São Paulo, Domingo, 04 de Abril de 1999
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O mar sem fim da língua portuguesa

HÉLIO SCHWARTSMAN
especial para a Folha

A ortografia não é um problema trivial. Escrever "filosofia" ou "philosophia" não é uma simples questão de convenção. A segunda forma, além de trazer a notação dos sons da palavra, revela o elemento de cultura por trás do vocábulo. O "ph", mais do que um jeito esdrúxulo e pouco econômico de grafar o fonema "f", registra, no dizer de Fernando Pessoa, "a solenidade de Roma e a complexidade da Grécia" que existem em certas palavras, elementos de que a tradição portuguesa era herdeira privilegiada. Diz-se "era", pois uma das inúmeras reformas ortográficas por que passou o português pôs fim à escrita etimológica e com ela sepultou esse mecanismo extrafonético.
"A Língua Portuguesa", de Fernando Pessoa, é um volume que reúne escritos mais ou menos inéditos do autor sobre linguagem em geral e sobre ortografia e língua universal em particular. É onde Pessoa se insurge contra a reforma ortográfica proposta em 1911, que acabou com a escrita etimológica, e revela seu plano para a criação de uma nova língua universal, a exemplo, mas não muito, do volapuque e do esperanto.
O projeto, aliás fracassado, de manter a escrita etimológica é mais do que um mero capricho do poeta; ele se inscreve num projeto político-filosófico mais amplo, também evidente em "Mensagem", a saga portuguesa, a narrativa das conquistas, do fracasso histórico e da vocação espiritual de um povo, em que o sebastianismo e a melancolia, se é que se pode separá-los, dão o tom.
"A solenidade de Roma e a complexidade da Grécia" marcadas na antiga grafia portuguesa são elementos constitutivos do caráter português e revelam sua missão histórica ou, como diz "Mensagem": "E ao imenso e possível oceano/ Ensinam estas Quinas (armas de Portugal), que aqui vês,/ Que o mar com fim será grego ou romano:/ O mar sem fim é portuguez."
Subtrair tal traço distintivo da língua portuguesa, substituindo-o pela escrita fonética, é negar sua própria origem, "a necessidade de marcar de todos os modos a nossa separação de Espanha (a escrita espanhola é basicamente fônica), a nossa íntima dessemelhança com ela". É negar as forças de tradição e antitradição que operaram em sua formação e lhe deram papel único entre as línguas modernas, "cujo supremo nacionalismo se consubstancia com a sua obra de darem ao mundo a universalidade dos mares".
Para Pessoa, a ingerência do Estado em matéria ortográfica, principalmente da forma como foi feita na primeira metade do século, é um caso de tirania. O poeta defende que escrever é um fenômeno cultural e não social e que, portanto, cada um pode e deve escrever na ortografia que mais lhe convém, havendo tantas ortografias quanto há escritores. O máximo que o Estado pode fazer dentro de suas atribuições legítimas é fixar uma ortografia para os documentos e para o ensino oficiais.
Outro projeto fracassado (Pessoa, a exemplo de Portugal, parece ter uma atração especial por eles) é o da criação de uma língua universal. O poeta defende que o inglês, ou mesmo, em menor grau, o português, pode vir a ocupar o lugar que já foi o do latim como veículo universal de cultura (faz parte da vocação imperial de ambas as línguas). Ainda assim, propõe a elaboração de uma língua artificial destinada exclusivamente ao intercâmbio científico.
Não seria uma língua para conversar "aceitando ou recusando uma bebida", pois todo homem, no que tem de irracional, preferirá "falar, gaguejando, uma língua estranha, mas natural, do que falar, com perfeição, uma língua artificialmente construída" (e esse irracionalismo explicaria o fracasso de idiomas artificiais anteriores como o esperanto). Apesar dessas limitações, Pessoa expõe com riqueza de detalhes seu projeto, já bem avançado, de língua artificial. Esses textos são, sintomaticamente, escritos em inglês (a edição da Companhia das Letras traz o original e a tradução).
"A Língua Portuguesa", apesar de às vezes excessivamente técnico, é uma rara oportunidade de acompanhar de perto as reflexões linguísticas de Pessoa. Essas reflexões, que por si já não são triviais, também dizem algo acerca de sua poesia. "Quem não vê bem uma palavra não pode ver bem uma alma", escreveu o poeta.



A OBRA
A Língua Portuguesa - Fernando Pessoa. Companhia das Letras (r. Bandeira Paulista, 702, conjunto 72, CEP 04532-002, SP, tel. 011/866-0801). 208 págs. R$ 21,50.




Hélio Schwartsman é formado em filosofia pela USP.



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