São Paulo, Domingo, 04 de Abril de 1999
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Candido Mendes alia a ironia fina e o rigor do cientista político ao analisar a era FHC
A eterna véspera

RENATO LESSA
especial para a Folha

Muitos são os artifícios utilizados pelos historiadores para periodizar o tempo. A variedade desses truques é pelo menos tão larga quanto o desacordo a respeito da melhor maneira de distinguir eras, etapas e períodos, na misteriosa e incontável marcha das coisas. Em "A Presidência Afortunada", Candido Mendes, por meio de sugestivo subtítulo -"Depois do Real, Antes da Social-Democracia"- nos fornece uma alternativa.
De fato, por que não explorar pontos de observação do mundo sustentados em uma expectativa ou em uma aposta? Por que não explorar a incontornável evidência de que nos situamos, sempre, entre o depois e o antes? Mas aqui não se trata de uma aposta qualquer, de mera idiossincrasia ou atitude intelectual teimosa. O que se vislumbra com o antes é uma exigência que decorre do que, há cerca de cinco anos, foi proposto ao país. Trata-se de um antes mais acusatório do que prenunciador e que não desconhece que o momento em que vivemos é anterior a muitos futuros possíveis.
A social-democracia, que reside no desenho de futuro de Candido Mendes, aparece em seu livro como complemento dialético inteiramente negativo dos processos ora em curso no país. Parece não haver nada que a antecipe, se consultados os engenhos políticos e as decisões substantivas de rotina. A natureza da coalizão que sustenta o presidente, por exemplo, é tão fundamental para sua capacidade de governar quanto para impedir que a miragem social-democrata se materialize. As decisões substantivas, por sua vez, parecem decorrer de efeitos da natureza, de processos fora do alcance da capacidade humana de inovação. A política se despe do humano básico e se reduz à adaptação passiva ao ritmo do mundo.
Sendo assim, não há nada que sustente a viabilidade próxima da social-democracia entre nós, a não ser a sua urgência. Há, evidentemente, risco nessa perspectiva. O mais evidente é a transformação do futuro desejado em ponto de fuga, em obsessão. Mas ainda assim há aqui atitude política e intelectual digna, a adotar o ponto de fuga como fundamentação da crítica e da recusa da naturalização do mundo.
É nessa chave, creio, que "A Presidência Afortunada" pode ser considerada a principal análise política já feita entre nós do experimento "soi disant" social-democrata no Brasil do último quinquênio. Por meio de pequenos fragmentos, recolhidos ao longo de um trajeto de observador e ator da política brasileira, o livro se estrutura como um documentário vivo, no qual, por vezes, a lente é o principal personagem. O cuidado com o detalhe, com a rápida informação biográfica, a ironia fina e mortal não configuram uma rendição do autor ao mundo e a seus inumeráveis detalhes. A observação educada propõe ênfases e localiza paradoxos. O maior deles talvez seja o da Presidência sem rosto, a da política que se faz consequência da boa gestão econômica e que, mesmo no sucesso, se apresenta como titular de uma arte adaptativa e de segunda grandeza.
De fato, as figuras centrais e estratégicas da república tucana, no que diz respeito a seu núcleo duro, não dispõem nem de um voto sequer. Não é de espantar que a política seja percebida e tratada como obstáculo, como fator de demora para que se faça o que "o Brasil quer", para ficarmos com a metonímia presidencial predileta.
Há muito o que aprender com o livro de Candido Mendes. Antes de tudo, o acompanhamento minucioso e ordenadamente fragmentado do processo político brasileiro recente. Mas creio que existe uma outra possibilidade de desfrute, presente na decisão pela forma como a história é narrada. Há como que uma multiplicidade de vozes que permite que a observação educada do cientista político dê expressão e passagem ao observador dos costumes, das fraquezas, das esperanças e, em uma palavra, do ordinário humano. Essa combinação nada tem de trivial: ela nos fala da possível complementaridade entre a observação política competente e uma certa dose de aposta. A objetividade não desloca a observação impressionista; a possibilidade do humor não se autocancela para promover uma vetusta perspectiva institucional.
O livro de Candido Mendes ajuda a pensar o Brasil dos dias que correm, é certo. Mas pode ser tomado também como pretexto para pensarmos nos estilos intelectuais que pomos em ação quando tentamos entender o país. Não há o que discutir quanto ao fato de que para a ciência política as instituições são de consideração compulsória. Mas não há como banir o humano ordinário e seu principal atributo, o dom do absurdo, já detectado pelo bom Thomas Hobbes. Sim, o absurdo. Como não perceber seu vulto diante da possível imolação de uma das melhores gerações de homens públicos brasileiros que põem em prática um programa que não é o seu, que não pode ser o seu?
A social-democracia, na sua véspera, vive a tensão da urgência e os imperativos do absurdo. Esse é o espetáculo de uma centro-esquerda tão forte quanto distante de si, tão pragmática quanto movida pela certeza íntima de que faz o caminho. Mas os observadores exteriores a essa circunstância íntima parecem recolher sinais diversos e a vida parece ser hospedeira de outras vésperas possíveis, com sinais trocados, mas protagonizadas, salvo melhor juízo, por atores estranhos.
"A Presidência Afortunada" é uma privilegiada circunstância de observação da política brasileira. Como tal, além da utilidade descritiva e da criatividade analítica que contém, abriga uma advertência. Há um avanço anônimo da cidadania, sede da urgência da perspectiva social-democrata e distante da auto-imposição de pragmatismo da liderança tucana. Configurado o quadro, a advertência pode ser assim registrada: um futuro possível para os que dizem ser portadores da social-democracia é uma perversa combinação entre subordinação política e, no limite, indistinção para com os conservadores e perda de nexo com o mundo social envolvente. Não houve e nem há social-democracia no mundo que combine heteronomia política e indiferença social. Será que nos caberá o absurdo da inovação a esse respeito?



A OBRA
A Presidência Afortunada - Candido Mendes. Ed. Record (r. Argentina, 171, CEP 20921-380, RJ, tel. 021/585-2000). 350 págs. R$ 28,00.




Renato Lessa é diretor-executivo do Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (Iuperj) e professor titular de ciência política da Universidade Federal Fluminense (UFF).



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