctório, tendo
em mira que o escritor austríaco
era exímio biógrafo, de modo que
escrever sobre sua vida requer
muito engenho e muita arte.
No entanto o livro merece ser lido, porque é mais um indício de
que Zweig volta à moda, no Brasil
e no exterior. Dele não se reteve
senão o remate trágico do escritor
esquisitão que se matou junto
com a segunda mulher, 30 anos
mais nova, envenenando-se ambos na bela e pacata Petrópolis, a
Salzburgo dos trópicos.
Esse fato ainda hoje sensibiliza
os intelectuais da província, a
exemplo de Julio Ambrósio ("A
Geografia Petropolitana"), perscrutando feito louco nos ares da
cidade a tendência compulsiva ao
suicídio, pelo menos quando fazia
frio e chovia, com neblina, nevoeiro e ruço. Nenhum problema prosaico cotidiano. Bem de vida. Paparicadíssimo, amado por todos.
O duplo suicídio ocorrerá em
pleno Estado Novo, sob a batuta
villa-lobiana de Getúlio Vargas. O
motivo dessa "morte no paraíso", segundo o bem achado título
de Alberto Dines, permanece um
mistério, talvez o pânico de Hitler
ganhar a guerra na Europa, o que
lembra outro célebre suicidário,
também inimigo do nazismo: o infeliz Walter Benjamin. Acontece,
porém, que Stefan, alma sensível,
estava muito longe de Hitler, vivendo na serra petropolitana, cercado de mimos por todos os lados,
mulherio assanhado diante de sua
fama de homem sensível e entendido nas coisas do amor.
Vivendo durante o Estado Novo,
Stefan, no entanto, nunca acusou
a existência de um regime totalitário no Brasil. Inimigo ideológico e
estético do totalitarismo, não registrou no entanto semelhança
entre Vargas, Hitler e Mussolini,
tal qual iria acontecer mais tarde
com a sociologia paulista leviana
sobre o tal do "populismo".
Escreveu em Petrópolis o clássico "Brasil, País do Futuro". A cura da depressão da humanidade
encontrar-se-ia nas florestas tropicais, por meio do poder terapêutico da clorofila, ou daquilo que
hoje se denomina biodiversidade.
Registre-se o paradoxo: Stefan sublinha o arsenal biótico dos trópicos e se mata aqui, enquanto o
francês Lévi-Strauss escreverá
"Tristes Trópicos", cego ou indiferente à energia das florestas,
academicamente idolatrado pela
antropologia áulica da USP, na razão inversa do ostracismo de
Darcy Ribeiro, conforme informará seu biógrafo Mércio Gomes.
A energia ufanista positiva sobre
o Brasil se apaga com Stefan no
Éden, de modo que esse paraíso é
um inferno. Doce inferno. Alguma coisa o afastou do céu da literatura brasileira, por causa do juízo equivocado que dele se formou:
escritor "cult", menor, espécie
de Thomas Mann dos pobres, fácil
comunicação, ganhando dinheiro
com seus livros. O primeiro escritor de massa do Ocidente. Stefan
nunca teve problema de ordem
material. Privou e foi amigo de
Valéry, Rilke, Joyce, Ravel, Bartok. Estudou com Freud no mesmo colégio em Viena. Discursou à
beira do túmulo do criador da psicanálise, em Londres, em 1939.
Deixou claro seu ódio a Kant e o
amor a Nietzsche. Manteve intacta
sua admiração por Goethe.
O ensaísta Stefan escreveu lindas
páginas sobre a mocidade de Dostoiévski, contracenando com esmola e libertinagem. Ele dá um
close em Oscar Wilde, retratando-o na cadeia, tomando banho
dentro d'água suja com dez outros
condenados, informando que
Dostoiévski não se queixou de epilepsia nem quis curá-la; ao contrário de Beethoven, que se queixava
de sua surdez, Byron, de sua perna
curta, e Rousseau, da vesícula.
Ao contrário do tédio que sentiu
em Buenos Aires, Stefan adorou o
Rio de Janeiro. Paz e gentileza.
Nova York lhe pareceu legal, porque lá era fácil arrumar "job",
mas emprego é coisa vulgar. Tolstói aprendeu a andar de bicicleta
aos 73 anos. Para mim, Stefan viajou na idéia do suicídio como obra
de arte e estetização da morte, ou
seja, um suicida que não queria
morrer. Semelhante ao que ele
próprio escrevera um dia acerca
do poeta alemão Kleist, suicida
aos 33 anos, "plano de morte",
volúpia da morte dupla com a
amada num hotel. Kleist dá um tiro no coração da mulher e se mata
com um tiro em sua própria boca.
Stefan substituirá, no verão de Petrópolis, em 1942, o revólver pelo
veneno como o último gesto desesperado do artista melancólico.
A OBRA
Stefan Zweig - Dominique
Bona. Tradução de Carlos Nougué e João Domenech Oneto.
Ed. Record (r. Argentina, 171,
CEP 20921-380, RJ, tel.
021/585-2000). 378 págs. R$
35,00.
Gilberto Felisberto Vasconcellos é professor
de ciências sociais da Universidade Federal de
Juiz de Fora (MG) e autor de "O Príncipe da
Moeda" (Ed. Espaço e Tempo), entre outros.
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