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BRASIL 500 D.C.
Irrompendo do futuro, a morte esculpe um indivíduo irrepetível
A morte, uma vida
BENTO PRADO JR.
especial para a Folha
"Entre sa vie et sa mort, il y a un moment qui n'est plus que celui d" "une"
vie jouant avec la mort." (1)
Gilles Deleuze
Cada uma à sua maneira, a história das mentalidades e a psiquiatria tentam circunscrever e analisar a estrutura da subjetividade ou
o laço de si a outrem, a comunicação entre a vida e a morte. Penso
aqui em dois livros, "O Homem
Diante da Morte" (vols. 1 e 2), de
Philippe Ariès (Francisco Alves,
1983), e "O Tempo Vivido", de Eugène Minkowski (tradução mexicana, FCE, 1973). Um historiador,
mas guiado nesse livro pelo ensaio
de um filósofo ("La Mort", de W.
Jankélévitch), e um psiquiatra,
desde sempre inspirado pela filosofia, Husserl, mas sobretudo
Bergson. Penso, ainda, no último
escrito de Deleuze, também bergsoniano.
O primeiro consagrou-se a esse
tema depois de escrever uma monumental arqueologia da infância
no mundo moderno, descrevendo
a nova grade das "idades da vida"
instaurada pela burguesia, que interrompe a integração e a circulação imediata da criança no mundo
social, sequestrando-a no espaço
fechado da escola e da família conjugal, cancelando o modelo arcaico do "aprendizado" dominante
na Idade Média, tanto entre nobres
como entre artesãos. Início, digamos, de um longo processo de privatização da vida social e de "psicologização", digamos, da existência.
É o mesmo processo que é agora
descrito com toda a riqueza de
enorme erudição histórica na
transformação da relação vivida
com a morte; não pertenceria a hora da morte à grade das idades da
vida (como veremos adiante, é
bem esse o problema, em epígrafe
assinalado, que nos interessa)?
Aqui também a mutação essencial
é a que dá lugar a um eclipse do público pelo privado.
A morte arcaica (de longuíssima
duração: Antiguidade, Idade Média até o séc. 19) ou a "bela morte"
é uma morte antecipada ou "domada", reconhecida, ritualizada,
culminando em cena perfeitamente pública: trata-se de despedir-se
deste mundo, preparar-se para outro, edificar, destinar seus bens, receber a extrema-unção etc. O melhor exemplo em nossa língua (a
acrescentar aos textos escolhidos
por Ariès) é sem dúvida a belíssima página do padre Bernardes:
"Destemor da morte. Estando em
artigo de morte um padre antigo
do famoso deserto de Scithis, os
outros monges rodeando-lhe a pobre cama ou esteira em que jazia,
choravam amargamente. Neste
ponto abriu os olhos, e sorriu-se;
dali a pouco tempo tornou a rir, e
depois de outro breve intervalo,
terceira vez deu a mesma mostra
de alegria. Causou isto nos circunstantes não pequeno reparo,
por ser austera a pessoa, e formidável a hora. Perguntaram a causa,
e respondeu-lhes: "A primeira vez
me ri, porque vós outros temeis a
morte; a segunda, porque, temendo-a, não estais aparelhados; a terceira, porque já lá vai o trabalho, e
vou para o descanso". Tornou então a cerrar os olhos, e destacou-se
seu espírito".
No fim do século 19 algo muda,
que culminará, no século seguinte,
no que Ariès chama de "a morte
americana" ou asséptica e hospitalar. E é na Rússia arcaica de Tolstói
(onde os mujiques continuam a
morrer segundo os padrões eternos fixados desde o Egito) que vai
aparecer a primeira fulguração na
nova figura da morte. Trata-se da
morte de Ivan Illitch, que lhe é escondida por parentes e médico e
que ele descobre por acaso (ouve
seu irmão dizer à mulher: "Você
não vê que ele está morto?"). O
moribundo vê doravante sua morte sonegada por outrem, ele deve
ser poupado desse saber. À medicalização da morte (Ivan Illitch
não pensa na morte, mas no seu
"rim flutuante", que a medicina
poderá ancorar novamente) segue-se a sua hospitalização, hoje
imperante. Não se morre mais em
casa, junto aos parentes, amigos e
vizinhos. Não é apenas o moribundo que é protegido da morte, mas
também seus familiares mais imediatos.
Na segunda metade do século 20,
observa Ariès, tudo se passa como
se morte e sexualidade trocassem
de lugar, o exposto entrando em
eclipse e o reprimido retornando à
tona. É a morte do Vovô que deve
ser escondida da criança, há muito
tempo iniciada na sua educação
sexual, virando ao avesso, por assim dizer, a estrutura do universo
vitoriano: em vez do mito da cegonha, a fictícia viagem inesperada
do velho avô.
Em todo caso, o certo é que Ariès
descreve essa relação com a morte
como uma forma de alienação ou
falsificação da consciência de si
(Walter Benjamin falaria de esvaziamento da Experiência); são os
próprios moribundos que o dizem,
como o padre F. Dainville a seu
confrade Ribes, em 1973: "Frustraram-me a minha morte" ("O Homem Diante da Morte", vol. 2, pág.
620). O recobrimento da morte
iminente pelo véu do pudor (Jankélévitch) não significaria também
o apagamento dos limites (do perfil) de toda uma vida? Lembremo-nos da bela frase de Malraux: "Só a
morte transforma a vida em destino", isto é, em "uma" vida.
É bem essa idéia de "uma" vida,
cuja forma só se desenha na sua articulação com uma morte não confiscada, que encontramos no coração do belo livro que Minkowski
consagrou à fenomenologia do
tempo subjetivo, passando da ótica da história para a da psiquiatria.
Que significa, aqui, o sublinhado
artigo indefinido? Perguntemos,
para começar, como pensar numa
relação "vivida" com a morte? De
Epicuro ao "Tractatus" de Wittgenstein, ensinam-nos que a morte "não é um acontecimento da vida". Trata-se, é claro, da eliminação do fantasma do "além", mas
que implica talvez, paradoxalmente, a eliminação do próprio Tempo, pelo menos daquele que não se
limita à mera sucessão e que implica, com a tripartição entre Presente/Passado/Futuro, o "X" nuclear
em que se cruzam esses "êxtases
temporais", raiz da subjetividade
originária do Sujeito.
Para Minkowski, a dimensão do
"além" tem de receber alguma
consistência (sem implicar a tese
de um "outro" mundo, transcendente), pelo menos como esse futuro, a própria morte que retroativamente dá estrutura à minha vida
como a vivo, na primeira pessoa
do singular do presente do indicativo. A morte não é apenas um
evento objetivo que separa, numa
série, um antes de um depois. Irrompendo do futuro, do que não é
ainda, define presente e passado,
desenha na superfície da Imanência uma trama e uma "biografia",
UMA VIDA, esculpe um indivíduo
irrepetível, reúne "numa única
unidade sintética tudo o que precedeu a morte".
Talvez Deleuze tivesse em mente
esse ensaio de Minkowski (certamente lido também por Jankélévitch), ao escrever as últimas páginas de sua vida "L'Immanence
-Une Vie...", em que comenta mais
uma figuração literária da relação
umbilical que liga a vida à morte:
"Que é a imanência? Uma vida...
Ninguém melhor que Dickens
contou o que é "uma" vida, tomando o artigo indefinido como transcendental. Um canalha, um mau
sujeito desprezado por todos é trazido agonizante, e eis que todos
que dele cuidam manifestam uma
espécie de zelo, de respeito, de
amor pelo menor signo de vida do
moribundo. Todos se empenham
em salvá-lo, a ponto de que no
mais profundo de seu coma o mau
homem sente, ele próprio, algo de
doce penetrá-lo. Mas, à medida
que retorna à vida, seus salvadores
tornam-se mais frios e ele reencontra toda sua grosseria, sua maldade. Entre sua vida e sua morte,
há um momento que é apenas o de
"uma" vida jogando com a morte".
"Morte: "Uma" Vida", seja a minha, no futuro, ou a de outrem, no
presente e no passado. "Uma vida/Imanência", tema a que retornaremos, aqui na Folha, ainda
uma vez a propósito de Deleuze e
de Bergson.
Nota:
1. "Entre sua vida e sua morte, há um momento que é apenas o de "uma" vida jogando com a morte."
Bento Prado Jr. é filósofo, professor na Universidade Federal de São Carlos e professor emérito
da USP. Publicou, entre outros, "Presença e Campo Transcendental" (Edusp) e "Filosofia da Psicanálise" (Brasiliense). Ele escreve mensalmente na
seção "Brasil 500 d.C." da Folha.
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