São Paulo, domingo, 04 de maio de 2008

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+ Cinema

RUAS E CORPOS

REPRESENTAR O COTIDIANO E CRIAR NOVOS MERCADOS SÃO LEGADO E DESAFIO


Debord superestimou a "sociedade do espetáculo", uma intuição teórica decisiva que virou um clichê utilizado para descrever a cultura de massa

IVANA BENTES
ESPECIAL PARA A FOLHA

Quando uma eleitora de Obama escreve o nome do seu candidato no traseiro, cria um jingle divertido e posta esse vídeo de agit-prop no YouTube -obtendo milhões de cliques de atenção na mídia global, sublinhando a caretice do marketing político-, não podemos deixar de pensar (mesmo que de forma irônica e diluída) que a guerrilha semiótica e pop política do Maio de 68 (desajustada ou domesticada), encontra hoje novas mídias e derivas.
Há um renovado interesse pelas propostas situacionistas, por cartazes e iconografia de 1968, processos, imagens, panfletos, textos, que circulam na rede e são consumidos, reapropriados por coletivos e midiativistas do mundo todo.

Imagem como capital
Falar em cinema pós-68 significa, hoje, pensar em pós-cinema e pós-mídia de massa. Pois foi depois de 1968 que se tornou ainda mais crítica a percepção das potencialidades, mas também dos limites, da forma-cinema, do circuito-cinema, filme-consumo, num capitalismo cultural em mutação.
A intuição estava lá. A imagem é o novo capital, escrevia Guy Debord em "A Sociedade do Espetáculo" [ed. Contraponto] -livro-marco de 1967 que o próprio Debord transformaria em um filme-manifesto "contra o cinema" em 1973 e cujo anúncio grandiloqüente acertava no diagnóstico e errava, com a mesma grandiloqüência, nos seus desdobramentos: "Vocês poderão ver em breve na tela "A Sociedade do
Espetáculo" e, posteriormente, por todo lugar, sua destruição", anunciava o trailer. Debord superestimou os acontecimentos que poderiam perturbar o capitalismo e provocar sua "destruição" (Maio de 68 certamente foi um desses momentos).
Mas ele também superestimou a "sociedade do espetáculo", uma intuição teórica decisiva que virou um clichê utilizado para descrever a cultura de massa como uma espécie de telerrealidade infernal, mediada por imagens que nos assujeitam, num discurso-lamentação paralisante.
Não precisamos nem invocar um pós-68 para encontrar outras derivas, menos melancólicas e apocalípticas, na própria cena cinematográfica. O cinema de Jean-Luc Godard é um desses antídotos a Debord. Resposta tão mais extraordinária por ter respondido à "sociedade do espetáculo" criando um dos mais profícuos bancos de processos audiovisuais e imagens-pensamentos do século 20, um pensamento-cinema, imagens-resistência, ferramentas e armas de um capitalismo do simbólico, que hoje chegaram à rede.
É que Godard e o "cinema de 68" (pré e pós-Maio) descobriram não simplesmente a materialidade das lutas, barricadas e batalhas de rua, o poder dos corpos, mas o devir estético do capitalismo, da resistência e da criação -a necessidade de contradiscursos, imagens, cartazes, publicidade, palavras de ordem e de desordem, iconografia, grafismos, grafites que produzissem outro estado de coisas.
"A Chinesa", "Weekend à Francesa", "Tudo Vai Bem" e os filmes do coletivo maoísta Dziga Vertov (que Godard formou com Jean-Pierre Gorin de 1968 a 1972) são uma experiência singular nessa direção.

Mulher, negro, operário
O "cinema de 68" começou no início da década, muito antes do Maio, e se estendeu pelos anos 70 inteiros, incorporando os novos sujeitos do discurso (mulheres, negros, operários, disruptivos, figuras do poder enlouquecidas), sexualidade, drogas, a crítica ao cinema-representação. Nunca foi um "cinema militante" ou "cinema político" pensando como "nicho de mercado".
No Brasil, "Terra em Transe", de Glauber Rocha, "O Bandido da Luz Vermelha", de Rogério Sganzerla, o cinema marginal e o cinema tropicalista estão à altura do Maio francês, que repercutiu em todas as cinematografias -"Bonnie e Clyde" (1967), de Arthur Penn, "Se...", de Lindsay Anderson, "Zabriskie Point", de Antonioni, "Pocilga", de Pasolini, além de Bernardo Bertolucci, Chris Marker, entre tantos outros filmes e diretores extraordinários do mundo inteiro.
Outra das conseqüências de 1968 foi o surgimento de um cinema político mainstream, como "Z" (1969), de Costa-Gavras (que muito apropriadamente premiou, no Festival de Berlim, "Tropa da Elite"), na linha do filme-político-de-mercado-que-produz-satisfação-e-divertimento-garantidos. Maio de 68 também despertou o "anti-Maio", a desqualificação do acontecimento 1968 e da experimentação estético-política, além de um antiintelectualismo que ronda a cultura contemporânea.

Anti-Maio
O orgulho de "não ser político", uma pretensão que marca o discurso do cinema-ação-espetacular baseado na regressão vingativa, na pulsão de morte, adrenalina, e em certo gozo soberano em ver, infligir e consumir todas as formas de poder. Um anti-Maio em curso, para o qual não vale mais o apelo violento nos muros da Sorbonne: "Ajudem-nos, destruam-se!".
A mais notável proposta de 1968 ainda é romper o gueto do cinema e da arte, criar novos mercados e derivas, encontrar o cinema no cotidiano, nas lutas, no mundo, afinal "arte é o que faz a vida mais interessante que a arte", poderíamos dizer.
A deriva de 1968 é reinventar a potência do cinema, inventar o ativismo pós-midiático, pós-cinema e TV, o cinema-mundo.


IVANA BENTES é professora da Escola de Comunicação da UFRJ e autora de "Ecos do Cinema" (ed, UFRJ), entre outros livros.


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