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+ Cinema
RUAS E CORPOS
REPRESENTAR O COTIDIANO E CRIAR NOVOS MERCADOS
SÃO LEGADO E DESAFIO
Debord superestimou a "sociedade do
espetáculo", uma intuição teórica decisiva que virou um clichê utilizado para descrever
a cultura de massa
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IVANA BENTES
ESPECIAL PARA A FOLHA
Quando uma eleitora de Obama escreve o nome do
seu candidato no
traseiro, cria um
jingle divertido e posta esse vídeo de agit-prop no YouTube
-obtendo milhões de cliques
de atenção na mídia global, sublinhando a caretice do marketing político-, não podemos
deixar de pensar (mesmo que
de forma irônica e diluída) que
a guerrilha semiótica e pop política do Maio de 68 (desajustada ou domesticada), encontra
hoje novas mídias e derivas.
Há um renovado interesse
pelas propostas situacionistas,
por cartazes e iconografia de
1968, processos, imagens, panfletos, textos, que circulam na
rede e são consumidos, reapropriados por coletivos e midiativistas do mundo todo.
Imagem como capital
Falar em cinema pós-68 significa, hoje, pensar em pós-cinema e pós-mídia de massa.
Pois foi depois de 1968 que se
tornou ainda mais crítica a percepção das potencialidades,
mas também dos limites, da
forma-cinema, do circuito-cinema, filme-consumo, num capitalismo cultural em mutação.
A intuição estava lá. A imagem é o novo capital, escrevia
Guy Debord em "A Sociedade
do Espetáculo" [ed. Contraponto] -livro-marco de 1967
que o próprio Debord transformaria em um filme-manifesto
"contra o cinema" em 1973 e
cujo anúncio grandiloqüente
acertava no diagnóstico e errava, com a mesma grandiloqüência, nos seus desdobramentos: "Vocês poderão ver em breve na tela "A Sociedade do
Espetáculo" e, posteriormente,
por todo lugar, sua destruição",
anunciava o trailer.
Debord superestimou os
acontecimentos que poderiam
perturbar o capitalismo e provocar sua "destruição" (Maio
de 68 certamente foi um desses
momentos).
Mas ele também superestimou a "sociedade do espetáculo", uma intuição teórica decisiva que virou um clichê utilizado para descrever a cultura
de massa como uma espécie de
telerrealidade infernal, mediada por imagens que nos assujeitam, num discurso-lamentação
paralisante.
Não precisamos nem invocar
um pós-68 para encontrar outras derivas, menos melancólicas e apocalípticas, na própria
cena cinematográfica. O cinema de Jean-Luc Godard é um
desses antídotos a Debord.
Resposta tão mais extraordinária por ter respondido à "sociedade do espetáculo" criando
um dos mais profícuos bancos
de processos audiovisuais e
imagens-pensamentos do século 20, um pensamento-cinema, imagens-resistência, ferramentas e armas de um capitalismo do simbólico, que hoje
chegaram à rede.
É que Godard e o "cinema de
68" (pré e pós-Maio) descobriram não simplesmente a materialidade das lutas, barricadas e
batalhas de rua, o poder dos
corpos, mas o devir estético do
capitalismo, da resistência e da
criação -a necessidade de contradiscursos, imagens, cartazes, publicidade, palavras de
ordem e de desordem, iconografia, grafismos, grafites que
produzissem outro estado de
coisas.
"A Chinesa", "Weekend à
Francesa", "Tudo Vai Bem" e os
filmes do coletivo maoísta Dziga Vertov (que Godard formou
com Jean-Pierre Gorin de 1968
a 1972) são uma experiência
singular nessa direção.
Mulher, negro, operário
O "cinema de 68" começou
no início da década, muito antes do Maio, e se estendeu pelos
anos 70 inteiros, incorporando
os novos sujeitos do discurso
(mulheres, negros, operários,
disruptivos, figuras do poder
enlouquecidas), sexualidade,
drogas, a crítica ao cinema-representação. Nunca foi um "cinema militante" ou "cinema
político" pensando como "nicho de mercado".
No Brasil, "Terra em Transe", de Glauber Rocha, "O Bandido da Luz Vermelha", de Rogério Sganzerla, o cinema marginal e o cinema tropicalista estão à altura do Maio francês,
que repercutiu em todas as cinematografias -"Bonnie e
Clyde" (1967), de Arthur Penn,
"Se...", de Lindsay Anderson,
"Zabriskie Point", de Antonioni, "Pocilga", de Pasolini, além
de Bernardo Bertolucci, Chris
Marker, entre tantos outros filmes e diretores extraordinários do mundo inteiro.
Outra das conseqüências de
1968 foi o surgimento de um cinema político mainstream, como "Z" (1969), de Costa-Gavras
(que muito apropriadamente
premiou, no Festival de Berlim,
"Tropa da Elite"), na linha do
filme-político-de-mercado-que-produz-satisfação-e-divertimento-garantidos.
Maio de 68 também despertou o "anti-Maio", a desqualificação do acontecimento 1968 e
da experimentação estético-política, além de um antiintelectualismo que ronda a cultura contemporânea.
Anti-Maio
O orgulho de "não ser político", uma pretensão que marca
o discurso do cinema-ação-espetacular baseado na regressão
vingativa, na pulsão de morte,
adrenalina, e em certo gozo soberano em ver, infligir e consumir todas as formas de poder.
Um anti-Maio em curso, para o
qual não vale mais o apelo violento nos muros da Sorbonne:
"Ajudem-nos, destruam-se!".
A mais notável proposta de
1968 ainda é romper o gueto do
cinema e da arte, criar novos
mercados e derivas, encontrar
o cinema no cotidiano, nas lutas, no mundo, afinal "arte é o
que faz a vida mais interessante
que a arte", poderíamos dizer.
A deriva de 1968 é reinventar
a potência do cinema, inventar
o ativismo pós-midiático, pós-cinema e TV, o cinema-mundo.
IVANA BENTES é professora da Escola de Comunicação da UFRJ e autora de "Ecos do Cinema" (ed, UFRJ), entre outros livros.
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