São Paulo, Domingo, 04 de Abril de 1999
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PONTO DE FUGA

O Caixeiro-Viajante

JORGE COLI
em Nova York

Há alguns aspectos envelhecidos na peça, algo no estilo, talvez. Algo assim: "A selva é escura, mas cheia de diamantes", "a melodia fala de prados, de árvores e de horizonte". Isto é, algumas frases, e também situações, de poesia forçada. Há um claro simplismo psicológico, muito mecânico, explicando ações dos personagens. Mas "A Morte do Caixeiro-Viajante", de Arthur Miller(1915), na Broadway, dirigida por Robert Fall, mostra sua implacável solidez e ultrapassa as questões mais imediatas que interessaram o autor. Brian Dennehy (protagonista de "A Barriga do Arquiteto", de Peter Greenaway) é o caixeiro, fenomenal ator, dominando a cena com um poder hipnótico sobre a platéia. Todo o elenco, porém, carrega o público em fluxos que se entrosam e se entrelaçam. O impacto da estréia, em 1949, veio em grande parte pela novidade da montagem, que misturava lugares do presente, da memória e do imaginário -princípio que, então, Nelson Rodrigues já radicalizara em "Vestido de Noiva". Agora, os meios técnicos são espetaculares, com palcos giratórios, iluminações complexas e perfeitas. O que ficou da peça não é tanto, porém, a originalidade da encenação, o psicologismo pesado ou o desmontar do sonho americano de classe média. É a força simples, central, inexplicável, do descompasso entre o homem e os seus sonhos que confere a esse caixeiro-viajante, numa casinha modesta, a ampla e superior majestade dos grandes trágicos.

ANJO - Pavarotti celebra 30 anos de sua estréia na "Metropolitan Opera House". Está mais magro. É uma das mais belas vozes de todos os tempos, sucessor autêntico de Caruso e Gigli. Passou por uma fase crítica, superada, porém: o timbre solar e generoso, os agudos fáceis voltaram às suas características iniciais. Possui uma personalidade muito calorosa, que transparece em seus personagens. Na "Tosca", que canta atualmente, encarna o mais simpático dos Cavaradossi. Sua parceira é Carol Vaness, célebre intérprete da heroína, cuja voz é sem dúvida ampla, mas de uma cor ingrata e com agudos estrangulados. Ela não possui grande sentido dramático. Mas, enfim, mantém-se ao lado do grande Luciano. O espetáculo foi concebido por Franco Zeffirelli, reconstituição escrupulosa de época, com grande abundância de detalhes "pitorescos", diluindo a intensidade e a força concentrada da trama. Nello Santi dirigiu essa música sensual como num devaneio, evitando os contrastes e violências, privilegiando a beleza da orquestração, mantendo um clima de nuanças e de poesia. Pavarotti deixou-se envolver, modulando suavemente as frases.

CIRCO - O público nova-iorquino de óperas e concertos é o mais à-vontade, para não dizer o mais sem-educação, do mundo. Tosse abertamente, espirra, cochicha, amarrota papéis de bala. Só silencia quando consegue identificar alguma ária muito famosa ou quando a música acelera o ritmo. Impensável em Viena, Tóquio ou Milão. Aplaude o bom e o menos bom, sem critério. Vai ouvir Bach como quem vê televisão. E não se aperta. Se quer tossir, tosse. Ninguém parece se incomodar com isso.

FLOREIO - O único arranha-céu, em Nova York, de Louis Sullivan, o pai da "escola de Chicago", é o Bayard-Condict Building, de 1898. A fachada, com longas hastes verticais, recobre-se de uma intrincada e maravilhosa vegetação em terracota. A modernidade condenaria ao desaparecimento as profissões que sabiam ornar os prédios, travando guerra sem piedade com o ornamento. O paradoxo de Mies triunfou, axioma indiscutível: "Menos é mais". O rei estava nu, porém, e o Bayard-Condict acusa: menos não é mais. É menos.


Jorge Coli é historiador da arte.
E-mail: coli20@hotmail.com




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